A Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) ainda não entregou ao Governo o plano para a criação de um fundo sísmico em Portugal, um trabalho que devia ter sido concluído até março. Esse foi o prazo definido, em outubro (de 2023), num despacho publicado pelo anterior Governo. Mas, ao que o Observador apurou, antes da pausa para as férias de verão ainda estava em curso o trabalho técnico da ASF – um atraso que, em parte, se deverá à queda do Governo de Costa e aos meses que passaram até à chegada de um novo executivo.

Em outubro de 2023, o então secretário de Estado das Finanças, João Nuno Mendes, e a então secretária de Estado da Proteção Civil, Patrícia Gaspar, assinaram um despacho onde se incumbia a ASF de desenvolver, em articulação com as entidades relevantes, os trabalhos necessários para a criação de um sistema de cobertura do risco de fenómenos sísmicos no país.

O despacho reconhecia que “o território nacional apresenta uma exposição assinalável ao risco sísmico” e, perante essa realidade, existe uma “falta de proteção relevante no que se refere à cobertura deste risco”. Regra geral, assinalava o Governo, num seguro habitacional, a proteção contra sismos tende a ser apenas uma “cobertura adicional, em regime facultativo”, que “nem sempre está disponível e que está associada, geralmente, a seguros de ‘incêndio e elementos da natureza’ ou ‘multirriscos'”.

O resultado prático é aquele que foi descrito nesta segunda-feira, uma vez mais, pela Associação Portuguesa de Seguradores (APS): “47% das habitações não tem qualquer seguro, 34% têm seguro de incêndio ou multirriscos, mas sem cobertura de risco sísmico, e apenas 19% têm seguro com cobertura de risco sísmico”. Ou seja, só uma em cada cinco casas em Portugal tem seguro contra sismos.

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Apenas uma em cada cinco casas tem seguro contra sismos, alerta Associação Portuguesa de Seguradores

No despacho de outubro, o (anterior) Governo salientava a “gravidade e a extensão” dos impactos económico-sociais que um grande sismo poderá ter em Portugal. Entre os objetivos do trabalho que a ASF passou a desenvolver – “em articulação com as entidades relevantes” – estava “propor um modelo de sistema de cobertura do risco de fenómenos sísmicos” e “elaborar um anteprojeto de diploma legal” para que esse fundo sísmico fosse criado.

ASF diz que planeia fechar relatório preliminar até ao final do ano

O plano era que até ao final do primeiro trimestre de 2024 fosse apresentado um relatório preliminar com uma proposta de modelo concreto. Esse relatório preliminar seria levado a consulta pública e, depois dessa fase, seria elaborado o relatório final.

Mas o trabalho está atrasado. O Ministério das Finanças, contactado, não quis fazer quaisquer comentários mas, ao que o Observador apurou, o relatório (preliminar) ainda não foi entregue. O tema foi discutido numa reunião recente com a presidente da ASF, Margarida Corrêa de Aguiar, no Terreiro do Paço, mas não foi dada uma previsão concreta acerca de quando o trabalho estará concluído.

[Já saiu o quarto episódio de “Um Rei na Boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. Também pode ouvir aqui o primeiro, o segundo e o terceiro episódios]

Outra fonte, próxima deste processo, referiu ao Observador que a mudança de Governo não ajudou a que se cumprisse o prazo estipulado (o despacho de 2023 foi feito a poucas semanas da demissão de António Costa, que aconteceu no início de novembro). Isto porque este não é um trabalho que a ASF faz de forma isolada, afirma esta fonte.

De acordo com a informação recolhida, o objetivo da ASF é propor um modelo para um fundo sísmico mas, também, dar “opções” diferentes ao Executivo para que este possa decidir (em matérias como, por exemplo, o nível de alocação financeira pública inicial). Se o anterior Governo já tinha, à medida que a ASF ia fazendo o trabalho, “sinalizado” algumas das opções que poderia ver com melhores olhos, a mudança de executivo acabou por travar o processo.

Contactada, fonte oficial da ASF confirmou que os trabalhos continuam “em curso”. “A ASF continua a desenvolver os trabalhos técnicos adicionais necessários a fundamentar as opções a submeter à apreciação do Governo e que, após a sua decisão, serão refletidas num anteprojeto legislativo”, diz o supervisor, salientando que “devido à complexidade técnica inerente ao processo, o prazo para apresentação do relatório preliminar decorre até ao final do corrente ano“.

O caderno de encargos que a ASF tem em cima da mesa

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A Autoridade de Supervisão dos Seguros e dos Fundos de Pensões (ASF), um supervisor autónomo, recebeu em outubro de 2023 o seguinte caderno de encargos:

  • Definir o plano de trabalhos e o respetivo cronograma;
  • Recuperar e atualizar os trabalhos existentes sobre a cobertura do risco de fenómenos sísmicos em Portugal, considerando os desenvolvimentos que tenham ocorrido;
  • Identificar e promover a participação das entidades relevantes, em especial junto do setor público e do setor segurador, designadamente, na obtenção de informação e de elementos necessários ao desenvolvimento dos trabalhos;
  • Propor um modelo de um sistema de cobertura do risco de fenómenos sísmicos e respetivos mecanismos de governação e de financiamento;
  • Elaborar um anteprojeto de diploma legal que crie e regule o sistema de cobertura do risco de fenómenos sísmicos;
  • Propor as bases da extensão do sistema à cobertura de riscos decorrentes de outras catástrofes naturais.

Um trabalho “com barbas” que, esperam as seguradoras, poderá agora “acelerar”

Foi ainda em 2011, no governo liderado por José Sócrates e Fernando Teixeira dos Santos (nas Finanças), que foi constituído com o então Instituto de Seguros de Portugal (atualmente ASF) um grupo de trabalho para o desenvolvimento de um Sistema de Proteção do Risco de Fenómenos Sísmicos. O principal objetivo era criar um “mecanismo de acumulação e capitalização de meios financeiros, a mobilizar em caso de ocorrência de um fenómeno sísmico”.

Esse seria um fundo cuja gestão seria entregue a uma entidade autónoma, cabendo ao (então) ISP a respetiva supervisão. Esse era o modelo que tinha sido recomendado alguns anos antes, em 2007, pelo Fundo Monetário Internacional.

Porém, com a crise financeira que se seguiu, este trabalho viria a esmorecer e, por isso, mais de uma década depois, em 2023, o Governo considerou ser “necessário atualizar os respetivos estudos de impacto e de direito comparado subjacentes, de forma a garantir a adaptação técnica e jurídica do modelo, tomando também em consideração as iniciativas que têm vindo a ser desenvolvidas neste âmbito a nível internacional”. Daí a “encomenda” à ASF, feita no despacho de outubro de 2023.

Antes, o Conselho de Ministros de 11 de agosto de 2021 já tinha aprovado uma Estratégia Nacional para a Proteção Civil Preventiva 2030 e, aí, também se estabeleceu como um dos objetivos estratégicos a criação de um Sistema de Proteção de Riscos Catastróficos.

Mas a evolução nesta área tem sido lenta, consideram as companhias de seguros. A expectativa da Associação Portuguesa de Seguradores (APS) é que “o sismo sentido [nesta segunda-feira] seja determinante para acelerar a decisão de criação de um mecanismo que ajude os cidadãos a enfrentar e mitigar as perdas que um sismo de grande intensidade pode causar no nosso país, contribuindo, dessa forma, para o restabelecimento da normalidade possível da vida das pessoas após a ocorrência deste tipo de acontecimentos”.

“Não estamos perante uma mera incerteza, mas sim perante um verdadeiro risco, de ocorrência certa, em momento incerto”, disse a APS, em comunicado.

Apenas uma em cada cinco casas tem seguro contra sismos, alerta Associação Portuguesa de Seguradores

O modelo a propor pela ASF, na prática, seguiria modelos já estabelecidos em países próximos que também têm risco sísmico agravado – como Espanha, Turquia e Marrocos. Na prática, o modelo poderia basear-se numa Parceria Público-Privado, com governação autónoma (supervisionada pela ASF), em que o Estado participa como último recurso (depois dos riscos serem cobertos pelas seguradoras e resseguradoras internacionais).

Tal fundo receberia contribuições de pessoas e empresas (incorporadas nos prémios dos seguros que pagam) e os custos com sinistros seriam cobertos de acordo com uma estrutura de diferentes níveis de responsabilidades partilhadas entre seguradoras, resseguradoras e Estado.

Enquanto não se tomam decisões sobre um eventual fundo com intervenção pública e mutualização de risco, a APS já defendeu que “o risco sísmico devia ser coberto de forma obrigatória” nos seguros pagos pelas pessoas, individualmente. Poderia ser algo que avançava de forma “faseada”, defendeu em outubro de 2022 o presidente da APS, José Galamba de Oliveira, em entrevista ao Observador.

“Para termos uma ideia, para um capital de reconstrução de 150 mil euros – não é o valor comercial da casa, é o capital de reconstrução médio – estamos a falar de 25 euros por ano até 75 euros por ano, conforme as zonas com menor ou maior risco” e o tipo de construção, explicou José Galamba de Oliveira. “25 euros por ano são 2 euros por mês, obviamente que para algumas famílias até pode ser importante mas nós pensamos que isto podia ser feito de forma faseada ao longo dos anos, por exemplo começando por quem está em propriedade horizontal, onde já é obrigatória a cobertura para incêndio. E, depois, mais tarde, alargar a vivendas, outras zonas do país, etc“, afirmou.

O modelo imaginado pela APS “poderia ser semelhante ao que está a funcionar em muitos outros países, incluindo países que já sofreram eventos deste tipo, eventos sísmicos importantes, como a Nova Zelândia, há uns anos”, explicou Galamba de Oliveira.

“Basicamente, os prémios associados a esta cobertura iriam para um fundo e esse fundo iria comprar resseguro internacional para ter condições para, desde o momento-zero, acudir numa situação destas”, explicou o responsável, acrescentando que “pelos contactos que fizemos com resseguradores internacionais, no momento-zero poderíamos ter uma capacidade de seis mil milhões de euros para acudir à reconstrução de habitações“.

No caso de “acontecer [um grande sismo], o que nos mostra a experiência noutros países é que numa situação catastrófica é o Estado que é sempre chamado a intervir. Mas o Estado também tem os recursos limitados e a primeira prioridade vai sempre para os serviços e infraestruturas públicas, redes de água, redes de transporte, pistas do aeroporto, hospitais etc“, notou Galamba de Oliveira.

“As habitações acabam por ser relegadas para segundo plano e, portanto, aqui o setor segurador pode ter um papel – que é rapidamente fazer chegar fundos às famílias para que possam reconstruir ou resolver a situação de outra forma, o mais rapidamente possível”, concluiu o responsável.

“Sem seguros e saúde privada, o SNS estaria numa situação ainda mais dramática”, diz presidente da APS