À esquerda do PS, o momento é de atenção. E cautela. Num momento em que os partidos querem trabalhar em plataformas de convergência para várias eleições, com as autárquicas à cabeça, interessa perceber qual é o rumo que os socialistas escolhem seguir na votação deste Orçamento do Estado. A esta distância, existem várias figuras à esquerda que acreditam que uma viabilização tornaria “mais difíceis” as conversas à esquerda e podem contaminar eventuais negociações autárquicas.
Até ver, Bloco de Esquerda e Livre — os partidos que assumem um interesse em conversar o PS e chegar a soluções comuns para as autárquicas, com Lisboa à cabeça, processo do qual o PCP se tem excluído publicamente — observam atentamente as movimentações dos socialistas, sem saber exatamente o que podem antecipar: a seguir às eleições europeias, o PS começou a dar sinais, em público e em privado, de que estaria em cima da mesa a forte possibilidade de viabilizar o Orçamento do Estado; mais recentemente, no entanto, Pedro Nuno Santos veio endurecer o tom, parecendo estar agora mais distante de Montenegro.
Em todo o caso, a mera possibilidade de o PS dar a mão ao Governo levou Mariana Mortágua a muliplicar-se em recados. No discurso da rentrée bloquista, a bloquista citou frases pré-europeias de Pedro Nuno Santos — “seria muito difícil ter PS e PSD comprometidos com a mesma governação”, era “praticamente impossível viabilizar o Orçamento” — para avisar que esperava não ver o PS a cair nesse “truque“. “Quem viabiliza o Orçamento da direita, suporta o Governo da direita. Quem suporta o Governo da direita, não faz oposição à direita. Quem não faz oposição à direita, não representa uma alternativa política a esse Governo.”
Durante a própria rentrée do PS, a Academia Socialista, outra voz de esquerda — a ex-bloquista Ana Drago — fez questão de frisar que considerava os acordos autárquicos à esquerda “fundamentais”, avisando logo de seguida a plateia socialista que a ouvia: “Se o PS entender que o seu papel é viabilizar a governação de um Governo da AD, vejo com grande dificuldade que à esquerda haja uma tentativa de diálogo para a construção de coligações autárquicas”. A ideia de Drago passava por defender que a vida interna destes partidos se complicaria, com parte destas forças a não compreender a opção por alinhar com um PS que ajudasse o PSD a manter-se no governo.
Agora, com o discurso mais duro que Pedro Nuno Santos adotou relativamente ao Governo e às negociações orçamentais, a expectativa da esquerda aumenta. E os avisos de bastidores também: um entendimento de última hora entre PS e PSD pode vir a dificultar as conversas à esquerda. “As condições ficam mais difíceis”, ouve-se no Bloco, entre quem teme que uma aparente inconsistência na posição do PS possa tirar seriedade e credibilidade a uma convergência à esquerda que tenha como objetivo derrotar a direita a nível local.
A força do pragmatismo
Em todo o caso, os partidos de Mariana Mortágua e Rui Tavares não estão dispostos a perder a oportunidade de marcar pontos nas próximas eleições autárquicas, em particular em Lisboa, onde acreditam que existem boas possibilidades de derrotar Carlos Moedas. No Bloco, as hesitações provocadas pela aparente ambiguidade de Pedro Nuno parecem ser maiores, mas fonte da direção do partido resume a questão de forma pragmática. “Os entendimentos autárquicos, a existir, serão pontuais e orientados por questões locais”, atira, arrumando de forma separada as duas questões e lembrando que não existe uma “frente de esquerda” formal.
O mesmo raciocínio é feito por fontes que admitem que as negociações podem ver-se dificultadas graças ao processo orçamental. É um contratempo, sim, mas desejavelmente a esquerda poderá entender-se na mesma, se olhar de forma mais fria para os objetivos comuns que tem pela frente e considerar que o processo orçamental e autárquico são questões “separadas”. Tudo depende do que acontecer até novembro, altura em que o documento será discutido e aprovado na especialidade.
Ainda assim, a prioridade parece, nesta altura, tentar priorizar a necessidade de voltar a contar com uma governação à esquerda em várias autarquias (em Lisboa o alinhamento parece mais fácil, no Porto há obstáculos no caminho que os partidos poderiam trilhar juntos). No Livre, Rui Tavares, que promoveu há meses uma ronda de negociações entre os partidos da esquerda com a questão das autárquicas em mente, é claro: “No rescaldo das reuniões que já tivemos, confirmámos que havia disponibilidade para aprofundar, do ponto de vista programático, a possibilidade de se fazer uma convergência à esquerda para as autárquicas em sítios em que isso faz sentido, localmente”, começa por dizer em declarações ao Observador.
Admitindo que este será “sempre um processo difícil e trabalhoso“, e que no caso de Lisboa uma candidatura deste género precisaria de “mobilizar a sociedade civil” para ter sucesso, o porta-voz do Livre insiste que existe uma “insatisfação muito grande com as gestões da direita”. “Da nossa parte, levamos a sério esse esforço de construção programático e não criaremos obstáculos suplementares, antes pelo contrário”, promete Tavares. A disponibilidade do Livre para entendimentos locais continua de pé e fica, assim, mais do que assegurada.
Rentrées com discursos alinhados à esquerda
O Orçamento trará outras variáveis para a definição do rumo da esquerda, questões autárquicas à parte. Como Mariana Mortágua avisou na rentrée do PS, se os socialistas acabarem por viabilizar o documento — uma opção que neste momento parece bem mais distante — o Bloco considerará que não estão verdadeiramente interessados em fazer oposição.
Foi também a contar com esta variável que o partido decidiu, depois das eleições europeias, agendar a sua conferência nacional só para o último trimestre do ano — quando o Orçamento já estiver decidido –, promovendo um debate “muito alargado” sobre o papel do Bloco neste ciclo político e pondo os olhos nas alternativas à esquerda construídas “por toda a Europa”.
Caso o PS se mostrasse disponível para viabilizar o documento, a restante esquerda considera que ficaria com mais margem de manobra para captar eleitorado e definir-se como oposição a um Governo de direita, trilhando então um caminho mais afastado dos socialistas. Em todo o caso, se as conversas entre PS e Governo azedarem — como tem acontecido nas últimas semanas — e a viabilização do Orçamento morrer na praia, as articulações à esquerda, que Bloco e Livre tentaram promover com uma série de encontros entre os partidos desde as eleições de março, poderão ganhar uma força renovada.
Os discursos socialista e bloquista nas respetivas rentrées, no fim de semana passado, mostraram de resto que há vários pontos em que os dois partidos estão alinhados, sobretudo na crítica ao Executivo. Mortágua passou parte do discurso a criticar as propostas fiscais de Luís Montenegro, classificando o regime do IRS Jovem que está em cima da mesa como a reforma fiscal “mais injusta e regressiva desde que Maria Luís Albuquerque fazia parte do Governo e Luís Montenegro era o líder da maioria parlamentar”. Nem uma hora depois, Pedro Nuno Santos classificava a mesma medida como “injusta”: “A maioria dos jovens ganham o salário mínimo nacional, vão ganhar zero com esta medida”.
No caso do IRC, também discursaram em espelho: Mortágua falou na “mesma injustiça”, com uma medida que viria beneficiar as “maiores empresas” — “uma reforma fiscal de privilégio para uma pequena elite em Portugal”. Versão de Pedro Nuno Santos: “1500 milhões de euros por ano para as empresas que menos precisam”. As próximas semanas ditarão se o discurso continua a ser próximo e construído na ótica das convergências ou se os partidos se afastam, podendo comprometer o grande objetivo comum — as autárquicas.
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