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A Farfetch está nas mãos da sul-coreana Coupang desde o final de janeiro, mas continua a dar prejuízo. Nos primeiros seis meses do ano, a plataforma de moda de luxo, outrora liderada pelo português José Neves, registou perdas de 230 milhões de dólares (210,5 milhões de euros ao câmbio atual). Quase metade desse valor, 108 milhões de dólares (cerca de 99 milhões de euros), é referente ao segundo trimestre do ano.
Os números constam no mais recente relatório financeiro da Coupang, que foi divulgado na semana passada e que revelou ainda que o prejuízo atribuível aos acionistas da Coupang, pela Farfetch, foi de 173 milhões de dólares no primeiro semestre do ano, incluindo 80 milhões entre o começo de abril e o dia 30 de junho. Por outro lado, o antigo unicórnio com ADN português gerou receitas de 748 milhões de dólares (cerca de 685 milhões de euros) em meio ano, 460 milhões ao longo do segundo trimestre.
O prejuízo da Farfetch no primeiro semestre sob alçada da Coupang (os tais 230 milhões de dólares) é, ainda assim, quase metade daquele que tinha sido registado no período homólogo. No primeiro trimestre do ano passado, a plataforma de moda de luxo teve prejuízos de 174,3 milhões de dólares, uma perda que aumentou nos três meses seguintes (281,3 milhões de dólares entre abril e junho). Fazendo as contas, os números perfazem um prejuízo total de mais de 455 milhões de dólares ao longo dos primeiros seis meses de 2023.
Os prejuízos eram maiores aos registados este ano mas as vendas também. Nos primeiros três meses do ano passado, a Farfetch teve receitas de 556,4 milhões de dólares. No trimestre seguinte, o número aumentou para 572,1 milhões de dólares. Ou seja, em seis meses, em 2023, as receitas eram de mais de mil milhões de dólares — um valor que está longe dos 748 milhões indicados pela Coupang.
Os resultados da Farfetch são conhecidos numa altura em que foi registada uma quebra no número de visitantes mensais ao seu site. Ainda assim, de acordo com números avançados pela empresa Similarweb à revista Forbes, a plataforma fundada por José Neves teve, em média, 26 milhões de visitantes mensais no primeiro semestre do ano, um valor superior ao total combinado das suas três principais rivais, a Net-a-Porter, a Lyst e a Mytheresa.
Os resultados da Coupang e os 19 milhões em custos relacionados com a reestruturação
A Coupang, também conhecida como a “Amazon sul-coreana”, registou receitas de 7,3 mil milhões de dólares no segundo trimestre de 2024, um aumento de 25% face ao período homólogo. Excluindo a Farfetch, que ‘resgatou’ no final de janeiro, as receitas subiram 18%. Por outro lado, as contas da empresa mostram que contabilizou um prejuízo de 77 milhões de dólares, um deterioração de 222 milhões de dólares em relação ao ano passado (em que teve lucros).
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A diminuição deve-se, segundo a empresa, “principalmente à inclusão das perdas operacionais registadas na Farfetch” e de uma multa de 121 milhões de dólares, imposta pela Comissão de Comércio Justo da Coreia do Sul (Korea Fair Trade Commission ou KFTC, na sigla original) devido a suspeitas de que estaria a favorecer os seus produtos em detrimento dos de terceiros. Tirando estes dois fatores da equação, “o lucro líquido atribuível aos acionistas da Coupang foi de aproximadamente 124 milhões de dólares”.
A inclusão da Farfetch, que “opera com uma margem de despesa mais alta”, no negócio da “Amazon sul-coreana” e o impacto da multa também contribuíram para a subida das despesas “operacionais, gerais e administrativas”. O aumento — de 23,6% e 23,1% a três e seis meses em 2023 para 29,6% e 28,1%, respetivamente, em 2024 — reflete os maiores “custos de execução devido ao crescimento do negócio”, a multa e os “custos operacionais da Farfetch, incluindo custos de reestruturação e aquisição” no valor de 19 milhões de dólares (trimestral) e 77 milhões de dólares (semestral). O Observador questionou a Coupang para obter mais detalhes acerca das despesas relacionadas com a Farfetch, mas não obteve qualquer resposta até à publicação deste artigo.
José Neves, o homem que sonhava ser astronauta e não conseguiu manter o unicórnio Farfetch a voar
Na conferência realizada após a apresentação das contas do segundo trimestre de 2024, também não foram dados mais pormenores. Bom Kim, CEO da Coupang, indicou apenas que o objetivo para a Farfetch é “gerir um EBITDA ajustado [resultado antes de impostos, juros, depreciações e amortizações] próximo do positivo numa base de taxa de execução até ao final do ano civil”. “Apesar de ainda estarmos numa fase inicial da nossa jornada, estamos muito entusiasmados com o progresso e o potencial da Farfetch”, acrescentou.
As declarações de Bom Kim surgem depois de em fevereiro já ter afirmado que estava a ser “executado um plano para tornar a Farfetch autossuficiente, sem mais investimento adicional além do compromisso de capital” inicialmente feito, no valor de 500 milhões de dólares. A aquisição dos ativos da Farfetch por parte da Coupang ficou concluída no último dia de janeiro e foi amplamente vista como uma operação de resgate ao ex-unicórnio com ADN português.
Uma “fraqueza material” que não foi “totalmente corrigida”
No relatório financeiro que enviou ao principal regulador financeiro norte-americano, a Securities and Exchange Commission (SEC), a Coupang revelou que está “ativamente empenhada nos esforços de correção” de uma “fraqueza material” que tinha sido identificada pela Farfetch, mas não “totalmente corrigida”. A fragilidade está relacionada com a “eficácia operacional de determinados processos empresariais e controlos de tecnologia de informação no negócio do New Guards”, plataforma comprada pela Farfetch no verão de 2019.
Estamos a analisar as operações da Farfetch e a implementar a estrutura de controlo interno da Coupang sobre as operações adquiridas”, adiantou a empresa sul-coreana, acrescentando que determinou que a fraqueza poderia “resultar numa distorção material” dos seus “statements financeiros consolidados anuais ou intercalares que não seria evitada ou detetada atempadamente”.
O Observador questionou a Coupang, que afirmou que a “fraqueza material” tinha sido mencionada pela Farfetch num formulário enviado ao regulador em 2023 (sendo referente ao ano anterior), para obter mais detalhes, uma vez que os que são disponibilizados são vagos — e não identificam com clareza qual a “fragilidade” identificada. Mais uma vez, não foi possível obter uma resposta até à publicação deste artigo.
O Formulário 20-F, enviado pela Farfetch à SEC, mostra que a falha já tinha sido identificada (em 2020) e que tinham sido, ao longo de 2022, feitos “progressos significativos” para a corrigir. “Fizemos progressos significativos na implementação de vários controlos operacionais adicionais no New Guards”, incluindo a “análise e a verificação de informações relacionadas com as receitas a receber, inventário e o processo procure-to-pay [P2P]”. Contudo, a “natureza complexa da conceção e implementação” desses controlos, segundo a Farfetch, fez com que o tempo fosse “insuficiente” para os incorporar totalmente. Desta forma, a tal “fraqueza material” não terá ficado completamente corrigida.
O negócio com o New Guards Group, que detinha marcas como a Off-White ou a Palm Angels, foi fechado no verão de 2019, sendo que a Farfetch comprou a totalidade das operações por 675 milhões de dólares. Aquando do anúncio da aquisição, a plataforma de moda de luxo disse que o pagamento seria dividido em “partes iguais” entre dinheiro e ações. Por outro lado, para justificar a compra, afirmou que a administração acreditava que criaria “valor significativo para os acionistas” e proporcionaria “benefícios para consumidores, designers, retalhistas e fabricantes dentro do ecossistema de moda de luxo”.
“A aquisição da plataforma New Guards traz uma dimensão criativa e industrial às nossas capacidades que, combinadas com a nossa rede de mais de 650 lojas, nos permitem capacitar e promover nomes novos e já existentes na indústria de luxo para construir as marcas do futuro”, disse José Neves, à época ainda CEO da Farfetch, em comunicado divulgado para anunciar a aquisição.
Após despedimentos, a Farfetch volta a contratar
Pouco depois de concluir a aquisição da Farfetch, a Coupang anunciou que tinha a intenção de despedir até 30% dos trabalhadores. Não foram apresentados números concretos, mas Portugal terá sido o mercado mais afetado pela redução. Agora, cerca de cinco meses após o corte, a plataforma de moda de luxo está novamente a contratar. A notícia foi avançada no final de julho pelo jornal Eco, que revelou que existiam 61 vagas abertas em Portugal, mais especificamente para o Porto, Lisboa e Guimarães.
Questionada pelo Eco acerca das contratações, fonte oficial do ex-unicórnio disse que “as oportunidades que estão no site são as oportunidades que estão disponíveis”. Atualmente, na página da Farfetch, ainda se encontram abertas 45 vagas para Portugal. Engenheiros de software, analistas de dados ou consultores de atendimento ao cliente são alguns dos lugares que estão por preencher.
José Neves demitiu-se do cargo de CEO da Farfetch a 15 de fevereiro, um dia antes do anúncio oficial de despedimentos. Nessa altura, foi anunciado que, num primeiro momento, se manteria na empresa como consultor. Entretanto, no mesmo mês, o empresário anunciou que tinha um novo desafio em mãos e assumiu a presidência executiva da fundação sem fins lucrativos que fundou e que tem o seu nome, a Fundação José Neves.
Com a demissão de José Neves, que se pronunciou publicamente poucas vezes desde que começou a ser noticiado que a empresa estava numa débil situação financeira, não foi nomeado nenhum novo CEO para a Farfetch. Bom Kim, o dono da Coupang, assumiu a liderança interinamente.
José Neves assume liderança da fundação que criou e tem o seu nome. Carlos Oliveira de saída