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A segunda metade do ano que agora termina ficou marcada, na área da saúde, por um protesto inédito de cerca de 3 mil médicos hospitalares. Descontentes com a carga de trabalho extraordinário a que são sujeitos e com a fraca valorização da carreira médica, milhares de especialistas de todo o país juntaram-se num movimento inorgânico — denominado Médicos em Luta — com o objetivo de pressionar o Ministério da Saúde a ceder às reivindicações do sindicatos, que, há um ano, negociavam com a tutela, sem resultados práticos.
O protesto estendeu-se a todo o país, afetou dezenas de urgências e terá sido decisivo para um aumento salarial muito superior ao que o Governo tinha proposto inicialmente para a classe. No entanto, a redução do horário de trabalho, essencial para os sindicatos e para o movimento Médicos em Luta, ficou de fora, pelo que o protesto deve regressar na primavera, quando muitos médicos já tiveram esgotado, mais uma vez, as 150 horas obrigatórias por lei. Para já, a 1 de janeiro, a contagem recomeça, o que deve fazer aliviar as limitações nos serviços de urgência hospitalares.
Como começou o protesto?
No final de agosto, o movimento Médicos em Luta (formado por três médicos internistas de Viana do Castelo) deixava um aviso, em forma de carta enviada ao ministro da Saúde: se não houvesse acordo com os sindicatos, os médicos iriam começar a entregar minutas de recusa à realização de mais trabalho suplementar para lá das 150 horas anuais obrigatórias por lei. Por essa altura, muitos clínicos já acumulavam o triplo do limite legal. À carta, enviada no início de setembro — antes da última reunião entre Manuel Pizarro e os sindicatos — seguiu-se o silêncio; do Governo, nenhuma resposta. O protesto, inédito e de consequências imprevisíveis, iria mesmo avançar e em todo o país.
As primeiras consequências sentir-se-iam no Hospital de Viana do Castelo (onde o movimento teve origem). O protesto alastrar-se-ia a todo o Minho, e, já no mês de outubro, a toda a região Norte. Os hospitais periféricos, com equipas mais reduzidas e maior dificuldade na contratação de médicos prestadores de serviços, foram os primeiros a sentir o impacto das escusas: o Hospital de Viana do Castelo ficou sem urgência cirúrgica e com a urgência de Medicina Interna limitada; em Barcelos, a urgência geral encerrou aos fins de semana. No início de outubro, os doentes eram encaminhados para o maior hospital da região — Braga –, que acabaria também por ser afetado, tanto na urgência cirúrgica como na obstétrica.
Em Matosinhos e em Penafiel deixaria de haver resposta para os doentes que chegavam à urgência e que tinham necessidade de ser submetidos a cirurgia. A solução seria o encaminhamento para o Hospital de São João. Na Guarda, uma das unidades hospitalares mais afetadas, os constrangimentos atingiram a Medicina Interna, a Cirurgia, a Ortopedia, e até a Neurologia (afetando, neste último caso, a Via Verde do AVC). Em Gaia, grande parte dos médicos do serviço de Anestesiologia apresentaram escusas, bem como muitos intensivistas.
Na região Centro, Leiria foi um dos hospitais mais afetados, com as urgências de Cirurgia e de Obstetrícia a balançarem entre o encerramento e o funcionamento condicionado, situação que ainda se mantém por estes dias. Em Santarém, as urgências de Ortopedia e Cirurgia estiveram, em muitos dias, de portas fechadas.
No que diz respeito às especialidades, começava a desenhar-se um padrão: os cirurgiões, os internistas, os obstetras, os anestesiologistas e os ortopedistas (tradicionalmente, os especialistas que acumulam mais horas extraodinárias ao longo do ano) foram os que entregaram um maior número de escusas, condicionando o funcionamento dos serviços de urgência.
Confrontado com o impacto do protesto, e com dezenas de serviços de urgência encerrados, o Ministério da Saúde viu-se obrigado a retomar as negociações com os sindicatos médicos (que tinham sido interrompidas em meados de setembro, sem acordo). A 12 de outubro, as três partes (a tutela, a Federação Nacional dos Médicos e o Sindicato Independente dos Médicos) voltavam a sentar-se à mesa — já depois de um esforço levado a cabo pelo bastonário dos Médicos para que o diálogo voltasse — para tentarem um acordo, que, face à dimensão das divergências entre as partes, parecia ser impossível.
E de que forma se alastrou à região de Lisboa?
Mesmo com o acelerar das negociações, que se iam sucedendo (por vezes de três em três dias, marcadas para fins de semana e que decorriam até durante a madrugada), o protesto não dava sinais de abrandamento. Pelo contrário. No final de outubro, centenas de escusas entravam em vigor em Lisboa e Vale do Tejo, uma região em que os serviços de urgência já sofriam com uma crónica falta de médicos e em que o funcionamento do sistema em rede (transferindo doentes de um hospital para outro, por exemplo) se faz com muito mais entropias.
Tal como a norte, os hospitais centrais (Santa Maria, São José e São Francisco Xavier) foram poupados numa primeira fase, com as unidades hospitalares da periferia de Lisboa a sofrerem os maiores impactos. No Hospital Garcia de Orta, em Almada, as urgências de Pediatria e de Obstetrícia passaram, em novembro, a encerrar aos fins de semana por falta de médicos para assegurar as escalas. Também a Via Verde do AVC e a urgência de Cirurgia foram (e continuam a ser) muito afetadas.
No Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, o elevado número de escusas entregues levou ao encerramento da Urgência de Pediatria e da Urgência Obstétrica, constrangimentos que ainda se mantêm. Esta unidade também se viu obrigada a reduzir o número de camas na Unidade de Cuidados Intensivos, por falta de especialistas nas escalas. No Amadora-Sintra, que serve uma população de pelo menos meio milhão de pessoas, a urgência de Obstetrícia passou a encerrar durante toda a semana, e a urgência pediátrica no período noturno, todos os dias.
O protesto, a que terão aderido cerca de três mil médicos (estimativas do movimento Médicos em Luta, perante a falta de dados oficiais, que os hospitais sempre evitaram fornecer), provocou também o adiamento de atividade assistencial programada em todo o país, isto é, consultas e cirurgias agendadas e que foram adiadas ou mesmo canceladas, quando várias administrações hospitalares deram indicações às direções de serviço para alocarem os médicos aos serviços de urgência.
Enquanto a situação no terreno se degradava, o processo negocial ia decorrendo com avanços e recuos. Os sindicatos levaram três exigências para apresentar a Manuel Pizarro: um aumento salarial de 30% (que diziam ser apenas uma reposição do poder de compra perdido pelos médicos na última década), a diminuição da carga horária semanal para as 35 horas e a redução do horário semanal no serviço de urgência das 18 para as 12 horas. No entanto, a aproximação de posições foi lenta e nem sempre sólida — os sindicatos, sobretudo a FNAM, queixavam-se de falta de transparência da tutela, que fazia cedências verbais durante as reuniões, que depois não eram concretizadas nos documentos escritos enviados antes de cada nova reunião.
Os constrangimentos diminuíram em novembro com a queda do Governo?
Sim, mas de forma ligeira. A grande maioria dos médicos manteve as minutas de escusas a mais trabalho suplementar. A seguir à Operação Influencer, que levou à demissão de António Costa e à convocação de eleições antecipadas, o núcleo duro dos Médicos em Luta questionou os médicos, através de uma sondagem no grupo de Telegram do movimento, sobre se teriam intenção de retirar as minutas e voltar a fazer horas extra. De 502 respostas recebidas, apenas cerca de 2% dos médicos afirmaram ter intenção de terminar o protesto, como disse ao Observador a médica Helena Terleira, uma das porta-vozes do movimento.
E a verdade é que os comunicados semanais da Direção Executiva do SNS (em que a entidade divulga as urgências encerradas ou limitadas) confirmam que, mesmo perante a falta de um interlocutor e com as negociações com o Governo suspensas, a maioria dos clínicos manteve o protesto. Por exemplo, durante esta semana, 37 serviços de urgência estão condicionados (incluindo quatro vias verdes, quer do AVC quer coronárias), pouco menos do que os 39 limitados no pico do protesto.
Protesto pode voltar em 2024?
O regresso dos constrangimentos às urgências é quase certo no próximo ano. Ao Observador, a médica Helena Terleira garante que o movimento não se vai extinguir. “O movimento vai continuar a existir como fórum de discussão, para mudar o que é necessário, vai continuar a ser um local de partilha de experiências, de denúncias de situações menos corretas. Em março, muitos hospitais chegarão às 150 horas e em abril poderemos ter de recomeçar tudo isto”, avisa a médica, sublinhando que os hospitais periféricos serão os primeiros a ser atingidos, porque são também aqueles que têm menos médicos nos quadros e em que o ‘plafond’ de horas extra se esgota mais rapidamente.
No dia 1 de janeiro, o “contador” das horas extra volta ao zero, mas, com cada vez menos médicos no SNS, o movimento estima que, no segundo trimestre do ano, muitos já tinham atingido as 150 horas extra previstas na lei. Se assim o entenderem, podem voltar a submeter minutas de escusa a mais horas extra. “Muitos médicos já fizeram mais de 600, 800, 1200 horas extra este ano, só até outubro”, dizia o bastonário da Ordem dos Médicos, em entrevista ao Observador, pelo que se percebe que os constrangimentos podem regressar ainda numa fase inicial do ano.
A acrescer às dificuldades prováveis no preenchimento de escalas, a instabilidade na governação do país também não será benéfica. Com eleições legislativas marcadas para 10 de março (e com a possibilidade de as negociações para a formação de um novo Governo se poderem arrastar), um novo Executivo só deverá tomar posse, no melhor dos cenários, em abril. Nos sindicatos médicos, a perceção é a de que as negociações não serão retomadas antes do verão. E mesmo que as negociações regressem rapidamente, logo a seguir à tomada de posse do Governo, é incerto até que ponto o novo titular da pasta da Saúde poderá ceder às reivindicações dos médicos a curto prazo.
No final de novembro, o Governo e o Sindicato Independente dos Médicos (a mais moderada das duas estruturas sindicais) chegaram a um acordo intercalar que incluiu apenas um dos três pontos das negociações: a questão salarial. O acordo para a revisão da grelha salarial dos médicos do SNS prevê um aumento de 14,6% para os assistentes hospitalares com horário de 40 horas, de 12,9% para os assistentes graduados e de 10,9% para os assistentes graduados seniores. Prevê também um aumento salarial, ainda que mais reduzido, para os médicos internos (que representam hoje cerca de um terço da força de trabalho do SNS).
No entanto, os sindicatos vão insistir na reposição integral do poder de compra perdido pelos médicos ao longo da última década (30%, garantem), pelo que uma nova atualização salarial, muito acima da média da função pública, continuará a estar em cima da mesa quando as negociações forem retomadas. Já quanto ao horário de trabalho, as exigências vão manter-se.
No que diz respeito à carga horária semanal, o Ministério da Saúde tinha-se comprometido — durante o processo negocial — a fasear a redução para as 35 horas semanais: numa primeira fase paras 38 horas, em 2024, e depois para 35 horas, em 2025. Já no que diz respeito ao trabalho na urgência, a intenção era de reduzir as horas semanais obrigatórias das atuais 18 para as 16 em 2024 e para as 12, em 2025. No entanto, sem a perspetiva de poder levar a legislatura até ao fim, o Ministério da Saúde recusou-se a avançar com a redução progressiva no horário de trabalho dos médicos (uma medida que poderia dificultar ainda mais a capacidade de resposta dos hospitais), deixando o tema para o próximo governo.