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Quando o veterano jornalista Bob Woodward publicou o seu livro “Medo”, sobre os dois primeiros anos do mandato de Donald Trump depois de ser eleito em 2016, foi possível espreitar pelo buraco da fechadura da Casa Branca. Um pequeno episódio ilustrava o caos dentro uma administração que teve quatro chefes de gabinete em quatro anos: quando Trump decidiu cancelar o acordo de livre comércio com a Coreia do Sul, o conselheiro Gary Cohn roubou o papel da secretária do Presidente, por temer que aquela medida pusesse em causa o programa que deteta lançamentos nucleares da Coreia do Norte. “Ele nunca pode ver aquele documento. É preciso proteger o país”, decretou Cohn à altura. Trump, aparentemente, não voltou a lembrar-se do assunto.
É altamente improvável que uma situação semelhante se volte a repetir neste novo mandato de Trump. Por um lado, porque o próprio Presidente tem mais experiência; por outro, porque agora está rodeado de pessoas que lhe são leais acima de tudo. Figuras como o antigo chefe de gabinete John Kelly ou o ex-secretário da Defesa Jim Mattis, representantes do Partido Republicano tradicional, já não terão lugar nesta Casa Branca. Os que os vão substituir são revolucionários, que se veem como líderes de um novo movimento conservador e anti-sistema.
É pelo menos essa a perceção de muitos dentro da “bolha” de Washington DC, da esquerda à direita. No primeiro campo, temos Jeff Hauser, antigo conselheiro dos democratas que agora dirige a ONG Revolving Doors, pelo combate à corrupção e transparência na política. Hauser encontra-se com o Observador no pátio do seu apartamento, no coração da cidade. “Aquelas figuras históricas do Partido Republicano que estavam lá na primeira administração desapareceram”, decreta, para início de conversa, referindo-se a nomes como Kelly e Mattis. “Agora temos uma superstrutura ligada por algo que as pessoas tendem a subestimar: a ideologia.” O mesmo reconhece ao Observador um antigo responsável republicano que fez parte de um governo do passado: “Esta é uma administração Trump, não é uma administração do Partido Republicano.”
Para já, todos partilham a mesma palavra: cautela. “Washington ainda está a digerir o que é ter Trump de volta. Tudo isto pode depender dos nomes que ele ainda vai escolher [para o governo]”, reforça Brody Mullins, que também se encontra com o Observador num dos bairros residenciais da capital. Antigo jornalista do Wall Street Journal que passou anos a cobrir as áreas de economia, lobbying e financiamento de campanhas, escreveu recentemente (em co-autoria com o irmão Luke Mullins, jornalista do Politico) o livro “The Wolves of K Street” (“Os Lobos da K Street”, sem edição em português). O nome refere-se à rua da cidade que reúne mais lobistas por metro quadrado, a menos de 10 qulómetros do local onde nos encontramos.
Brody Mullins garante que, pela primeira vez em muitos anos, a máquina de DC está em choque e sem saber como reagir. “Normalmente, dois dias depois da eleição de um republicano o pessoal da K Street estaria a festejar. Hoje estão completamente aos papéis”, explica ao Observador o repórter, vencedor de um Pulitzer.
“Se Harris tivesse sido eleita, eles estariam muito mais confortáveis, já tinham arregimentado uma série de democratas para lidarem com a próxima administração. Esta é uma administração republicana, mas os lobistas não sabem como chegar a ela, porque Trump é anti-sistema. Não vem a DC para as festas de cocktails, não conhece estas pessoas. E não quer saber delas.”
A revolução económica da nova administração irá além das tarifas. “Musk vai ser a pessoa não-eleita com mais poder em Washington”
O que não significa que não haja já sinais sobre o que esperar desta nova administração, nomeadamente na área económica, sobretudo depois do conhecimento acumulado com a primeira administração Trump. “Quando foi eleito há oito anos, a bolha de DC achava que ele ia acabar por se tornar num ‘republicano à Reagan’: impostos mais baixos, menos regulação, comércio livre e imigração aberta. Aquilo que vimos é que ele cumpriu os dois primeiros pontos, mas, no que diz respeito ao comércio livre e à imigração, deu uma volta de 180 graus”, resume Mullins.
Agora, com o conhecimento acumulado dessa experiência, a que se soma um novo conjunto de figuras “revolucionárias”, haverá mais foco, concordam os especialistas ouvidos pelo Observador. “Têm um plano muito claro, muito diferente do das anteriores administrações e vão ser muito ativos a aplicarem-no rapidamente”, prevê o antigo responsável do Partido Republicano. “Primeiro que tudo, serão as tarifas” — um dos pontos mais anunciados por Trump durante a sua campanha, a de aplicar mais tarifas aos bens comprados a países estrangeiros, nomeadamente à China, mantendo o guião anti-comércio livre do mandato anterior.
Também na área da imigração o tom deverá manter-se o mesmo. Mas, desta vez, figuras como Jeff Hauser preveem que a equipa de Trump vá ainda mais longe: “Tenho medo que Trump e Stephen Miller revertam as proteções de asilo que existem”, nomeia, referindo-se ao antigo conselheiro de Trump, considerado o arquiteto da Muslim Ban. “Miller passou os últimos quatro anos a preparar-se. Da primeira vez, era um antigo speechwriter sem qualificações para aquele lugar. Agora é mais do que isso”, diz Hauser, que é também o antigo diretor da Coligação para uma Reforma Abrangente da Imigração. “Prefiro um tipo com políticas desumanas que não tem qualificações do que um tipo com políticas desumanas que as tem”.
Mas as tarifas e a imigração não são as únicas áreas onde uma nova administração Trump pode ser revolucionária. O jornalista Brody Mullins considera que muitas das figuras que rodeiam atualmente o futuro Presidente, com destaque para JD Vance, Peter Thiel e Elon Musk, são defensoras de um novo estilo de capitalismo contra “as grandes empresas”. “Às vezes oiço-os falar contra as tecnológicas e penso ‘Será que isto é a Elizabeth Warren com uma máscara do Vance?’”, comenta entre risos, referindo-se à senadora democrata da ala mais à esquerda do partido.
Mas como se explica essa postura por parte de um futuro vice-presidente que foi investidor de capitais de risco e de um empresário que é dono da Tesla, da SpaceX e do X? “A linha deles é contra as grandes empresas cotadas em bolsa, que consideram que representam as elites da costa leste e oeste, permeáveis a uma cultura woke. Tipos como o Peter Thiel acham que o futuro está em start ups que vão ser ‘o novo Facebook’ e substituir as atuais gigantes tecnológicas”, considera Mullins.
No meio disto, uma coisa parece evidente tanto para o jornalista como para o diretor da Revolving Doors: “O grande vencedor desta eleição é JD Vance”, porque foi ele que conseguiu convencer estes empresários a doarem milhões a Trump. “Musk deu mais de 100 milhões para a campanha. Uma pessoa como Trump vai querer recompensá-lo”, nota Mullins.
O movimento de recompensa já parece evidente ao longo dos últimos dias. Menos de uma semana depois da eleição, Donald Trump já anunciou que o empresário vai ter um cargo como diretor de um Departamento de Eficiência Governamental e Musk já teve direito a participar numa chamada com o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky.
O grau de influência que Musk pode vir a ter é debatido em DC. Há quem pense que os acionistas da Tesla e da SpaceX acabarão por convencer o empresário a reduzir a sua presença pública. Outros, como Brody Mullins, traçam um cenário diferente: “Cada vez mais as empresas estão envolvidas nas guerras, não são só os governos. Musk, se quiser, consegue desligar o Starlink da Ucrânia e ligá-lo à Rússia e sabe-se lá o que acontece”, afirma. “Ele já tem um monopólio com os foguetões. Falamos dos oligarcas russos… Não é isso que Musk é? Ele vai ser a pessoa não-eleita com mais poder em Washington.”
Donald Trump foi eleito Presidente dos EUA. Que papel pode ter Elon Musk?
Insiders estão preocupados com apoio a Kiev e amnistias do 6 de janeiro. Mas ainda acreditam no sistema “desenhado há mais de 200 anos”
As ligações da economia à política externa são uma das incógnitas desta nova administração, agravadas pelo facto de haver uma dose de imprevisibilidade num Presidente que garante que consegue acabar guerras “com um telefonema” e que parece querer manter uma boa relação com a Rússia, enquanto antagoniza o Irão — apesar de estes dois países manterem uma aliança de interesses, com o Irão a fornecer armamento aos russos para combaterem na Ucrânia.
O antigo responsável republicano ouvido pelo Observador diz-se particularmente preocupado com o que a futura administração fará nesta área: “Nesta matéria, o Presidente tem autoridade total concedida pela Constituição. Se ele decidir que não apoiamos a Ucrânia, não há muito que o Congresso ou qualquer outro órgão possa fazer”, sentencia. Com essa atitude, a que se soma a questão da NATO, arrisca alienar os europeus — algo que este antigo operacional político considera contraproducente. “A China é um grande país, não conseguimos enfrentá-la sozinhos. Andarmos a fazê-lo enquanto esmurramos os nossos aliados não me parece muito inteligente. Gostava que eles tivessem aprendido algo com a experiência do primeiro mandato, mas… Não tenho muita confiança nisso.”
Por outro lado, este republicano não tem dúvidas de que há uma área onde o novo Presidente não terá hesitações: em conceder amnistias a si mesmo, nos vários processos judiciais que o envolvem, bem como aos que invadiram o Capitólio a 6 de janeiro. “Ficaria chocado se isso não acontecesse e não vejo ninguém dentro da Casa Branca a levantar-se e a dizer que não concorda com isso”, diz.
Decisões que entristecem o antigo membro de outra administração republicana: “Sou um forasteiro neste novo partido. Mais do que isso: sou uma espécie já extinta”, comenta com uma gargalhada. “Digo-lhe só isto: estou grato por, neste momento, já não trabalhar dentro de Washington.”
Jeff Hauser partilha do mesmo pessimismo. Para além da imigração e da influência de empresários como Musk, teme o despedimento de funcionários públicos em áreas como os departamentos da Agricultura e do Ambiente. “Estou muito preocupado com o futuro do meu país. Não fico feliz com o que o resultado diz do nosso povo, mas não acho que este povo mereça o que aí vem”, diz, sombriamente.
Mas, apesar de tudo, não alinha nas previsões mais negras de alguns membros do seu partido, que se apressaram a decretar o fim da democracia norte-americana com o regresso de Donald Trump ao poder. “Os retrocessos são sempre graduais. Não acho que haja a hipótese de não termos uma eleição daqui a quatro anos; ela vai acontecer”, assegura.
O jornalista Brody Mullins concorda. Apesar de o poder estar agora nas mãos de figuras anti-establishment, garante que o sistema de pesos e contrapesos da democracia americana irá continuar a funcionar. “O governo dos EUA foi construído de forma a tornar difícil que uma só pessoa comande tudo. Foi desenhado há mais de 200 anos precisamente para prevenir situações assim”, afirma. “À altura, era para evitar um rei ou um tirano. Agora, acabará por servir para isto.”