Quando, há precisamente três semanas, o bispo de Setúbal surgiu numa conferência de imprensa em Fátima para anunciar a criação de uma comissão independente para estudar a história dos abusos sexuais de menores no contexto da Igreja Católica em Portugal ao longo das últimas décadas, ficaram no ar mais perguntas que respostas. D. José Ornelas, o atual presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), argumentou que não pretendia condicionar à partida a comissão que, finalmente, irá investigar a fundo aquilo que os bispos portugueses procuraram adiar repetidamente nos últimos anos: a verdadeira dimensão da crise dos abusos de menores na Igreja num dos países mais católicos da Europa.
Durante as últimas quatro décadas, à medida que os escândalos e investigações se foram sucedendo por todo o mundo católico — e a sociedade se deu conta dos muitos esqueletos escondidos nos armários da Igreja —, a hierarquia eclesiástica portuguesa foi desvalorizando a crise com o argumento central de que, em Portugal, o problema não tinha uma dimensão comparável à de outros países. Eram apenas “casos pontuais”, argumentaram vezes sem conta os bispos portugueses, que foram recusando investigar o problema num contexto histórico e integrado.
Três anos depois de o Papa Francisco ter chamado de urgência ao Vaticano os bispos de todo o mundo para discutir a crise que levou a Igreja global a uma situação de rutura, os bispos portugueses decidiram finalmente seguir o exemplo de outros países. Num contexto fortemente marcado pelo devastador relatório publicado em França no início de outubro (que estimou em mais de 300 mil as vítimas de abuso às mãos da Igreja nos últimos 70 anos), os bispos portugueses delegaram no reputado médico pedopsiquiatra Pedro Strecht — que fez parte do gabinete de apoio às vítimas de pedofilia na Casa Pia — a tarefa de constituir uma comissão independente para levar a cabo um estudo semelhante em Portugal: a Comissão Independente para Estudo dos Abusos de Menores na Igreja (CIEAMI).
Três semanas após o anúncio feito em Fátima, foram conhecidos os nomes sonantes que vão integrar a comissão — o antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, o psiquiatra Daniel Sampaio, a socióloga Ana Nunes de Almeida, a assistente social Filipa Tavares e a cineasta Catarina Vasconcelos — e reiteradas as promessas de independência. Numa conferência de imprensa em Lisboa, Pedro Strecht assegurou que a comissão se vai organizar “de forma autónoma e independente da própria Igreja Católica”, embora o financiamento e os meios provenham da estrutura eclesiástica. Apesar disso, o coordenador da comissão assegurou que os elementos da estrutura não vão depender das vontades da Igreja: “E se porventura eu algum dia me sentir coagido a partir dessas situações, serei o primeiro a dizer ‘Muito obrigado, mas paro por aqui’.”
Contudo, a maioria das perguntas continua sem resposta. O que vai, exatamente, fazer a comissão? Com que grau de independência da Igreja? Com que meios? Com que nível de proatividade? Com que metodologias? Pedro Strecht remeteu para janeiro uma nova conferência de imprensa, já com a presença de todos os membros da comissão, para detalhar os métodos e os procedimentos que a estrutura vai usar para elaborar o seu relatório final — prometido, para já, para o final de 2022.
“Que relatem, finalmente e sem medo, o que lhes aconteceu”
Uma parte considerável do discurso de Pedro Strecht nesta quinta-feira foi voltado para as vítimas e para a necessidade de criar um espaço seguro para que elas possam denunciar os casos — um discurso em forte contraste com a prática histórica do encobrimento por parte da Igreja. “O encorajamento para depoimento das vítimas requer um habitualmente longo tempo de espera e conquista de confiança para que estas sintam que a sua palavra é importante para relatar experiências traumáticas das suas vidas passadas”, afirmou o pedopsiquiatra.
“Por isso, apelamos desde já a todas e todos quantos possam ter sido vítimas destes crimes hediondos para que falem. Que relatem, finalmente e sem medo, o que lhes aconteceu”, pediu Pedro Strecht. “Mesmo perante naturais hesitações, completamente aceitáveis diante de situações sobre as quais podem ter passado décadas, tocando agora em assuntos que não desejam voltar a fazer emergir, por favor, confiem na vossa voz interior e na utilidade de a partilhar para que nada de semelhante possa continuar a acontecer.”
A escuta das vítimas será, com efeito, o elemento central do trabalho da comissão, assegurou Pedro Strecht, que salientou aos jornalistas que a estrutura será “acima de tudo uma equipa de estudo e não uma equipa de investigação” — embora preveja, à partida, uma colaboração com a Polícia Judiciária no caso de serem encontrados crimes que ainda não prescreveram. O objetivo, contudo, será pintar um retrato histórico tão fiel quanto possível desta realidade, o que dependerá sempre da capacidade que a comissão tiver de desenterrar os casos que estiverem no fundo dos arquivos da Igreja.
“Vamos estar atentos a tudo aquilo quanto possa ter existido retrospetivamente. A ideia é mesmo essa. Não delimitamos, à semelhança de outras comissões, um tempo anterior fixo. Não dizemos que é a partir de 1950, a partir de 1960 ou 1970. É a partir da idade mais anterior de qualquer pessoa que se venha a referenciar ou de dados significativos que venhamos obviamente a conhecer”, disse Pedro Strecht.
Restam ainda muitas dúvidas sobre como tudo irá funcionar, mas o coordenador da comissão deixou algumas respostas: haverá uma página de internet e vários contactos públicos (incluindo telefónicos e de correio eletrónico) que poderão ser usados por qualquer pessoa para expor um caso de que tenha conhecimento ou de que tenha sido vítima. Além disso, a comissão terá também ao seu dispor um espaço físico autónomo da Igreja — serão instalações na cidade de Lisboa, descaracterizadas — onde os membros da estrutura poderão reunir-se para trabalhar ou para ouvir testemunhas. O sigilo pessoal e profissional será garantido a todas as vítimas que expuserem as suas histórias.
A Igreja paga, mas não manda (e vai ter de colaborar)
A principal questão em torno da nova comissão prende-se, naturalmente, com a independência. Em novembro, D. José Ornelas tinha garantido que a comissão gozaria “de real independência para investigar as coisas”. Um dos primeiros sinais de que esta promessa será cumprida é a inexistência de qualquer membro do clero entre os elementos que compõem a comissão — uma pista simbólica, mas significativa de que a Igreja tem vontade de deixar o trabalho nas mãos dos especialistas.
Porém, uma coisa é certa: quem vai pagar a investigação histórica é a própria Igreja Católica, o que motivou questões sobre a real independência da comissão.
“Eu penso que é óbvia e genuína a vontade da Igreja Católica portuguesa, seguindo as orientações do Papa, de ela própria querer saber o que aconteceu. Porque também o todo não pode ser tomado a partir, apenas, da parte”, disse Pedro Strecht. “Contamos com a total disponibilidade e interesse da própria Igreja de conhecer a verdade e de chegarmos aonde chegarmos.”
O coordenador assumiu que, no que respeita aos meios para a comissão realizar o seu trabalho, tudo está “a cargo da Conferência Episcopal, sem que isso nos torne dependentes, ou não livres de executar o nosso trabalho”. Pedro Strecht também assegurou que já existe um orçamento provisório para o trabalho da comissão, mas recusou avançar valores concretos. Disse apenas que fica longe dos 2,5 milhões de euros que foram usados pela comissão análoga em França, “mas é um orçamento lúcido, para tudo aquilo de que venhamos a precisar”.
Sobre se a dependência financeira da Igreja Católica significaria também uma dependência em relação ao conteúdo da investigação, Pedro Strecht assegurou que não — e comparou este financiamento a um projeto de investigação financiado por alguma instituição privada, por exemplo um banco, através de uma candidatura pública. Ainda assim, o coordenador assegurou: se houver pressões da Igreja, ele é o primeiro a demitir-se. E, além disso, Pedro Strecht assumiu que a comissão poderia aceitar ofertas de “outros elementos da sociedade civil”, e deu um exemplo: “Imaginando que chegamos ao fim e temos um texto em relatório. Haverá alguém interessado em publicar?”
Todavia, a comissão de estudo terá de se mover numa linha muito ténue no que respeita à sua relação com a Igreja Católica. Por um lado, o grupo de trabalho foi criado pela Igreja e, apesar de ser financiado por ela, pretende-se independente. Por outro lado, o sucesso do estudo vai depender da colaboração que a Igreja estiver disposta a dar aos investigadores. É um equilíbrio difícil de obter — e Pedro Strecht deixou o aviso: “A Comissão está consciente de que o trabalho que a espera e respetivos resultados finais não têm qualquer a priori e estão, de igual modo, dependentes da própria capacidade colaborativa da Igreja Católica Portuguesa.”
O problema dos arquivos
É aqui que entra um dos mais significativos problemas neste processo: a questão dos arquivos da Igreja Católica em Portugal. É que não há um arquivo da Igreja, mas pelo menos 21 arquivos — um por cada diocese católica. É lá que poderão estar enterrados documentos como cartas de bispos e outros relatos de casos de abuso (veja-se, por exemplo, este caso noticiado pelo Observador em 2019). Porém, a jurisdição de cada um destes 21 arquivos está com cada bispo diocesano — e não com a Conferência Episcopal, que não tem poder executivo sobre as dioceses.
O problema? Nem todos os bispos estão igualmente alinhados na necessidade de investigar a fundo a crise dos abusos sexuais de menores cometidos pelo clero.
Basta lembrar como, entre 2019 e 2020, na sequência da cimeira do Vaticano, vários bispos portugueses se pronunciaram contra a criação de comissões diocesanas de proteção de menores. O soundbite mais famoso ficou a cargo do bispo do Porto, D. Manuel Linda, que disse à TSF que criar uma comissão para estudar os abusos sexuais na Igreja fazia tanto sentido como uma comissão “para estudar os efeitos do impacto de um meteorito na cidade do Porto”. O bispo de Lamego, D. António Couto, preferiu salientar que não pretendia criar uma comissão para “tratar um assunto que não existe”. E o bispo do Funchal, D. Nuno Brás, rejeitou criar uma comissão por considerar que não existiam “casos que justifiquem” a investigação.
No final, todas as dioceses acabariam por ser obrigadas pelo Papa Francisco a avançar com uma comissão de proteção de menores — mas as resistências mantiveram-se no seio da Igreja portuguesa. Duas semanas antes da reunião magna dos bispos em Fátima, o Observador dava conta da existência de vários bispos céticos a uma investigação meticulosa ao passado. O bispo de Beja, D. João Marcos, perguntava mesmo: “O que é a verdade? Será que proclamar a verdade é escarafunchar na porcaria só pelo escândalo? Só para vender jornais?”
Tudo isto poderá agora criar entraves ao acesso da comissão independente aos arquivos eclesiásticos.
“A questão da revelação ou não dos arquivos históricos da própria Igreja é uma situação que sei que se tem posto em várias circunstâncias e que abordámos logo que formámos a comissão com o senhor D. José [Ornelas]”, assumiu Pedro Strecht na conferência de imprensa desta quinta-feira. “Obviamente, não sendo nós uma equipa de investigação, procuramos, se for necessário, vir a conhecer para apurar tudo aquilo que possa ter acontecido.”
No mesmo sentido, D. José Ornelas assegurou que a Igreja dará à comissão todos os meios para investigar, desde que com respeito pela privacidade dos dados pessoais e seguindo as sugestões da própria comissão — mas a conferência de imprensa acabaria por terminar sem um compromisso concreto em torno da questão dos arquivos.
O que é certo, para já, é que a comissão entra em funcionamento em janeiro do próximo ano e espera ter um relatório final pronto ainda durante 2022 — um prazo que o próprio Pedro Strecht assume ser “arriscado”, mas necessário para que o trabalho não pareça uma promessa vaga. “Delimitar um tempo é importante”, disse, admitindo que o decorrer do estudo poderá obrigar a comissão a alargar o prazo.
“Também tenho dúvidas de que um ano possa ser suficiente, mas num ano podemos produzir o suficiente para dizer se chega ou se vale a pena, a partir daí, haver outros estudos, e em que modos ou em que temas”, disse, lembrando que definir um prazo “faz parte de uma certa noção de justiça” para as vítimas, que já se confrontam habitualmente com um sistema de justiça que demora a dar respostas.
Por comparação, as investigações já concluídas noutros países prolongaram-se por períodos bastante mais longos. A comissão de inquérito na Austrália trabalhou durante cerca de quatro anos nas investigações e, em França, o relatório que deu a conhecer as mais de 300 mil vítimas de abusos sexuais cometidos por membros da Igreja demorou três anos a estar concluído.
A cronologia desta investigação tem também de ser lida à luz do calendário da Igreja Católica portuguesa. Em 2023, é esperada a visita do Papa Francisco a Lisboa e Fátima, a pretexto da Jornada Mundial da Juventude — que no verão daquele ano transformará Portugal num dos focos de maior atenção do catolicismo a nível global. O adiamento para 2023 da divulgação do relatório final da comissão (sobretudo se este incluir descobertas graves quanto à atuação da Igreja em Portugal) poderá capturar a atenção da opinião pública nesse ano.
Até porque o foco da investigação não estará apenas nos casos de abuso, mas também no modo como a Igreja lidou com eles. “O encobrimento é o que leva ao silenciamento de todos estes casos. Pode vir de fora, de pessoas que souberam e silenciaram, mas pode vir por vezes de dentro, os tais sentimentos de medo, de vergonha e de culpa que levam as pessoas a não falar”, disse Pedro Strecht, assegurando que a comissão tudo fará para perceber se a hierarquia da Igreja fez o que devia ter feito com todos os casos que foram identificados.
“É nosso desejo procurar saber tudo quanto possa ter ficado por esclarecer”, assegurou. “As pessoas que mudam de paróquia”, exemplificou, recordando a antiga prática disseminada dentro da Igreja de mudar padres abusadores de paróquia para ocultar os crimes. “Houve e há muitas práticas dessas que acabam por ser movimentos de tapar o sol com a peneira.”
“Não nos interessa, enquanto comissão, chegar ao final deste trabalho e fazer apenas um relato mais ou menos pormenorizado do que encontrámos. Para nós todos, interessa ainda concluir dando sugestões e traçando desafios que, obviamente, nos possam ajudar a todos e à própria Igreja a reconstruir-se“, acrescentou.
No fim de contas, reiterou várias vezes Pedro Strecht, tudo dependerá da capacidade que a comissão e a Igreja tiverem para convencer eventuais vítimas de que têm um espaço seguro para partilhar as suas histórias: “Não podemos mudar o passado, mas podemos sempre construir um futuro melhor e livre da repetição deste tipo de situação junto dos vossos filhos, netos ou simplesmente de todas as crianças e adolescentes em que certamente podemos rever partes de nós mesmos.”