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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Mentiras, traições e bloqueios. O filme do primeiro dia do novo Parlamento

Ventura jurou que tinha um acordo, prometeu um apoio e retirou-o com base numa suposta traição. Montenegro recusou negociar e acabou bloqueado. Pedro Nuno aproveitou momento para reforçar a "bagunça".

A não-eleição de José Pedro Aguiar-Branco para a presidência da Assembleia da República apanhou de surpresa a direção de Luís Montenegro. A partir daqui, as versões sobre o que aconteceu verdadeiramente divergem: André Ventura acusa o PSD de ter desrespeitado o acordo que existia entre os dois partidos; os sociais-democratas defendem-se dizendo que não existia um acordo específico com o Chega, mas antes um entendimento de que a Constituição é para cumprir e que os partidos que têm direito a indicar um vice-presidente da Assembleia da República seriam respeitados. No final do dia, uma questão de semântica transformou-se no primeiro braço de ferro à direita. No meio de tudo isto, os socialistas quiseram vincar um ponto e atirar Montenegro e Ventura para os braços um do outro.

O impasse obrigou a uma inédita segunda votação com três candidatos: José Pedro Aguiar-Branco, pela Aliança Democrática, Francisco Assis, pelo PS, e Manuela Tender, ex-deputada social-democrata que foi candidata pelo Chega. Sem grande surpresa, Assis e Aguiar-Branco passaram à segunda volta, com a vitória do primeiro sobre o segundo. Seria de esperar que, à segunda volta, terceira ronda de votações, os 50 deputados do Chega dessem o ‘ok’ ao candidato da Aliança Democrática. Mas não aconteceu. O primeiro dia de Parlamento acabou como muito anteciparam que ia ser: bloqueado.

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Depois de três rondas de votação inconsequentes, os três partidos não deram mostras de grandes cedências. Joaquim Miranda Sarmento, líder parlamentar do PSD, disse que o partido continuava disposto a “negociar” com todos, mas não disse se Montenegro ia procurar pessoalmente Pedro Nuno ou Ventura ou se ia manter o seu candidato. Eurico Brilhante Dias, homólogo socialista, lembrou que Francisco Assis superou por duas vezes Aguiar-Branco, não abrindo mais o jogo — o que pode indiciar que está disposto a insistir no número. E André Ventura exigiu um encontro com Luís Montenegro, “onde ele quiser e quando quiser”. Resumindo: até prova em contrário, os três partidos vão continuar a esticar a corda.

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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O acordo que não era acordo e que virou motivo de desacordo

Primeiro, o filme do dia. Segundo apurou o Observador, José Pedro Aguiar-Branco falou com todos os grupos parlamentares antes da eleição para sinalizar a sua vontade de ir a votos, quase um telefonema de cortesia. Antes desta terça-feira, Joaquim Miranda Sarmento, ainda líder parlamentar do PSD, telefonou aos seus pares nos outros grupos parlamentares (PS, Chega e IL) dizendo que iria votar favoravelmente as respetivas escolhas para vices e que esperava reciprocidade. Na segunda-feira, Miranda Sarmento confirmou de viva voz a Pedro Pinto, líder parlamentar do Chega, que iriam votar favoravelmente o nome do partido de Ventura para a vice-presidência. Esta versão é confirmada por fontes dos dois partidos.

Começam aqui as divergências. Onde Ventura viu um “acordo”, o PSD vê o respeito pelo regular funcionamento das instituições. De resto, é há muito tempo conhecida a posição de Luís Montenegro sobre esta matéria: a 22 de setembro de 2022, o líder social-democrata, em concertação com Miranda Sarmento, deu instruções à bancada parlamentar do partido para que desse luz verde a Rui Paulo Sousa (Chega) – que acabaria por perder essa eleição por bloqueio dos partidos mais à esquerda. Nessa altura, a posição de Montenegro causou até alguma polémica e dividiu o grupo de deputados, que tinha sido escolhido maioritariamente por Rui Rio.

Ou seja, votar a favor de um vice-presidente da Assembleia da República escolhido pelo Chega não era uma moeda de troca do PSD para esta votação de Aguiar-Branco; foi sempre a posição de princípio de Luís Montenegro. No entanto, André Ventura alega ter visto neste gesto de Joaquim Miranda Sarmento o assumir de um acordo entre PSD e Chega – recorde-se que o social-democrata falou também com Eurico Brilhante Dias e com Rodrigo Saraiva e comprometeu-se a respeitar as escolhas de PS e de IL para as vice-presidências da AR.

Na segunda-feira, Ventura deu uma conferência de imprensa onde falou no tal “acordo” alcançado com o PSD e anunciou que iria dar instruções à bancada parlamentar do Chega “para viabilizar a proposta que a AD apresentou para a presidência do Parlamento”. Em entrevista ao Observador, gravada às 20h00 de segunda-feira, Ventura fez referência à tal conversa entre Pedro Pinto e Miranda Sarmento e que o “Chega deixou também o compromisso de viabilização”.

Sobre Aguiar-Branco, Ventura disse o seguinte: “É uma pessoa com passado político, mas preferia um deputado com mais conhecimento da mecânica parlamentar e mais trabalho na mecânica parlamentar. Tinha sido mais útil. E também preferia alguém que não tivesse estado tão afastado nos últimos tempos. Era bom até para ele, porque vai ser um Parlamento difícil. De resto, pessoalmente, tenho estima por Aguiar-Branco”.

Votar a favor de um vice-presidente da Assembleia da República escolhido pelo Chega não era uma moeda de troca do PSD para esta votação de Aguiar-Branco; foi sempre a posição de princípio de Luís Montenegro. No entanto, André Ventura alega ter visto no gesto de contactar a bancada do Chega o assumir de um acordo bidirecional – recorde-se que o social-democrata falou também com Eurico Brilhante Dias e com Rodrigo Saraiva.

A partir do momento em que Ventura disse que havia um “acordo” entre PSD e Chega para a eleição de um vice-presidente da Assembleia, a direção do PSD foi imediatamente confrontada por vários jornalistas com a existência do tal entendimento e se esse alegado pacto não violava o “não é não” de Montenegro a Ventura. A opção foi não responder oficialmente.

Isto porque existe a convicção de que o líder do Chega aproveitará cada momento mediático para se colar ao presidente do PSD e forçar a ideia de que há uma grande cumplicidade entre os dois. Ora, acredita-se no PSD que responder a cada um desses momentos será fazer o jogo de Ventura e alimentar o peditório do Chega.

Com três exceções públicas — três momentos que mais tarde dariam argumentos a Ventura para dramatizar. Na noite de segunda-feira, na CNN, Paulo Rangel apressou-se por corrigir que a luz verde à candidatura do Chega à vice-presidência não era um acordo com Ventura – era o simples cumprimento do regimento. Mais: ao final da manhã desta segunda-feira, Hugo Soares, secretário-geral e futuro líder parlamentar do PSD, explicou ao detalhe a posição dos sociais-democratas.

“Nós já na anterior legislatura nos tínhamos proposto a votar qualquer nome que fosse proposto, de acordo com a Constituição para a vice-presidência do parlamentar. A Constituição é muito clara quando diz que os quatro maiores partidos devem indicar um ‘vice’ para a Assembleia da República. Aquilo que faremos é votar cada um dos nomes que constituirão o boletim de voto, seja o do PS, seja o da IL, seja o do Chega. O que informámos todas as bancadas é que iríamos votar qualquer um dos nomes. O cumprimento da Constituição não viola nenhum acordo. Não brincamos às palavras. É a normalidade democrática a funcionar, é a recuperação do prestígio das instituições.”

Ao início da tarde, em entrevista à SIC Notícias, Nuno Melo, líder do CDS e número dois da Aliança Democrática, repetiu a ideia já deixada anteriormente por Hugo Soares. “Não há acordo nenhum. Vivemos em democracia. Aquilo que temos não é uma afirmação da nossa vontade. É a expressão da vontade do povo”.

Perante isto, André Ventura e demais dirigentes do Chega registaram as palavras de Paulo Rangel, de Hugo Soares e (em particular) de Nuno Melo. Assim que se conheceu o resultado de Aguiar-Branco, Ventura  falou aos jornalistas para acusar o PSD de estar a desrespeitar o “acordo” com o Chega, sugerindo que o chumbo ao antigo ministro tinha sido um ajuste de contas. “O PSD tem de escolher as companhias. Tem de fazer escolhas. Governar em cima do muro não funciona”, sentenciou Ventura.

Tudo somado, o líder do Chega considera que o “acordo” entre os dois partidos foi firmado assim que Miranda Sarmento falou com Pedro Pinto. Montenegro entende que esse acordo nunca existiu e que é a apenas a aplicação prática do que sempre defendeu — a partir do momento em que o Chega é o terceiro partido mais votado, tem direito, segundo a Constituição, a uma das vice-presidências do Parlamento. E os dois não saíram das respetivas posições. Independentemente das interpretações que se possam fazer, a verdade é uma: Montenegro teve a prova provada de que terá a vida dificultada a cada votação parlamentar.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Montenegro não falou com Pedro Nuno. E o PS aproveitou

Do lado do PS, a garantia de Ventura de que o Chega e o PSD teriam chegado a “acordo” foi vista como um motivo de alívio: os sociais democratas confirmavam, aparentemente, o primeiro acordo da legislatura com o Chega, permitindo assim a Pedro Nuno Santos, logo de manhã, declarar que a maioria de direita existia mesmo e funcionava “à primeira necessidade”. O PS dava-se assim como desobrigado de ajudar o PSD.

Nos corredores socialistas, lançava-se um argumento extra: Aguiar-Branco chegara a telefonar a Pedro Nuno Santos, na segunda-feira, mas o líder socialista nem sequer atendeu, já que entendeu que um contacto que não viesse do próprio Luís Montenegro não seria válido nem contaria como uma negociação, uma vez que o telefonema fora sobretudo de cortesia.

José Pedro Aguiar-Branco, apurou o Observador, fez questão de fazer o primeiro telefonema, na segunda-feira, para Pedro Nuno Santos — que não atendeu. Depois disso, enviou um SMS a dizer que queria falar com ele. Na ausência de resposta, o candidato à presidência da AR ligou mais tarde no mesmo a Francisco Assis para transmitir a mensagem a Pedro Nuno Santos. Aguiar-Branco ligou também a André Ventura, Rui Rocha e Nuno Melo. Já na terça-feira, fez questão de falar pessoalmente com os líderes dos outros partidos.

No PS jura-se que, se Montenegro tivesse tentado um acordo com o PS, a história até poderia ter tido um desfecho diferente; mas não tentou, e por isso a reunião da bancada do PS acabou com uma espécie de orientação informal, disseram vários deputados ao Observador: não havia indicação obrigatória do sentido de voto, mas uma “orientação” para que os deputados “mostrassem o seu desagrado”. Os deputados agiram em conformidade e votaram esmagadoramente em branco, ajudando a inviabilizar a eleição do ex-ministro.

Mas o chumbo trouxe novas variáveis à estratégia política do PS: era preciso decidir se o partido mudaria de posição, ajudando o PSD a eleger Aguiar Branco, ou ficaria no mesmo sítio. Nesse intervalo, Luís Montenegro chegou mesmo a falar com Pedro Nuno Santos (“só depois da votação”, enfatizam fontes da direção do PS) mas a nova reunião improvisada pela bancada do PS acabou com a mesma indicação: os deputados deveriam repetir a votação anterior. “A direita tem de ter uma oportunidade para se entender e acabar com esta trapalhada”, argumentava um deputado socialista. “Compete ao PSD e à direita assegurar as condições de estabilidade”.

Foi então que o PSD decidiu retirar o nome de Aguiar Branco, culpando PS e Chega por estarem a planear repetir o chumbo e acusando até os socialistas de terem formado uma “coligação negativa”, alinhados com o partido de André Ventura. E este ponto virou, aos olhos do PS, o jogo: numa questão de minutos, Francisco Assis foi convencido a avançar com uma candidatura difícil à Presidência da Assembleia da República.

Se a meio da tarde Assis não considerava essa possibilidade, sabe o Observador, após a “acusação de coligação negativa” mudou de opinião. O PS queria avançar com uma alternativa própria: “Temos um bom nome, de um dos grandes parlamentares desta casa. Só não é aprovado se a direita revelar os acordos escondidos que tudo faz para esconder”, disparava um deputado socialista. Não estavam previstas negociações com a direita para assegurar a eleição de Assis.

No PS jura-se que, se Montenegro tivesse tentado um acordo com o PS, a história até poderia ter tido um desfecho diferente; mas não tentou, e por isso a reunião da bancada do PS acabou com uma espécie de orientação informal, disseram vários deputados ao Observador: não havia indicação obrigatória do sentido de voto, mas uma “orientação” para que os deputados “mostrassem o seu desagrado”.

O PS apressou-se então a fazer contactos à esquerda para garantir os apoios dos vários partidos – que Bloco de Esquerda, acusando a direita de ser uma “bagunça” (uma expressão usada por Pedro Nuno Santos durante a campanha eleitoral), e Livre confirmaram ter surtido efeito, garantindo o voto a favor de Assis. Mas a harmonia no bloco das esquerdas não seria aritmeticamente suficiente, e o PS sabia-o. Ainda assim, a ideia era clara: “Vamos ter três candidaturas e forçar o PSD e o CH a entenderem-se (novamente). Voltas sucessivas até apurar o mais votado”, vaticinava um dirigente ao Observador.

Por esta altura, o PSD decidia voltar a colocar o nome de Aguiar Branco em cima da mesa e os deputados do PS iam acusando, à boca pequena, o partido de estar “de cabeça perdida” e com um comportamento “errático”. “Não se percebe por que há pouco retiraram o nome”, atirava um deputado do PS. Em contrapartida, o Observador sabe que foi sempre essa a intenção do PSD e de Aguiar-Branco — antes quebrar do que torcer.

O que se percebia era que o braço de ferro estava em marcha. Como tantas vezes se antecipara em campanha, alguém teria de recuar e admitir que fizera bluff; e o Parlamento arrancava os trabalhos dividido em três blocos, cada um a fazer a sua prova de força e a tentar que os outros cedessem. Pela hora de jantar, havia na direção do PS quem admitisse que o assunto tivesse de acabar por ser resolvido “à última” entre PS e PSD. Mas só depois de esgotadas as possibilidades de mostrar a tal “bagunça” que o PS vê instalada à direita. Não aconteceu.

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