Os problemas de liquidez da Grécia já levaram o Estado a usar as reservas de tesouraria de institutos públicos e de empresas públicas, como o Metropolitano de Atenas. Entre pagar salários e pensões, e pagar aos credores internacionais, o governo já disse que escolherá sempre os cidadãos gregos. Na linha da frente fica assim, sozinho, o Fundo Monetário Internacional. Mas e se a Grécia não pagar ao Fundo Monetário Internacional (FMI)?
Há menos de uma semana, depois de mais notícias que davam conta das dificuldades de tesouraria da Grécia e de que estaria a ser ponderado, pelo Governo grego, pedir mais tempo para pagar ao FMI, seguido dos já tradicionais desmentidos de Atenas, a diretora-geral do FMI, Christine Lagarde afastou um cenário de uma moratória à Grécia para pagar mais tarde.
“A administração do FMI não concedeu adiamentos nos pagamentos nos últimos 30 anos. (…) Nunca tivemos uma economia avançada a pedir um adiamento nos pagamentos”, disse Christine Lagarde, em Washington. A primeira economia avançada sim, mas, se a Grécia não pagasse ao FMI a tempo e horas, estaria longe de ser o único país a fazê-lo, embora se juntasse a um clube com alguns regimes infames.
Somália, Sudão, Zimbabué, Iraque, Afeganistão, Libéria, República Democrática do Congo, Serra Leoa, Zâmbia, Peru e Sérvia. São pouco mais de uma dezena os países que tiveram em atraso, por um período prolongado, pagamentos ao FMI que deviam ter sido feitos para reembolsar empréstimos dados pelo Fundo a esses países.
Destes onze países, apenas três continuam nesta lista: Somália, Sudão e Zimbabué. Calculado à taxa de câmbio desta segunda-feira para os direitos de saque-especiais (SDR, sigla em inglês), no final de março estes três países deviam 1.442 milhões de euros ao FMI.
Dívidas em atraso ao Fundo atingiram máximos entre 1989 e 1993. Fonte: FMI.
O Sudão é quem mais deve ao FMI. Cerca de 1.256 milhões de euros, à taxa de câmbio atual, perto de três quartos da dívida total em atraso entre estes três países. Segue-se a Somália, com uma dívida em atraso na ordem dos 304 milhões de euros. O caso do Zimbabué insere-se já numa categoria diferente, porque os empréstimos estão ao abrigo do fundo de redução da pobreza (PRGT, sigla em inglês), que tem regras diferentes. Ainda assim, deve mais de 103 milhões de euros ao FMI.
Cada caso tem as suas particularidades. Os atrasos da Somália e do Sudão duram desde meados da década de 80. O FMI tinha por regra fazer uma reavaliação das obrigações em atraso de cada país do Fundo a cada seis meses, mas deixou de fazer no caso da Somália em outubro de 1990, considerando que não é possível avaliar a cooperação “devido à inexistência de um governo reconhecido pelo Fundo, a grande incerteza em torno da situação política e de segurança e a falta de informação económica e financeira”.
A Somália está longe de ser caso único. Também no Afeganistão (1994 a 2001), Camboja (1979 e 1992), República Democrática do Congo (1998 a 2000) as reavaliações foram suspensos devido à falta de condições para fazer a avaliação.
Em 1987, 26 países tinham dívidas em atraso há um período prolongado. Fonte: FMI.
O Sudão, apesar da independência do Sudão do Sul (e a perda de receitas com petróleo que dai derivam), até tem realizado pagamentos e mantém-se em negociações com o Fundo. Já o Zimbabué insere-se numa categoria diferente. Os 103 milhões de euros que ainda deve ao FMI estão ao abrigo do programa de redução de pobreza da organização para os países mais pobres, que acarreta diferentes consequências em caso de atrasos nos pagamentos. A última avaliação do Fundo apontava para que o país de Robert Mugabe (Presidente desde 1987) estivesse menos cooperante com o FMI, tanto em termos das medidas que tinha de tomar, como no que diz respeito aos pagamentos. Ainda assim, as negociações continuavam.
Estes três países estão na lista dos países com pagamentos em atraso há um tempo prolongado e sujeitos a sanções, mas não são os únicos. Há outras razões para os países terem dívidas em atraso ao Fundo e que engrossa consideravelmente a lista de devedores, mas como são por períodos mais curtos não entram nesta estatística. Entre 2000 e 2012, nunca houve menos de 150 países com dívidas ao FMI. Em 2012, eram 187.
Somália, Sudão e Zimbabué são os casos mais problemáticos, mas há vários tipos de dívidas. Em 2012, 187 membros tinham dívidas ao Fundo. Fonte: FMI.
Isto deve-se em especial à avaliação do valor das quotas. Para se defender das variações cambiais, o FMI faz uma reavaliação a 30 de abril de cada ano do valor da quota de cada país, que deve cumprir um valor mínimo em SDR. Se esse valor ficar abaixo em moeda local, devido à perda de valor da moeda, o país tem de fazer pagamentos ao Fundo para cobrir a diferença até ao final do ano. O contrário também é verdade, o país pode ter de receber dinheiro do FMI.
Os procedimentos do FMI em caso de falta de pagamento de um país são bastante rígidos e podem acabar, na pior das hipóteses, com a expulsão do país do Fundo. O calendário em que devem ser tomadas essas ações está também definido:
- Imediatamente Assim que o país falhar o pagamento, o FMI envia uma comunicação ao país instando-o a fazer o pagamento imediatamente. O país deixa de poder usar recursos ou fazer pedidos para o uso de recursos enquanto o pagamento não for feito.
- Duas semanas O Fundo envia uma comunicação oficial ao Governo onde sublinha a gravidade da falta de pagamento e onde exige o pagamento rápido e em pleno do dinheiro devido.
- Um mês O diretor-geral comunica à administração do FMI oficialmente que o pagamento está em atraso.
- Seis semanas O diretor-geral do FMI notifica o país que, caso não faça o pagamento, seguirá uma queixa para a administração do Fundo.
- Dois meses É enviada uma queixa pelo diretor-geral à administração do FMI.
- Três meses O Fundo publica uma nota curta na sua página na Internet com o valor em dívida, onde explica que o país fica sem acesso aos recursos do Fundo. É enviada uma nota à imprensa sobre as decisões tomadas.
- Seis a doze meses A administração do FMI reavalia a sua decisão de limitação de acesso aos recursos do fundo ao fim de três meses, com a possibilidade de uma segunda revisão. Todos os governadores do Fundo e responsáveis das instituições financeiras internacionais recebem um aviso sobre a falta de pagamento do país.
- Até 15 meses O FMI pode emitir uma declaração de não-cooperação por parte do país em causa. Se isso acontecer, esse país deixa de ter acesso ao apoio técnico do Fundo.
- Até 18 meses Tem de ser avaliada a suspensão do direito de voto e de representação do país no FMI.
- Até 24 meses É iniciado o processo de expulsão do país como membro do FMI começa a ser avaliado.
Somália e Sudão chegaram a ter processos tendo em vista à expulsão do Fundo. Fonte: FMI
Apesar de em casos extremos estar prevista a expulsão de um membro, isto está longe de ser um resultado previsível, como demonstram os casos da Somália, Sudão e Zimbabué. Por isso mesmo, é feito um esforço para qualificar um país como tendo entrado em default (incumprimento) com o fundo, e chamando-lhe antes um país com pagamentos em atraso.
A estratégia do Fundo passa, em primeiro lugar, por tentar proteger-se ao máximo fazendo desembolsos periódicos e parcelares, mediante o cumprimento das condições dos programas, e análises periódicas à sustentabilidade da dívida do país (como fez em Portugal). Caso exista uma falha nos pagamentos, é feita uma pressão forte para o pagamento imediato.
Se o país continuar sem fazer o pagamento devido o FMI tem previsto um modelo de “intensa colaboração”, para controlar o cumprimento do país do acordado, a mobilização de recursos de credores internacionais e outros países que doam diretamente recursos, para que sejam normalizadas as relações com o Fundo.
Um país que esteja em falta com o FMI há um período prolongado pode então, caso esteja a colaborar, ser elegível para um programa de “acumulação de direitos”. Este tipo de programa, em tudo semelhante a um programa normal com medidas a implementar, prazos para a sua implementação e acompanhamento do FMI, difere dos programas ‘normais’, como o de Portugal, porque não há direito a desembolsos, mas à acumulação de direitos. Ou seja, caso cumpra, pode vir a receber mais dinheiro do FMI sem cumprir mais condições (que já estariam cumpridas), mas para isso é preciso que os pagamentos em atraso sejam feitos e que a administração do FMI aprove esse programa.
Surge então o calendário com as medidas a tomar, caso o país continue sem pagar (descrito acima). Em muitos casos, os países acabam por amortiza a dívida em atraso ainda antes do final do primeiro mês, não dando sequer lugar ao envio da primeira notificação da parte do FMI.
O FMI tem um mecanismo de partilha de perdas previsto desde os anos 80 para estes casos de períodos prolongados em que um país não paga. Ao fim de seis meses, tanto devedores como credores do Fundo acabam por partilhar o custo desta dívida em atraso.
No caso dos devedores, é aumentada a taxa cobrada nos empréstimos, e no caso dos credores, é reduzida a remuneração que teriam a receber do Fundo. Isto acontece até que o país pague as suas dívidas. O valor cobrado a mais, ou retirado da remuneração devida, é devolvido aos países quando as contas forem saldadas.
Atenas ainda não falhou qualquer pagamento ao FMI, cujo programa ainda deveria continuar até abril do próximo ano, ao contrário do programa acordado com os parceiros europeus que termina no final de junho, com ou sem sucesso, a menos que seja concedida uma terceira extensão, algo que nenhuma das partes parece estar interessada.
Ao contrário da dívida aos fundos de resgate europeus, que só começam a ser pagos na próxima década, os empréstimos do FMI à Grécia já estão a ser pagos. Até maio, a Grécia tem tido um pagamento por mês a fazer ao FMI. Mas o cenário muda de figura, e de que maneira, em junho, mês em que termina o programa.
A 12 de maio, a Grécia tem de pagar cerca de 774 milhões de euros, mas em junho tem quatro pagamentos para fazer: a 02 de junho tem de pagar quase 310 milhões de euros, a 12 de junho mais 348 milhões de euros, a 16 de junho outros 581 milhões de euros e a 19 de maio mais 348 milhões de euros.
No total, só até ao final do programa com a Europa, ainda sem qualquer garantia de que conseguirá um acordo que lhe permita o acesso aos 7,2 mil milhões de euros da próxima tranche do empréstimo, a Grécia tem de pagar ao FMI quase 2,4 mil milhões de euros.
No primeiro resgate, a Grécia recebeu 20,1 mil milhões de euros do FMI, mas desde março de 2012, com o segundo resgate, a participação do Fundo caiu consideravelmente, tendo o FMI desembolsado apenas mais 8,3 mil milhões de euros. No total, o FMI emprestou à Grécia 28,4 mil milhões de euros. Mesmo que a Grécia falhasse nos pagamentos ao FMI, ainda faltaria para se juntar ao grupo da Somália, Sudão e Zimbabué.