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O inverno a chegar. Na Ucrânia, esta expressão não retrata apenas a chegada das temperaturas negativas e da neve a um país que está em guerra há quase 22 meses. É também uma metáfora que simboliza as dificuldades que Kiev terá de enfrentar na próxima estação. Após uma contraofensiva que Volodymyr Zelensky já admitiu que não alcançou os “resultados desejados”, o Presidente ucraniano já reconhece que começou uma “nova fase” do conflito — mais focada na defesa do que propriamente no ataque, o que parece sustentar a ideia de um impasse nas linhas da frente.
Ouvidos pelo Observador, três especialistas concordam que os “próximos meses serão difíceis”. Na opinião de Māris Andžāns, diretor do Centro de Estudos Geopolíticos em Riga, este mês e 2024 “poderão ser os mais difíceis para a Ucrânia desde o verão de 2022”. O especialista letão enumera “diferentes razões”: “Fadiga da guerra no Ocidente e possível diminuição do apoio dos aliados ocidentais; um tipo diferente de fadiga de guerra na Ucrânia que pode levar ao crescimento de desavenças entre a elite política e militar ucraniana; determinação e prontidão da Rússia para uma guerra longa”.
A conjuntura não abona a favor da Ucrânia, pelo menos nos próximos tempos. No entanto, Volodymyr Zelensky já garantiu que não vai desistir. “Nós estamos confiantes nas nossas ações. Nós lutamos por aquilo que é nosso”, assinalou o chefe de Estado ucraniano, numa entrevista à Associated Press, em que concedeu de igual modo que o inverno será “difícil”.
Do outro lado, a Rússia também não deita a toalha ao chão. Após as fases iniciais da guerra em que somou fracassos, o regime russo solidificou as posições defensivas e terá agora em marcha, segundo denunciou Kiev, uma nova ofensiva no leste de território ucraniano. Moscovo continua, ainda assim, a mostrar-se disponível para encetar negociações com Kiev — mas sempre sob as suas condições, o que continua a desagradar quer a Ucrânia, quer o Ocidente.
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Por sua vez, continuando a fornecer armas e apoio financeiro, o Ocidente tem continuado a estar ao lado à Ucrânia. Porém, o maior aliado de Kiev — os Estados Unidos da América (EUA) — podem deixar de fornecer qualquer tipo de auxílio às autoridades de Kiev, apesar de a Casa Branca insistir na importância do apoio. Se por um lado a presidência norte-americano tem reiterado os apelos, por outro o Congresso tem levantado vários obstáculos.
O cansaço da guerra já parece ser uma realidade assumida inclusivamente pela Ucrânia. Contudo, não seria de estranhar que as dificuldades associadas ao inverno atingissem o moral dentro de fronteiras e também a galvanização para apoiar o país fora de fronteiras.
As mudanças no campo de batalha: Ucrânia mais defensiva, Rússia ao ataque
Por conta da contraofensiva, que tinha como objetivo recuperar muitos dos territórios ocupados pela Rússia desde fevereiro de 2022, a Ucrânia mantinha-se durante os últimos tempos numa posição mais de ataque. No entanto, as tropas de Kiev depararam-se com linhas de defesa russas fortificadas e não as conseguiram quebrar. “Queríamos resultados mais rápidos. Desde essa perspetiva, infelizmente, não alcançámos os resultados desejados. E isso é um facto”, reconheceu Volodymyr Zelensky.
Após este posicionamento mais ofensivo que não estava a resultar, a Ucrânia decidiu mudar de tática. Numa publicação na conta pessoal do X (antigo Twitter), o conselheiro da presidência ucraniana, Mykhailo Podolyak, explicou que as “alterações na tática” se deveram ao “inverno” que se avizinha e às “capacidades do inimigo”, após uma “análise” das forças ucranianas.
Segundo Mykhailo Podolyak, a tática vai combinar uma “defesa eficaz em certas áreas” com a “continuação de operações ofensivas noutras áreas”. Simultaneamente, terão lugar “operações estratégicas especiais na península da Crimeia e no Mar Negro” e também reformar-se-á o sistema de defesa aérea. “O inverno não vai ser fácil, uma vez que a Rússia não quer saber do Direito Internacional e das convenções de guerra. Os ucranianos estão preparados, lembrando a experiência do ano passado”, garantiu.
Consolidando ainda a mais a tese de que a Ucrânia vai apostar na defesa do seu território, no seu discurso diário da passada quinta-feira o Presidente ucraniano anunciou a construção de fortificações e instou a que se “acelerasse a construção de estruturas”. Volodymyr Zelensky assinalou que zonas no leste como Avdiivka, Maryinka e outras regiões de Donetsk “vão receber a atenção máxima”. No sul, o líder da Ucrânia também referiu que Kherson será fortificada, tal como Kharkiv no norte. Muitas das são as mais vulneráveis aos ataques russos, estando algumas na linha da frente.
Na mesma senda, há duas semanas, o Ministério da Defesa da Ucrânia criou um novo departamento que tem como objetivo a construção de fortificações, de modo a assegurar a proteção do território que está neste momento sob jugo ucraniano. Isto significa a adoção de uma postura mais defensiva e, no limite, à ideia de que uma ofensiva russa colocaria expostas as vulnerabilidades de Kiev.
Em declarações ao Observador, Volodymyr Dubovyk, diretor e investigador do Centro de Estudos Internacionais de Odessa, descreve que os próximos meses serão de “combinação entre esforços ofensivos e defensivos”, frisando que em alguns pontos mais quentes da guerra “não será impossível” assistir a avanços ucranianos. “Mas não será um avançar, tal como Valery Zaluzhny [chefe das forças armadas ucranianas] reconheceu no seu artigo na revista The Economist, ‘profundo e bonito.'”
Ao mesmo tempo, frisou o especialista ucraniano, a Rússia vai “tentar voltar a ganhar a iniciativa” dos esforços de guerra, especialmente em volta de Donetsk, na frente leste. “A postura defensiva será necessária aqui e ali”, justificou.
Considerando que a Rússia “está prestes a ganhar vantagem na guerra”, Māris Andžāns antevê que “possivelmente” Moscovo lançará uma “grande ofensiva” em 2024, tendo reunido condições para isso: “O Kremlin consolidou o poder, extinguiu qualquer tipo de oposição e a sociedade ficou complacente. E aumentou o seu arsenal”. Por tudo isto, a Ucrânia tem de adotar uma postura defensiva.
Ainda que esteja longe de uma “grande ofensiva”, certo é que a Rússia já começou a atacar posições ucranianas. O Ministério da Defesa do Reino Unido relata que “as forças russas têm feito avanços consistentes” na cidade em ruínas de Marinka, no oblast de Donetsk. “A Rússia controla agora maioria da zona. Contudo, as forças ucranianas continuam a controlar partes do oeste da localidade.”
De igual forma, Avdiivka tem sido palco de uma ofensiva russa. Ainda no relatório desta quarta-feira do think tank norte-americano Instituto para o Estudo da Guerra, confirmava-se que Moscovo tinha feito “ganhos” em redor daquela localidade.
(2/3) Marinka has been on the front line since 2014. With a pre-war population of 9000, it is comprehensively ruined– drone footage suggests that the vast majority of buildings have been reduced to rubble.
— Ministry of Defence ???????? (@DefenceHQ) December 5, 2023
Em declarações ao Observador, Mikhail Troitskiy, professor de Prática da Universidade de Wisconsin-Madison que se dedica ao estudo da política russa, salienta que, nesta fase da guerra, “Moscovo tem melhores chances de avançar no campo de batalha”. Não obstante, o especialista acredita que o conflito está “num impasse”, em que “nem a Rússia, nem a Ucrânia vão fazer grandes avanços”, por causa da “falta de pessoal, equipamento e vontade política”.
Relativamente ao Kremlin, o docente universitário russo sugere igualmente que o país não esteja interessado em avançar no campo de batalha, mas sim a “consolidar os ganhos”, dado que já existe uma certa “fadiga da guerra” no país.
Militares e outros políticos criticam Zelensky. As lutas de poder na Ucrânia
Algo que Mikhail Troitskiy realça que está a prejudicar a Ucrânia é a “luta política” que está a acontecer no país. Longe da unanimidade do início do conflito, e fruto do cansaço de guerra, começam a surgir vários relatos de fratura entre as elites políticas e militares do país. Por exemplo, os comentários à revista The Economist do chefe das forças armadas, Valery Zaluzhny, de que a guerra estava num “impasse” incomodaram a presidência ucraniana.
Segundo apurou o Politico, existe neste momento existe alguma tensão entre as Forças Armadas e o poder político, nomeadamente a presidência, no que concerne ao futuro do conflito e quais são os próximos passos a seguir. Segundo fonte da área da política ouvida por aquela jornal, os militares querem recrutar “mais pessoas” e querem mais “munições”, sem haver um plano concreto sobre o rumo da guerra. “Isso é irrealista.”
Por sua vez, fontes militares negam que não haja um plano, lembrando que Valery Zaluzhny se encontrou recentemente com secretário da Defesa norte-americano, Lloyd Austin. “Os dois tinham-se encontrado se não houvesse um plano?”, questiona a mesma fonte.
Simultaneamente, as desavenças ocorrem entre políticos. O autarca de Kiev, Vitali Klitschko, deixou, numa entrevista ao jornal suíço 20 Minuten, duras críticas ao Presidente ucraniano. “As pessoas veem quem é eficaz e quem não é. E havia muitas expectativas. Zelensky está a pagar pelos erros que cometeu”, atirou, acrescentando que houve muito informação publicada pelo governo que circulou “que não correspondia à realidade”. Ressalvando que o povo ucraniano deve continuar a apoiar o chefe de Estado “até ao final da guerra”, o responsável político frisou que “todos os políticos vão pagar pelos seus sucessos e falhanços”.
Da presidência ucraniana, vem uma mensagem tranquilizadora e de que é a propaganda russa que está a transmitir a ideia de que existe tensão na sociedade ucraniana. Ainda na terça-feira, Mykhailo Podolyak disse não existir nenhum “mal-entendido” entre Volodymyr Zelensky e Valery Zaluzhny, já que a prioridade da Ucrânia “é a guerra”. “Parece-me que não faz sentido existir qualquer conflito, especialmente político”, constatou.
Ajuda norte-americana em risco. Redução de apoio pode empurrar Kiev para a negociação
O aviso surgiu esta terça-feira pela voz da diretora do orçamento da Casa Branca. “Quero ser clara: se o Congresso não agir, até ao final do ano ficaremos sem recursos para entregar mais armas e equipamentos à Ucrânia e para fornecer materiais provenientes dos stocks militares norte-americanos”, enfatizou Shalanda Young, numa carta enviada ao Congresso.
“Estamos a ficar com pouco dinheiro e com pouco tempo”, insistiu Young, que voltou a pegar nos argumentos que têm sido repetidos pelo Presidente norte-americano, Joe Biden. “Cortar o envio de armas e equipamentos norte-americanos destruiria o esforço de guerra da Ucrânia, colocaria em perigo os avanços feitos pela Ucrânia e aumentaria a probabilidade de vitórias russas”. “Agora é o momento de ajudar a Ucrânia democrática a lutar contra a agressão russa.”
Contudo, o cenário não é muito otimista para a Ucrânia. Os republicanos continuam a não querer apoiar a Ucrânia e exigem que os democratas, que tendem a favor da renovação do apoio a Kiev, adotem medidas mais duras no que diz respeito à política migratória e à fronteira entre os Estados Unidos e o México. Ao New York Times, o senador republicano do Texas, John Cornyn, denunciou que Partido Democrata quer “dez mil milhões dólares para ajudar os amigos e aliados do outro lado do continente”, mas não disposto a “fazer o necessário para prevenir uma potencial crise na fronteira”.
Esta quarta-feira, o Senado estará reunido para discutir o orçamento para 2024, o que inclui as verbas para o Departamento de Defesa que seriam canalizadas para ajudar o esforço de guerra ucraniano. Os republicanos podem bloquear o pacote de ajuda para a Ucrânia — o que faria com que Kiev começasse o ano de 2024 sem fundos norte-americanos para o conflito.
Foi também apresentado, esta terça-feira, um relatório secreto sobre o estado do conflito na Ucrânia no Senado — e a reunião acabou em gritos, segundo conta a CNN internacional. Os senadores republicanos voltaram a contestar o pacote de ajuda dos democratas e apontaram baterias para a crise na fronteira, acusando os rivais de não se comprometeram com para resolverem a política migratória.
Seja qual for o desfecho, Volodymyr Dubovyk acredita que, mesmo que o Senado dos Estados Unidos não chegue a acordo esta quarta-feira, haverá uma “legislação nas próximas semanas” quer permita continuar a apoiar o esforço de guerra ucraniano. “Mas a tendência de decréscimo no fornecimento de armas já se nota”, contrapõe.
Por sua vez, Mikhail Troitskiy não é tão otimista. No caso de o apoio financeiro à Ucrânia por parte dos Estados Unidos (e também da União Europeia) diminuir, isso significa que Kiev terá de abrir negociações com Moscovo. “Terá de se chegar a uma paz que deixe partes dos territórios ucranianos sob domínio russo que levará provavelmente ao reconhecimento da Ucrânia dessas anexações.”
Porém, se esse cenário se concretizar, o especialista russo não vê que isso leve a um cessar-fogo “permanente” — nem à diminuição das tensões entre a Rússia e a Ucrânia. Mikhail Troitskiy conclui, assim, que “ambos os lados estariam tentados a retomar as campanhas militares, quando tivessem reagrupados as tropas e tivessem aumentado os stocks das munições” — e as tensões ressurgiriam.