Na ressaca da noite eleitoral norte-americana, Marisa Matias — com larga experiência no Parlamento Europeu e agora deputada do Bloco de Esquerda –, critica a União Europeia por não pôr em prática a autonomia estratégica que tanto apregoa e que agora volta à mesa de discussão com a vitória de Donald Trump sobretudo na questão diplomática. “Não creio que estivesse preparada antes, não creio que esteja preparada agora”, lamenta.
Em entrevista ao Observador, no programa “Sofá do Parlamento”, e apesar de considerar a vitória do Partido Republicano como uma “péssima noticia”, Marisa Matias não deixa de destacar o reforço de vozes mais à esquerda nestas eleições norte-americanas e o papel que vão desempenhar na “resistência” a Trump. Em contrapartida, a bloquista recusa a ideia de que os partidos considerados progressistas estão a ser penalizados por demasiado focados nas políticas identitárias. “O que é a política de Trump que não seja identitária?”, provoca a deputada bloquista.
Já no plano nacional, a deputada do Bloco de Esquerda condena as declarações de Ricardo Leão, presidente da Câmara de Loures e agora ex-presidente da Federação da Área Urbana de Lisboa do PS, acusando o socialista de “normalizar um discurso mais parecido com o do Chega”.
Sobre o incidente que resultou na morte de Odair Moniz, os protestos que daí resultaram e as reações que se seguiram, Marisa Matias recusa as acusações de aproveitamento político de que foi alvo o Bloco de Esquerda e diz considerar “estranho que só o Bloco tenha humanizado” este caso, numa crítica implícita ao PS e às demais forças de esquerda.
[Ouça aqui o Sofá do Parlamento com Marisa Matias]
Marisa Matias: “Politica de Trump agradará aos senhores da guerra”
“Partidos progressistas têm de fazer uma profunda reflexão”
O que é que falhou na campanha de Kamala Harris para que Donald Trump tivesse uma vitória deste nível, em que até consegue a maioria do voto popular?
Há muitas coisas que estão a falhar já há muito tempo nos Estados Unidos, na condução da política e na falta de resposta ao que é sentido como necessidade da população, de quem vive e de quem trabalha. A administração democrata não foi uma exceção em relação a isso. A administração Biden-Harris teve problemas relacionados com a perceção de que os rendimentos do trabalho não chegam para pagar as contas, de que a inflação está a comer todos os ganhos. As questões económicas são muito sérias, bem como a falta de acesso a serviços públicos. Mas também há questões relacionados com a paz, e nós vimos as manifestações em todo o país de estudantes nas universidades em relação ao genocídio em Gaza. Todos esses problemas serão agora agravados com a vitória de Donald Trump.
Existiu apenas uma falha de políticas nos últimos quatro anos ou também uma falha na tentativa de unir o país pós-Donald Trump?
O país está muito dividido e não é de agora. Não é das últimas eleições e não é desde Donald Trump. Pode ter-se agravado, mas já vem muito de trás. Há nos Estados Unidos o que há em muitos outros contextos e a Europa não é exceção: esta ideia de que a resposta que se faz às políticas populistas e que se faz às políticas de extrema-direita é, de certa forma, dialogar com elas, é ser ambíguo, é poder ter respostas que não afetem muito uma certa perceção dos problemas. Isso normaliza e naturaliza estas políticas, mas não as resolve. Uma das coisas que o resultado hoje é evolução de candidatos como Ilhan Omar, Alexandra Ocasio-Cortez, Bernie Sanders ou Rashida Khlaib, que, num estado em que os democratas perdem, teve 77% dos votos. Quando se tem propostas que não alimentam ambiguidades, seja na política económica, na paz, que não são coniventes com o genocídio que está a acontecer em Gaza, a tradução do voto é muito diferente do que foi depois o voto nos candidatos à Presidência.
A vitória de Trump não resulta também da incapacidade da esquerda e dos progressistas para responder aos problemas concretos e de se focarem muito na questões identitárias? Essa reflexão está a ser feita pelos partidos mais progressistas?
Os partidos progressistas não têm outra alternativa a não ser fazer uma profunda reflexão na sequência destes resultados. Isso é a coisa mais séria que se deve fazer. Agora, recuso essa teoria e abordagem de que de um lado está a política identitária e do outro está a política real dos problemas. Não é assim nos Estados Unidos e não é assim em lado nenhum. Que coisa é a política de Donald Trump se não também ela uma política identitária? Do nós contra eles, do homem branco, americano, trabalhador, contra o imigrante racializado, do pai de família e da mulher cristã contra a mulher independente, com autodeterminação e capacidade de se dizer sobre o seu próprio corpo? Há uma leitura muito enviesada do que é que significa, e do que é que representa, política identitária. Isto não quer dizer que não tenham falhado e que não continuem a falhar respostas concretas aos problemas das pessoas, nos serviços públicos, no acesso à saúde, que sabemos que é trágico nos Estados Unidos, na capacidade de pagar as contas ao fim do mês.
Uma nova presidência de Donald Trump não será à partida mais institucional? Tendo já passado pela administração, conhece o funcionamento da máquina.
O que sabemos é que, com Donald Trump, há uma política que ganha: que é política do ódio, a que ataca mulheres, migrantes, trabalhadores, que é uma política racista, xenófoba e que agradará aos senhores da guerra deste momento, Putin e Netanyahu. Não sei o que é que isso tem de institucional. Não devemos, nem podemos esperar nada de muito desgraduado na intervenção de Trump nos próximos tempos. A boa notícia é que, apesar de tudo, as vozes de resistência mais ativas saem também reforçadas nesta eleição. De cada vez que Donald Trump voltar a atacar as mulheres, os migrantes, os trabalhadores, há nos Estados Unidos quem lhe faça frente, para além, obviamente, dos movimentos de estudantis que estiveram nas ruas e acampados contra o genocídio em Gaza. Há uma resistência que terá um papel na sociedade norte-americana.
“É preciso o reforço da resistência”
A União Europeia preparou-se para um eventual regresso de Donald Trump? Para estar menos dependente dos Estados Unidos da América.
Não creio que esteja menos dependente, ainda que a dependência da União Europeia em relação aos Estados Unidos seja uma má notícia, seja com que administração for e com que presidência for. Fala-se muito da autonomia estratégica da União Europeia e tem sido muito pouco posta em prática. Não creio que estivesse preparada antes, não creio que esteja preparada agora, mas com o reforço do papel de poder que esta vitória traz a Netanyahu e a Putin há uma área fundamental em que a União Europeia deve trabalhar e que é a da autonomia de posicionamento e de trabalhar para soluções de paz, seja na Ucrânia, seja no Médio Oriente.
Na Ucrânia, a responsabilidade da vitória ucraniana fica exclusivamente sobre os ombros da Europa?
Se há um impacto direto e imediato na política externa com a vitória de Donald Trump passa por Putin. Mas passa também por Netanyahu. Há um reforço das agressões militares que estão a acontecer, do genocídio que está a acontecer em Gaza. Em simultâneo, a União Europeia tem um caminho a fazer que é trabalhar pelas vias diplomáticas, como nunca fez até agora, e procurar fazer força junto da Ucrânia para que se encontre uma solução de paz.
Esta vitória de Donald Trump tem um efeito de contágio na Europa? Víktor Orbán foi dos primeiros a dar os parabéns a Donald Trump.
Estamos longe de dizer que esta forma de estar na política e de fazer política é um exclusivo dos Estados Unidos, do Brasil ou de [Javier] Millei. Temos também na Europa muitos exemplos da forma como esta política de extrema direita e populista tem ganhado espaço. É preciso o reforço da resistência e do combate a estas políticas, isso é que é preciso.
Portugal vai ter que fazer esforços adicionais de investimento, nomeadamente na questão da NATO?
Esta é uma boa oportunidade para Portugal e para a União Europeia trabalharem por uma agenda de paz, até porque essa é sempre a solução e o caminho. Nenhuma guerra se resolve com mais guerra.
Esta eleição dá força ao argumento, que tem sido muito utilizado no Orçamento do Estado, de que Portugal precisa de estabilidade política?
A estabilidade política não existe se não houver estabilidade nas respostas que são dadas às pessoas, aos seus problemas e às suas necessidades. É preciso entender é o que é que significa estabilidade política, porque se significa a desistência de todos os combates fundamentais que temos pela frente, pela defesa da democracia, dos valores fundamentais, dos direitos, dos direitos das mulheres e da igualdade, então estamos a fazer um péssimo serviço à democracia. Há quem faça a leitura destas eleições americanas como pôr na balança uma luta entre uma espécie de defesa da democracia e defesa da economia e ter ganhado a economia…
Não concorda?
Tudo isto é muito questionável, no sentido em que não creio que se tenha defendido a economia. Têm existido cedências enormes das forças ditas democráticas, que têm normalizado e naturalizado práticas que são muito pouco democráticas, que põem mais em causa a nossa estabilidade do que põem em causa a própria democracia.
“Declarações de Leão não têm espaço na política de esquerda. Não podem ter”
Na política interna, António Costa escreve um artigo de opinião no jornal Público em que critica a posição do presidente da Câmara de Loures, Ricardo Leão. Pedro Nuno Santos devia ter ido mais longe na condenação do que disse e fez o autarca de Loures?
A gestão do PS cabe à liderança do PS. Dito isto, acho que não podemos deixar de condenar as declarações de Ricardo Leão, que são inconcebíveis e incompreensíveis, precisamente vindas de alguém, de um partido de esquerda ou de centro-esquerda.
Mas com este PS é possível, por exemplo, fazer coligações autárquicas? É algo que tem sido discutido para a região de Lisboa.
Creio que são debates distintos e cada coisa a seu tempo. Mas não há como não condenar estas declarações e como não dizer que elas não têm espaço na política de esquerda. Não podem ter.
O Bloco de Esquerda foi acusado por muitos comentadores e responsáveis políticos de ter sido, a par do Chega, populista na reação à morte de Odaír Moniz. Deviam ter tido outro cuidado na forma como reagiram a este incidente?
Quando temos em Portugal uma situação trágica como esta, em que há um cidadão que é morto e não sabemos muito bem as razões, não é não normal que não haja quem defenda esta vida no espaço público, no da política. Parece-me bastante preocupante e um sinal muito claro do trabalho que tem de ser feito em democracia. Denunciar este tipo de situações e permitir que esta pessoa tenha voz de defesa no espaço público é a maneira que temos de honrar a democracia, o Estado de Direito e as próprias forças policiais. Alguém teria que fazê-lo. O que para mim é estranho é que tenha sido apenas o Bloco de Esquerda a pôr também alguma dimensão de humanidade e de empatia para com esta família.