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Foi apenas um "erro" ou há discussões de bastidores? Ucrânia não aceita trocar território pela adesão à NATO, mas o caminho ainda é longo

Abdicar de território e garantir a adesão não é uma solução para a Ucrânia. A sugestão de um oficial da NATO, mas rapidamente descartada pela aliança, traz mais "riscos" do que benefícios.

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“Trocar território pelo guarda-chuva da NATO?” A pergunta, colocada nos últimos dias por Mikhail Podolyak, um dos principais conselheiros do Presidente da Ucrânia, é retórica. E a resposta que deu de seguida, sem surpresa, resume-se a duas palavras: “É ridículo”. Foi desta forma que Kiev reagiu à sugestão do chefe de gabinete do secretário-geral da aliança transatlântica de que uma possível solução para o fim da guerra poderia passar pela cedência de territórios à Rússia como contrapartida para uma adesão da Ucrânia, um imbróglio que levou o oficial a corrigir as declarações, dizendo tratar-se de um “erro”, e a NATO a emitir várias declarações para garantir que a sua posição em nada se alterou e que continua a apoiar a integridade territorial da Ucrânia.

Só a Ucrânia pode tomar uma decisão sobre as negociações com Moscovo para acabar com a guerra, acabaria por sublinhar o próprio secretário-geral da NATO, mas isso não significa que nos bastidores não corram hipóteses como a que num período de 24 horas foi descartada como um erro. É o que pensa Joshua Shifrinson, professor associado na Universidade norte-americana de Maryland e que escreve sobre o alargamento da NATO à Ucrânia para o think tank Carnegie Endowment for International Peace. Ao Observador admite que a possibilidade até pode ser discutida, mas não de forma séria, e que muito menos possa trazer benefícios.

Numa postura diametralmente oposta, Jamie Shea, antigo oficial britânico da NATO, duvida de que tal proposta esteja sequer em debate. Destaca que o oficial que a avançou não o deveria ter feito e lembra que, desde o início da guerra, os membros da aliança mostraram apoio à integridade territorial da Ucrânia. Certo é que a discussão sobre a adesão do país em guerra está longe de terminar. Há ainda um longo caminho por fazer e quem duvide que chegue a concretizar-se.

Ceder território em troca da adesão à NATO é mesmo uma opção?

A NATO esteve em modo limpeza durante os últimos dias. A sugestão de Stian Jenssen, chefe de gabinete do secretário-geral da aliança transatlântica, de que uma possível solução para o fim da guerra pode passar pela cedência de alguns territórios ucranianos à Rússia em troca da adesão à organização apanhou a comunidade internacional desprevenida, especialmente tendo em conta que os parceiros ocidentais de Kiev sempre sublinharam a importância da integridade territorial da Ucrânia e que deve ser o país invadido a decidir quando negociar e em que termos com Moscovo.

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Apesar de os comentários terem sido rapidamente descartados como um “erro” pelo próprio Jenssen, a que se somaram várias declarações da NATO, incluindo do secretário-geral, nos bastidores a mera sugestão pareceu deixar alguns responsáveis ucranianos inquietos. “Estes comentários provam que as nossas preocupações têm fundamento, que há algumas discussões para usar a adesão à NATO como uma moeda de troca nas negociações com a Rússia”, disse ao jornal Politico um oficial ucraniano, sob anonimato.

epa10741113 NATO Secretary General Jens Stoltenberg speaks during a joint press conference with Ukraine's president following a bilateral meeting, at the NATO ​summit in Vilnius, Lithuania, 12 July 2023. The North Atlantic Treaty Organization (NATO) Summit takes place in Vilnius on 11 and 12 July 2023 with the alliance's leaders expected to adopt new defense plans.  EPA/TIM IRELAND

O secretário-geral da NATO garantiu que os aliados apoiam a integridade territorial da Ucrânia

TIM IRELAND/EPA

Ao mesmo jornal, um diplomata europeu afirmou que as declarações de Jenssen — uma figura que manteve há mais de uma década na NATO uma postura discreta e que raramente fala em público — foram uma surpresa para os Estados-membros da organização e garantiu que “essa troca nunca foi discutida no conselho pelos aliados”. Um outro acrescentou que é “possível compreender o pensamento, mas que não é algo que precisa de estar em cima da mesa neste momento”.

Para Jamie Shea, ex-oficial da NATO que chegou a ocupar o cargo de sub-secretário geral adjunto no setor de desafios emergentes de segurança, não há dúvida de que as declarações do chefe de gabinete de Jens Stoltenberg foram um erro. “Deveria deixar as comunicações para o secretário-geral da NATO, que tem sido claro sobre o facto de os aliados ocidentais exigirem a completa retirada da Rússia de todos os territórios soberanos da Ucrânia, incluindo da Crimeia”, sublinha em declarações ao Observador. “Em todo o caso, e como reconheceu o oficial, cabe à Ucrânia decidir sobre o seu futuro e não aos outros Estados impor concessões territoriais”, aponta, acrescentando que recompensar a Rússia com conquistas territoriais pelos seus atos de agressão contra a Ucrânia (e também contra a Geórgia e a Moldávia) apenas “encorajaria Putin a lançar mais aventuras militares”, eventualmente até contra um país da NATO.

"Estou certo de que há alguma conversa de bastidores sobre a ideia, mas não acredito que seja uma discussão séria."
Joshua Shifrinson, professor associado na Universidade norte-americana de Maryland

De facto, o representante máximo da aliança transatlântica tem sido categórico sobre o apoio da aliança a Kiev e esta quinta-feira reafirmou o compromisso: “A política da NATO permanece inalterada. Apoiamos a Ucrânia nas fronteiras internacionalmente reconhecidas (…), a sua soberania e a integridade territorial”. Apesar das palavras, que têm sido repetidas desde o início da invasão russa, a possibilidade de fazer concessões territoriais tem permanecido como uma sombra distante, ainda que as autoridades não o digam publicamente. Ao Observador Joshua Shifrinson, que tem trocado com o professor de relações internacionais James Goldgeier uma série de cartas num projeto do Carnegie Endowment for International Peace sobre o alargamento da NATO à Ucrânia — um é contra e outro a favor –, diz não ter dúvidas de que existem discussões sobre este hipótese.

“Estou certo de que há algumas conversas de bastidores sobre o tema, mas não acredito que seja uma discussão séria“, afirma. O especialista em segurança internacional contemporânea considera que alguns governos no leste da Europa possam ser favoráveis a explorar esta hipótese e admite mesmo que na Ucrânia possam existir algumas frações, ainda que pequenas, abertas à possibilidade, mesmo que não o expressem de forma pública. Duvida, no entanto, que uma ideia como esta possa ir longe, por haver vários “riscos”. Sobre as concessões que poderia implicar, diz apenas que é difícil prever, tratando-se de um cenário difícil de imaginar.

Shifrinson destaca que, se o atual ritmo de combate se mantiver, a Ucrânia deverá ser capaz de garantir o controlo dos atuais territórios livres e conseguir mesmo alguns avanços territoriais — esta semana as suas tropas reivindicaram a reconquista de Urozhaine, uma localidade na região de Donetsk. Refere, no entanto, que Kiev não parece, de momento, capaz de recuperar todo o território sob ocupação, numa altura em que os avanços no terreno têm sido lentos e os serviços secretos norte-americanos já admitiram que Kiev não deverá conseguir alcançar Melitopol, cidade vista como crucial para a contraofensiva ucraniana por ser considerada a porta de entrada para a Crimeia. “Então, quando a guerra acabar deverá verificar-se alguma perda de território ucraniano, mesmo que não seja reconhecido oficialmente. O risco é ter esse acordo vinculado automaticamente à adesão da Ucrânia à NATO”.

Da cimeira de Bucareste a Vilnius, o caminho para a adesão à NATO tem mais de uma década. Ainda é realista?

Muito mudou para a Ucrânia desde que, na cimeira de Bucareste (Roménia), em 2008, os membros da NATO ofereceram a Kiev e à Geórgia a promessa de que um dia iriam fazer parte da aliança militar, sem contudo delinear um plano ou um prazo para tal. A declaração escrita que resultou do encontro acabou por servir para encobrir as divisões entre os Estados Unidos, que advogavam a integração dos dois países, e França e Alemanha, que temiam que a aproximação ao Ocidente antagonizasse a Rússia. Mais de uma década depois, durante a qual as forças de Moscovo invadiram a Geórgia (2008), anexaram a península da Crimeia (2014) e marcharam sobre a Ucrânia (2022) numa invasão brutal que se prolonga há mais de um ano, alguns analistas consideram que a declaração trouxe o pior dos dois mundos: serviu para avisar Moscovo que os dois antigos estados soviéticos podiam um dia juntar-se à NATO, mas não lhes garantiu a proteção que a adesão podia conferir.

Passados 15 anos, a Ucrânia viu chegar, em plena guerra, a cimeira da NATO em Vilnius, na Lituânia, com grandes expectativas sobre uma adesão, apesar da sombra do encontro de 2008 ainda pairar. A cimeira, que decorreu no mês passado e contou pela primeira vez com a Finlândia como membro oficial, viria a ser destacada pelo Presidente ucraniano como um “sucesso” para Kiev, que pôde pela primeira vez na História participar num evento da NATO. Mas ficou também marcada pela frustração e pelas críticas de Volodymyr Zelensky, à falta da desejada concretização de uma adesão e sem um plano ou calendário concretos para tal. Mas o alargamento da NATO para incluir a Ucrânia é realista?

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A cimeira de Vilnius marcou a primeira participação da Ucrânia num evento da NATO

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Confrontados com a questão, ainda antes do encontro em Vilnius, uma série de especialistas e investigadores internacionais apresentavam um rol de respostas num artigo publicado pelo Carnegie Endowment for International Peace, que variavam entre a ideia de que é “inevitável”, “deve ser tornado possível” e “é realista caso se olhe para a vitória da Ucrânia na guerra como realista”. O consenso era de que não iria acontecer “nos próximos tempos”, como definiu Eric Ciaramella, do programa sobre a Rússia e Eurásia do instituto sediado em Washington. Já François Heisbourg, membro do think tank francês Fondation pour la recherche stratégique, por exemplo, defendia que as alternativas à hipótese de a Ucrânia se tornar um membro pleno são menos realistas do que a própria adesão.

“É a pergunta de um milhão de dólares”, resume ao Observador Joshua Shifrinson, professor associado na Universidade norte-americana de Maryland, que considera que o único beneficiado com adesão seria a própria Ucrânia. “Ao ouvir os decisores norte-americanos e os líderes dos países da NATO é uma questão de ‘quando’ e não ‘se’, mas creio que na prática ainda é uma questão em aberto“, explica, acrescentando que a guerra na Ucrânia abriu os olhos de muitos governantes e que os lembrou que precisam de ser cuidadosos para não arriscar manobras que conduzam a conflitos.

Shifrinson não espera que a NATO alguma vez o anuncie, mas que “poderá perpetuar o mito de que a Ucrânia irá um dia juntar-se à aliança sem nunca realmente perseguir isso”. Este cenário, defende, é particularmente perigoso para a Ucrânia, uma vez que deixa a Rússia em permanente alerta para uma mudança do seu estatuto no organismo, mas mais favorável à própria NATO, que assim “não fica presa” ao artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte — um ataque a um é um ataque a todos. “Isto é uma situação trágica porque a Ucrânia ligou o seu futuro à aliança e, ao mesmo tempo, a Rússia decidiu que o seu futuro político envolve impedir a Ucrânia de estar demasiado próxima do Ocidente. A Ucrânia poderá ficar vulnerável em perpetuidade, a Rússia em alerta em perpetuidade, o que é uma tragédia para o povo ucraniano.”

“É sem dúvida mais importante obter as condições certas do que estabelecer um prazo hipotético que, muito provavelmente, não seria respeitado.”
Jamie Shea, ex-oficial da NATO

Assumindo uma posição contrária, Jamie Shea sublinha que a adesão da Ucrânia à aliança transatlântica é uma questão de tempo, ligada à evolução da situação no campo de batalha. Invocando também o artigo 5.º, antecipa que vencer a guerra pode ser para a Ucrânia a única saída da sala de espera da NATO. “Uma continuação prolongada da guerra tornaria impossível uma adesão devido às preocupações de segurança dos EUA e de muitos aliados de que isto seria uma invocação imediata deste artigo e uma guerra com a Rússia”, aponta.

O único cenário que concebe sobre uma adesão a curto prazo é um acordo de paz que preserva a Ucrânia como um Estado “funcional e orientado para o Ocidente”. Sobre a falta de uma data para a adesão, o antigo oficial da aliança, que nela trabalhou durante mais de 30 anos, sublinha que para a NATO “é sem dúvida mais importante obter as condições certas do que estabelecer um prazo hipotético que, muito provavelmente, não seria respeitado”.

Conversações e reformas: os próximos passos

No antecipado longo caminho para vir a integrar a NATO, a Ucrânia já viu uma redução do nível de burocracia quando os parceiros deixaram cair a exigência do Plano de Ação para a Adesão (MAP, na sigla em inglês), que a organização descreve como um “um programa de aconselhamento, assistência e apoio prático adaptado às necessidades individuais dos países que desejam ser membros da Aliança”. Na segunda ronda de alargamento da organização no pós Guerra Fria este foi um passo para a entrada de sete membros (Bulgária, Estónia, Letónia, Lituânia, Roménia, Eslováquia e Eslovénia) e é nesta fase que se encontra atualmente a Bósnia-Herzegovina, desde que foi convidada a fazê-lo em 2010. E é uma fase em que vários países se demoram, como também exemplifica o caso da Macedónia do Norte, que participou no programa de 1999 até aderir à NATO onze anos depois.

A Ucrânia não vai ter de cumprir este programa, à semelhança da Finlândia e da Suécia, que no ano passado puseram um fim a uma política de décadas de neutralidade após o início da invasão russa. Remover o MAP do processo, a que a Rússia reagiu com um nova escalada de ameaças, é uma “concessão significativa” da NATO e vai permitir à Ucrânia tornar-se um membro “rapidamente” depois do fim da guerra, antecipa Jamie Shea, também membro do think tank Chatham House.

“Será uma longa conversa sobre a relação política, económica e diplomática entre os membros da NATO, e também da União Europeia, com a Ucrânia."
Joshua Shifrinson, professor associado na Universidade norte-americana de Maryland

“Como recentemente admitiram os dois países nórdicos sem exigir um MAP, seria injusto impô-lo a Kiev, especialmente tendo em conta que a guerra acelerou a adaptação do país aos padrões militares, doutrina e equipamento”, refere. Mas se esta foi uma vitória na cimeira de Vilnius, que nem por isso contentou completamente o Presidente ucraniano, não ficou claro o que se segue e há obstáculos a ter em conta.

Os países nórdicos e bálticos são mais favoráveis ao alargamento da NATO à Ucrânia, prova disso é um artigo de opinião publicado em julho no Washington Post pelos ministros dos Negócios Estrangeiros da Dinamarca, Estónia, Finlândia, Islândia, Letónia, Lituânia, Noruega e Suécia, que apelaram à adesão do país liderado por Voldoymyr Zelensky. Já Estados Unidos e Alemanha serão mais difíceis de convencer, preocupados com a possibilidade de uma escalada no conflito e defendendo que Kiev ainda tem de fazer várias reformas para se juntar à aliança. E de futuro nada impede que surja uma nova coligação de países que se oponha, avisa ainda Joshua Shifrinson.

Ainda que assumam posições diametralmente opostas sobre a importância da adesão da Ucrânia à NATO, ambos os investigadores ouvidos pelo Observador destacam que o país em guerra já está a avançar em muitas das reformas que tradicionalmente fariam parte do Plano de Ação para a Adesão. Isso é particularmente visível no plano militar, devido aos numerosos pacotes de armamento enviados pelos parceiros e ao treino que milhares de soldados ucranianos receberam no estrangeiro e que permitiram uma adaptação ao modelo da aliança transatlântica.

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Na cimeira de Vilnius a Ucrânia viu cair o requerimento do Plano de Ação para a Adesão

POOL/AFP via Getty Images

O sucesso militar é “vital” para um caminho de adesão, sublinha Jamie Shea. “Um dos argumento de Kiev é que o seu exército vai ser capaz de defender a NATO contra a Rússia no futuro — tanto quanto a NATO será necessária para defender a Ucrânia. Se a atual contraofensiva falhar, este argumento vai perder muita do sua credibilidade”, afirma. O sucesso militar, porém, não é suficiente e “é preciso que Kiev mantenha os esforços de reforma nos setores políticos, económicos e legais”. São esperadas reformas, em particular, no sistema judiciário, na liberdade de imprensa e na luta contra a corrupção — este último um dos principais setores a que o Presidente Zelensky tem dedicado a sua atenção. Tudo isto parte do receio de que, quando a guerra acabar, a Ucrânia “volte a cair em maus hábitos antigos”.

Sobre o que esperar dos próximos tempos: “conversações”, resume numa palavra Joshua Shifrinson. A agenda deverá ser marcada por temas como a reconstrução da Ucrânia no pós-guerra, a recuperação da sua economia e da sua indústria de defesa. “Será uma longa conversa sobre a relação política, económica e diplomática entre os membros da NATO, e também da União Europeia, com a Ucrânia, mesmo que o relacionamento militar melhore daqui para a frente”, antecipa.

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