O filho do secretário de Estado da Proteção Civil celebrou pelo menos três contratos com o Estado, depois de o pai, José Artur Neves, ter deixado a presidência da Câmara de Arouca e ter ido para o Governo. Segundo a lei, a família direta de um titular de cargo político não pode prestar bens ou serviços ao Estado. E, caso o faça, a sanção “para os titulares de cargos de natureza não eletiva, com a exceção do primeiro-ministro” é “a demissão”. Nuno Neves, com apenas 28 anos e uma licenciatura em Engenharia, é sócio em duas empresas de um banqueiro nascido na freguesia de Alvarenga, concelho de Arouca, a mesma freguesia onde vive o secretário de Estado.
Ao Observador, o governante alega que não sabia. “Desconheço a existência de qualquer incompatibilidade neste domínio, como desconheço também a celebração de tais contratos”, respondeu José Artur Neves por escrito.
Nuno Neves é dono de 20% da Zerca Lda. Esta empresa foi criada em 2015, quando o atual secretário de Estado ainda era presidente da Câmara de Arouca, cargo que ocupou durante 12 anos, antes de sair para o Governo.
Aliás o próprio José Artur Neves declarou que o filho tinha aquela participação no seu registo de interesses à Assembleia da República. Este registo consiste na inscrição, em livro próprio, de todas as atividades suscetíveis de gerarem incompatibilidades ou impedimentos e quaisquer atos que possam proporcionar proveitos financeiros ou conflitos de interesses.
A Zerca foi criada em julho de 2015 sob o nome de Portzerc para construção civil e promoção imobiliária. Segundo o portal do Ministério da Justiça, Nuno Neves, filho do então presidente da Câmara, era um dos quatro sócios. Entrou com mais de 13 mil euros no negócio. O maioritário era Fernando Teles, que entrou com cerca de 19 mil, um empresário que enriqueceu em Angola e é administrador do banco EuroBic. Dois anos depois, Fernando Teles renunciaria à sua participação — deixando Nuno Neves apenas com os outros dois sócios, ambos da família Teles — e a empresa mudaria de nome. Hoje, a Zerca funciona em Vila Nova de Gaia, cresceu até Lisboa e tem obras em Luanda. Quem conhece Nuno Neves sabe que ele trabalha lá, mas nem todos sabem que é um dos donos.
No último ano, segundo o portal Base, a Zerca fez três contratos públicos com o Estado. Dois com a Universidade do Porto, um de 14,6 mil euros (por ajuste direto), publicado no portal esta segunda-feira, e um segundo de 722 mil euros (por concurso público). O terceiro contrato, também por concurso público, foi celebrado com a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, no valor de 1,4 milhões, para uma urbanização na Póvoa de Santa Iria. Foram, assim, dois concursos públicos e um ajuste direto, mas o tipo de procedimento não faz qualquer diferença do ponto de vista legal das incompatibilidades dos cargos políticos.
Nuno Neves, filho do governante, tem também 50% de uma empresa, a Postescaliptos LDA, criada em meados de 2017, mas esta participação já não foi referida pelo pai na sua declaração à AR. Também aqui, o sócio do filho do secretário de Estado da Proteção Civil é Fernando Mendes Teles, o administrador do EuroBic nascido na freguesia de Alvarenga, em Arouca — onde vive o ex-presidente da câmara, agora no Ministério da Administração Interna — e que emigrou ainda jovem para Angola construindo um vasto património.
A ligação de Fernando Teles à família do José Artur Neves não se fica por aqui. Antes de assumir a pasta da secretaria de Estado da Proteção Civil, José Artur Neves era “procurador de sócio” na F.T.P.G.M. Lda e na Herdade da Rendeira, duas empresas de Fernando Teles. “O meu representado era o sr. Dr. Fernando Teles”, confirmou o governante ao Observador. Era também secretário na Assembleia Geral do EuroBic, cargo pelo qual ganhava 2 mil euros anuais, segundo o relatório e contas do próprio banco. Todas estas funções foram acumuladas com a de Presidente da Câmara de Arouca.
“Estou convicto de que, face ao Estatuto do Eleitos Locais e ao regime de incompatibilidades dos titulares dos cargos políticos, todas aquelas funções [ligadas ao agora sócio do filho] eram compatíveis com as funções públicas”, diz José Artur Neves ao Observador.
O problema da compatibilidade estará não nas funções que exerceu enquanto autarca, mas com o facto de o seu filho ter celebrado pelo menos três contratos com o Estado — quando Artur José Neves já era secretário de Estado da Proteção Civil — através da referida empresa chamada Zerca.
O que diz a lei: sanção é punida com “demissão” pelo TC
Segundo a lei sobre as incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, “as empresas cujo capital seja detido numa percentagem superior a 10% por um titular de órgão de soberania ou titular de cargo político, ou por alto cargo público, ficam impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas”.
A esta proibição ficam também sujeitas as empresas cujo capital, em igual percentagem (mais de 10%), seja dos “seus ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2.º grau” . Acrescem as empresas “em cujo capital o titular do órgão ou cargo detenha, direta ou indiretamente, por si ou conjuntamente com os familiares referidos na alínea anterior, uma participação não inferior a 10%”. Ora, Nuno Valente Neves é descente de José Artur Neves e tem uma participação de 20% — o dobro do permitido por lei.
A mesma lei diz, no seu artigo 10 — referente à “fiscalização pelo Tribunal Constitucional” —, que “a infração ao disposto nos artigos 4.º, 8.º [o caso em questão] e 9.º implica as sanções seguintes: (…) b) para os titulares de cargos de natureza não eletiva, com a exceção do primeiro-ministro, a demissão“. Cabe ao Tribunal Constitucional avaliar o caso a partir do momento que tenha dele conhecimento.
Declarações diferentes em duas semanas
O secretário de Estado que aceitou exonerar o seu adjunto, Francisco Ferreira, depois da polémica em torno das cinco empresas contactadas para vender as golas inflamáveis, apresentou duas declarações ao Tribunal Constitucional.
A primeira, e última enquanto presidente da câmara de Arouca, foi assinada a 16 de outubro de 2017 e dava conta de que, paralelamente ao cargo na autarquia, era, desde setembro de 2015, “procurador de sócio” da Herdade de Rendeira, Agropecuária, e, desde novembro desse ano, também representava um sócio na F.T.P.G.M. LDA. Falava também das suas funções como secretário na Assembleia Geral do EuroBic, apresentando, no entanto, uma data para o fim das suas funções no cargo.
A consulta das informações destas duas sociedades permite concluir que ambas são detidas maioritariamente por Fernando Teles, um dos donos do EuroBic. Duas semanas depois, já como secretário de Estado da Proteção Civil, José Artur Neves apresentava uma nova declaração ao Tribunal Constitucional. A lei obriga a declarar todos os cargos e interesses dos últimos dois anos. Mas, nesta declaração, o governante nada disse sobre a sua representação empresarial, desconhecendo-se se cessou ou não.
O Observador tentou por telefone e por mensagem contactar o secretário de Estado para esclarecer esta questão. A resposta viria por email, depois de o Observador ter enviado as perguntas ao Ministério da Administração Interna: “Não tenho em minha posse, de momento, cópia das declarações apresentadas quer na AR, quer no TC, sendo certo que, na eventualidade de existir alguma divergência entre elas, só por mero lapso poderá ter ocorrido. Na verdade, como se compreenderá, não havia qualquer interesse em omitir a informação numa dessas declarações e, depois, omitir apenas parte na outra”, disse.
Já à Assembleia da República, no registo de interesses, o governante declararia um interesse: os 20% de participação do filho numa empresa e a ligação ao EuroBic (que, nesse caso, dizia ter começado em janeiro de 2014).
Ao Observador, o secretário de Estado diz, por escrito, que “de facto, à data do termo do mandato como autarca era procurador de sócio de duas empresas e secretário da Assembleia Geral do BIC, por traduzirem funções compatíveis com as de eleito local, desempenhadas a título não remunerado”. Mais: “Com efeito, no cumprimento da lei, fiz a declaração nesse sentido. Com o convite que me foi dirigido para integrar o Governo atual renunciei quer às representações consubstanciadas naquelas procurações, quer ao desempenho das funções de Secretário da AG do BIC, pelo que, à data da tomada de posse, nada tinha a declarar”, justificou. Embora a lei do controlo público da riqueza dos titulares de cargos políticos seja clara e diga que essas informações, referentes ao presente e aos dois anos que antecederam a entrega, têm que constar na declaração ao TC.
Cunhado da presidente da junta também foi contactado para vender Kits e golas
José Artur Neves foi o responsável pelo acompanhamento do Ministério da Administração Interna à compra das polémicas golas inflamáveis distribuídas à população, mas negou qualquer intervenção dele ou do Governo no negócio e responsabilizou a Autoridade Nacional de Proteção Civil.
O contrato acabou por levar o MAI a abrir um inquérito urgente, depois de o JN ter avançado que as golas custaram mais de o dobro do preço de mercado, devido ao curto prazo para a entrega. A forma como a consulta ao mercado decorreu continua, porém, por esclarecer.
A própria Proteção Civil revelou na sexta-feira ao Observador que além da Fox Trot Aventura — empresa que ganhou a adjudicação das famosas “golas” inflamáveis e dos kits Aldeia Segura — foram contactadas mais quatro empresas: a “Brain One, Lda”, a “Codelpor, S.A.”, a “MOSC – Confeções. Lda” e a “EDSTATES – Confeções e Bordados, Unipessoal, Lda”.
A Fox Trot, já se sabe desde sexta-feira, é de Ricardo Peixoto Fernandes, marido de uma autarca do PS, Isilda Silva, que preside à junta de freguesia de Longos. Mas as ligações familiares não se ficam por aí. Ao que o Observador apurou, a MOSC — empresa também contactada pela ANEPC para fazer os kits e as golas — é propriedade de Luís Miguel Peixoto Fernandes (irmão de Ricardo Peixoto Fernandes e cunhado da autarca do PS) e da sua mulher, Maria Odete Silva Cruz. Contactado sobre esta ligação, Ricardo Peixoto Fernandes limitou-se a dizer: “Não falo mais sobre esse caso”.
Soma-se a esta outra ligação ao PS entre as consultadas: a Brain One. Ambas foram apontadas à ANEPC pelo adjunto do secretário de Estado da Proteção Civil, Francisco José Ferreira.
Francisco Ferreira, também presidente da concelhia do PS em Arouca, tem o 12.º ano e antes de chegar a adjunto do secretário de Estado — depois da saída de Constança Urbano de Sousa do ministério — foi gestor industrial, segundo o currículo que consta no despacho da sua nomeação. Na sequência deste caso, Francisco José Ferreira demitiu-se esta segunda-feira.
A BrainOne também tem uma ligação familiar ao PS: o irmão do gerente da empresa, Tiago Martins Pereira Rodrigues, é casado com a filha de um dos vereadores do PS na Câmara de Arouca, Albino Gonçalves
Das cinco empresas que a Proteção Civil diz ter contactado, sobram duas: uma de bordados (EDSTATES) e a Codelpor, especializada em comércio de eletrodomésticos. Problema: a Codelpor disse esta segunda-feira que nunca foi contactada pela Proteção Civil e que só colaborou com esta entidade na Madeira e nos Açores. Em declarações ao Expresso, o presidente da empresa, Luís Vasco Cunha, negou qualquer contacto: “Isso não corresponde à verdade. Nunca fomos consultados pela Proteção Civil para os concursos das golas e dos kits. Aliás, isso nunca me passaria despercebido porque tenho ligações com os bombeiros.”
*Artigo corrigido, ao abrigo de um direito de resposta, na informação sobre as ligações da empresa BrainOne ao PS. Onde se lia “o gerente da empresa, Tiago Martins Pereira Rodrigues, é casado com a filha de um dos vereadores do PS na Câmara de Arouca, Albino Gonçalves”, deve ler-se o “irmão do gerente”, ou seja é cunhado. Foi também retirada informação, em que era citado o Jornal de Notícias, que dava conta de que a Brain One antes teria outro nome — sob o qual teria celebrado negócios com a câmara do agora secretário de Estado da Proteção Civil, era ele autarca.