Primeiro foi o caso do presidente da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz a ser conhecido. José Calixto, que também preside à fundação que gere o lar onde um surto levou à morte de 18 pessoas, foi vacinado sem que estivesse incluído no grupo prioritário — que, no caso dos lares, inclui utentes e trabalhadores, não havendo referência aos dirigentes no plano de vacinação. Depois, foi o presidente da Assembleia Municipal de Arcos de Valdevez e provedor da Santa Casa da Misericórdia local, Francisco Araújo, como avançou o Observador.
Os argumentos dos autarcas vacinados
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José Calixto argumentou, segundo o Expresso, que deveria receber a vacina porque, por inerência ao cargo de presidente da Câmara, é a autoridade municipal de proteção civil, e, tal como os bombeiros, tem “responsabilidades diárias na tomada de decisões em focos de problemas”. Outro argumento foi o de que tem responsabilidades numa instituição com “mais de sete dezenas de idosos que é absolutamente prioritário defender”.
Já Francisco Araújo explicou ao Observador que foi a enfermeira responsável pela vacinação que, conhecendo os “problemas cardiovasculares” do autarca e por haver sobras, lhe perguntou se queria receber a vacina. A administração da vacina, em ambos os casos, foi criticada pelo coordenador da taskforce de vacinação, Francisco Ramos.
Só que, entretanto, vão sendo conhecidas outras situações. O Público avança esta quinta-feira que também o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Messejana, no Alentejo, e a vice-provedora, foram vacinados. Manuel Ruas justificou com a necessidade de se terem de deslocar ao lar detido pela Santa Casa, ainda que tal não tenha acontecido regularmente nas últimas semanas. Também no lar da misericórdia de Almodôvar foram vacinadas duas pessoas da direção que, segundo a diretora técnica do lar, vão à instituição “com frequência”.
Estes são os casos conhecidos em lares, mas a Ordem dos Enfermeiros e a Ordem dos Médicos têm alertado para denúncias que lhes chegam de situações em que os critérios de vacinação não estão a ser cumpridos noutros locais, como hospitais — ou porque há profissionais fora do primeiro grupo a serem vacinados, ou porque faltam vacinas para os profissionais prioritários. A TVI24 também noticiou que funcionários do INEM não prioritários foram vacinados. Como se garante que apenas é vacinado quem está nos grupos prioritários?
O ministério da Saúde diz que não tem responsabilidade nesse processo. Ao Observador, refere que apenas conhece o número de pessoas que vão ser vacinadas em cada “entidade coletiva identificada”, logo, “não pode validar se determinada pessoa em concreto trabalha ou reside na instituição ou mesmo que funções aí executa“. Essa identificação cabe a “quem sinalizou a entidade e o universo de pessoas a vacinar“. Ora, segundo as respostas do Ministério ao Observador e o plano nacional de vacinação, essa sinalização cabe aos próprios lares. No plano, é referido que “no contexto institucional a identificação das pessoas [a vacinar] será feita pela entidade gestora ou empregadora”.
Um processo assente no “bom senso”
O Observador questionou os Ministérios da Segurança Social e da Saúde sobre como é feito o controlo da vacinação nos lares. Ao Observador, o Ministério tutelado por Ana Mendes Godinho afirma que cabe ao Ministério da Saúde, através das Autoridades Regionais de Saúde (ARS), a coordenação e operacionalização do plano de vacinação. E remete para a Saúde “a decisão sobre os concelhos a serem vacinados primeiro, os lares a serem vacinados, ou as pessoas que serão vacinadas nesses lares“. Os centros distritais de Segurança Social são, neste âmbito, apenas responsáveis por fornecer às ARS as informações “por estas pedidas” como “as listas com as instituições do setor social (Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas — ERPIs — e lares residenciais) existentes em cada distrito”. “Este plano inclui utentes e funcionários em ERPIs, Lares Residenciais e Lares ilegais que a Segurança Social tem conhecimento”, acrescenta a tutela.
De facto, em dezembro, a Segurança Social pediu aos lares uma espécie de mapa, que não foi uniforme em todos os centros distritais, para que identificassem os utentes e funcionários. “Enviámos o mapa, que era muito detalhado, em Excel, com os dados de identificação, se tinham indicação ou não para vacina, e se não qual o motivo, se aceitavam ser vacinados”, explica ao Observador João Ferreira de Almeida, presidente da Associação de Apoio Domiciliário de Lares e Casas de Repouso, que gere um lar em Oeiras. O centro de saúde local também pediu informação num mapa semelhante.
João Ferreira de Almeida não recebeu nenhuma aprovação oficial da lista pelas autoridades de saúde. E nota que a Segurança Social, não tendo como “confirmar a informação” enviada pelos lares, “faz fé nos mapas que recebe“.
“No caso das instituições sociais, [a Segurança Social] sabe os idosos que estão efetivamente no lar, até porque lhes paga as comparticipações. Nos privados, não tem como saber se A ou B são realmente residentes nos lares. O centro de saúde também não tem informação para confirmar”, defende. Daí que “tecnicamente” se possa dar a situação de uma pessoa que não é utente nem funcionário seja vacinada. A única forma de controlo que ocorre a João Ferreira de Almeida seria a Segurança Social olhar para o alvará do lar — mas aí está registado o número de utentes e não a sua identidade. As respostas das duas tutelas não confirmam que esta seja uma forma de controlo.
A partir da listagem que a Segurança Social envia às autoridades de saúde, é feita a “identificação dos lares a vacinar”, adianta, por sua vez, o Ministério da Saúde. “Após esta primeira enumeração, as listas são enviadas para as ARS, e para as equipas dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) que as completam tendo em conta o conhecimento que têm da realidade existente nas suas áreas de intervenção“, acrescenta a tutela. Essa informação é “consolidada e validada” pela ARS.
A “implementação” do plano de vacinação, incluindo o “cumprimento das regras definidas” cabe “aos conselhos clínicos dos ACES e às direções das ARS”. São os profissionais de saúde dos ACES que se deslocam aos lares para vacinar os utentes e profissionais. Na eventualidade de existirem sobras, o processo é gerido pelas ARS e pelos ACES, informa o gabinete de Marta Temido.
Perante estas respostas, o Observador voltou a enviar um conjunto de questões ao Ministério sobre se as autoridades de saúde se certificavam que as listas enviadas, tanto pela Segurança Social como pelos lares, continham nomes de pessoas que são, efetivamente, elegíveis para a primeira fase de vacinação; sobre se no caso dos autarcas de Arcos de Valdevez e de Reguengos de Monsaraz houve essa aprovação; e se está a investigar estes casos e as queixas apresentadas pelas ordens dos Médicos e dos Enfermeiros.
Foi na resposta a essas perguntas que a tutela indicou que “o Ministério da Saúde, em regra, apenas tem acesso ao número de pessoas a vacinar em cada entidade coletiva identificada, pelo que não pode validar se determinada pessoa em concreto trabalha ou reside na instituição ou mesmo que funções aí executa. Essa identificação é da responsabilidade de quem sinalizou a entidade e o universo de pessoas a vacinar“, isto é, dos lares. A resposta do Ministério da Saúde ao Observador sinaliza, assim, que a tutela não tem como saber se as pessoas que o lar propõe vacinar pertencem, efetivamente, à instituição.
O ministério acrescenta que “o Plano de Vacinação para a COVID-19 foi concebido com base em critérios científicos e técnicos, suportados, no momento, na melhor evidência científica” e volta a repetir que “o preenchimento dos critérios para vacinação dos seus profissionais e/ou utentes é uma responsabilidade de cada instituição“.
O ministério da Saúde já tinha referido, ao Observador, a propósito da vacinação do autarca de Reguengos de Monsaraz, que cabe ao lar interpretar quem preenche os requisitos para ser incluído na primeira fase de vacinação. Por sua vez, ao Expresso, João Carlos Silva, diretor de serviços da fundação em questão, explicou que as listas das pessoas a vacinar foram enviadas para as autoridades de saúde e à Segurança Social, que não levantaram entraves. Segundo o responsável, os nomes dos administradores foram considerados “elegíveis” e foram “aceites”.
Quanto ao caso de Arcos de Valdevez: a enfermeira que ofereceu a sobra ao autarca Francisco Araújo teve de pedir alguma autorização para que a vacina pudesse ser administrada a uma pessoa que não estava no grupo prioritário? E haverá lugar a uma eventual sanção? O Ministério da Saúde não respondeu a estas questões.
O provedor de uma Santa Casa da Misericórdia onde os utentes já foram todos vacinados, e que pediu anonimato, diz ao Observador que o controlo que existe é “o bom senso” dos lares, mas garante não ter conhecimento de situações, além das que vieram a público, em que as regras prioritárias não tenham sido cumpridas. Também arrisca uma possibilidade de controlo: através de outras listagens que a Segurança Social pediu ao lar que gere, com a identificação dos utentes e funcionários que foram vacinados, já depois da vacinação ter ocorrido. Mas a resposta do Ministério da Segurança Social ao Observador também não refere esta possibilidade — a tutela diz que a responsabilidade de coordenar e operacionalizar o plano de vacinação é da Saúde.
Por outro lado, os enfermeiros que administram as vacinas têm de registar num sistema informático quem foi vacinado, para que a informação conste no boletim de vacinas eletrónico. O controlo pode eventualmente ser feito por aí? “Espero que não“, responde o coordenador do plano de vacinação, Francisco Ramos, ao Observador. “Essa plataforma é uma informação de saúde, espero que não sirva para fazer controlos administrativos.”
Coordenador da taskforce “não está preocupado com os casos que correm mal”
Na segunda-feira, a ministra da Saúde, Marta Temido, esteve reunida com a taskforce para a vacinação — liderada por Francisco Ramos. No final, aos jornalistas, Temido foi questionada sobre se pondera alguma ação em relação aos casos dos autarcas. Na resposta, garantiu que serão definidos “mecanismos” para o controlo destas situações.
Foram discutidos mecanismos que irão ser estabelecidos para a avaliação de situações de desvio àquilo que são as regras de vacinação de acordo com os grupos prioritários. Esses mecanismos serão aqueles que nos permitirão garantir que estas situações são evitadas e, acontecendo, são objeto da necessária censura, caso se constate que correspondem a situações de vacinação indevida face à ordenação dos grupos prioritários”, disse, citada pela Lusa.
Que mecanismos serão esses? Não especificou. Contactado pelo Observador, o Ministério da Saúde também não respondeu à questão. De igual forma, Francisco Ramos não quis adiantar mais pormenores.
Há mais um autarca que foi vacinado sem estar no grupo prioritário — “porque havia sobras”
Esta quinta-feira, o coordenador do plano de vacinação anunciou que a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) vai fazer uma auditoria para averiguar como estão a ser aplicados os critérios de vacinação dos grupos prioritários e o que estão as entidades de saúde a fazer com as sobras. Este é um método preventivo, considera, que representa uma alternativa a “montar um enorme sistema burocrático” para garantir que toda a gente cumpre os critérios, o que “atrasaria” o processo.
Em declarações ao Observador, Francisco Ramos afirma não ter conhecimento se e como é feito o controlo da vacinação, quer pela Segurança Social, quer pela Autoridade Regional de Saúde (ARS) ou pelos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES).
“Eu sei que por nós, taskforce, o que eu preciso de saber é quantas pessoas são [vacinadas]. Se me está a perguntar se [os lares] têm de enviar a lista em concreto das pessoas, não sei. Nem se têm de aprovar”, disse. A preocupação do responsável é “garantir que as pessoas são vacinadas em segurança, respeitando os critérios de prioridade e não montar uma enorme operação burocrática”.
A palavra “burocrática” foi usada por Francisco Ramos depois de o Observador ter perguntado se, quando há sobras de vacinas, os enfermeiros que procedem à vacinação têm de pedir alguma autorização para vacinar alguém fora da lista inicialmente prevista (como aconteceu em Arcos de Valdevez). “Não se esqueça que estamos a falar de vacinas que têm cinco dias para serem administradas. Convinha não exagerar nesses pedidos de autorização“, respondeu.
Os casos dos autarcas vacinados antes de tempo são residuais, acredita. E não colocam em causa a “confiança” que tem nas instituições nem mudam “rigorosamente nada a forma de coordenar a taskforce e este processo”.
Acho que seria um tremendo erro da minha parte estar preocupado com as poucas coisas que correm menos bem em vez de me preocupar em ter o plano de vacinação em execução. É aquilo que me preocupa. O coordenador está preocupado em colocar o plano em execução não com os casos que correm mal”, adiantou.
Quanto às sobras aproveitadas pelo autarca de Arcos de Valdevez, Francisco Ramos já tinha defendido ao Observador que se tratou de um caso “inadequado”, e que a regra é não só não desperdiçar doses de vacinas, como administrar as sobras a grupos prioritários.