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PHILIPPE HUGUEN/AFP/Getty Images

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Novo medicamento: da ideia ao ensaio clínico, o que pode correr mal?

O Observador falou com investigadores envolvidos no processo que leva uma molécula a ser transformada num medicamento novo. Conheça o processo, as boas práticas e o que pode ter falhado no caso Bial.

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Doenças como o cancro, a obesidade ou o Alzheimer continuam a preocupar não só os médicos e os doentes, como os cientistas. Mas desde o momento em que se identifica uma molécula potencial, à demonstração de que ela é mesmo útil até colocá-la à venda enquanto medicamento, podem passar mais de 10 anos. Bem mais do que isso. E pelo caminho ficarão muitas moléculas que não conseguiram cumprir as exigências de eficácia e segurança. A empresa farmacêutica Bial demorou 15 anos a desenvolver um antiepilético, que em 2013 a agência do medicamento norte-americana (FDA) aprovou para comercialização.

Identificada uma doença que não tem tratamentos eficazes, ou cujo tratamento ainda tem margem para melhorias, parte-se em busca de uma droga que possa ser usada para combater esse problema. Pode tratar-se de um fármaco que tenha de ser criado de raíz ou de moléculas que já existem. Aqui, tanto podem ser moléculas já identificadas, mas que são usadas para tratar outras doenças, como moléculas que existem naturalmente, mas que ainda não se sabe de que forma podem ser utilizadas.

Partir da molécula para tratar a doença

Com o aumento da resistência das bactérias aos antibióticos existentes, incluindo os de última linha, torna-se imperativo encontrar novos antibióticos. Lurdes Dapkevicius, investigadora no Centro de Investigação e Tecnologias Agrárias dos Açores (CITA-A), foi procurá-los nas paredes das grutas vulcânicas nos Açores. As moléculas produzidas pelas bactérias que cobrem essas paredes servem para comunicarem umas com as outras, mas também podem ter propriedades antibacterianas ou antimicóticas.

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A equipa de Luís Moita, coordenador do grupo de Imunidade Inata e Inflamação do Instituto Gulbenkian de Ciência (Oeiras), tomou outra opção: testou vários tipos de fármacos – alguns deles medicamentos que já estão no mercado – para perceber qual a droga que apresentava o melhor desempenho no combate à doença.

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A sépsis, muita vezes apontada como uma infecção generalizada, é na verdade uma infecção que pode estar bem localizada no organismo, mas que provoca uma ativação exagerada e generalizada do sistema imunitário. A dificuldade do organismo em manter o equilíbrio interno pode levar à falência de um ou mais órgãos e, nos casos mais graves, à morte.

Neste caso, a equipa de Luís Moita escolheu a sépsis, uma das principais causas de mortalidade no mundo e para a qual não existe terapêutica específica, justifica o investigador ao Observador. Depois de testarem os vários fármacos in vitro, escolheram aqueles que tinham o melhor desempenho para serem testados in vivo – ou seja, em ratinhos.

Os citostáticos – uma família de moléculas normalmente usada em quimioterapia para o tratamento do cancro – foram os que apresentaram o melhor efeito protetor, ou seja, “aquele em que os ratinhos tinham a melhor taxa de sobrevivência em relação a outras famílias de fármacos”, explica o investigador. Desta família houve uma molécula que se destacou e acabou por ser escolhida para o ensaio clínico que se prevê ter início ainda este ano.

Quando uma molécula salta um teste de segurança

Embora todas as moléculas da família dos citostáticos se tenham mostrado eficazes dentro do objetivo para que foram testadas, a escolhida é mais conhecida e tem menos efeitos secundários. Na verdade, os citostáticos são conhecidos por serem tóxicos, tanto a nível do coração, como a nível do sangue – ainda que, um recurso importante no tratamento do cancro -, mas as doses usadas nos testes com a sépsis foram muito mais pequenas do que aquelas que se usam no tratamento do cancro.

Assim, sendo um medicamento conhecido, e considerando que vai ser usado numa dosagem menor, já não é necessário passar pela a fase I dos ensaios clínicos — a primeira fase em humanos para avaliar a segurança e tolerância. Ainda assim, a segurança será sempre avaliada e, adicionalmente, será testada a capacidade de o tratamento aumentar a probabilidade de sobrevivência em humanos. Neste momento, sem tratamento específico para a sépsis, tudo o que as equipas médicas podem fazer é controlar a infeção e fornecer suporte de vida — para manter os órgãos vivos até que o organismo restabeleça, por si, o equilíbrio.

Não existem medicamentos específicos para a sépsis, o tratamento resume-se a suporte de vida

Paula Bronstein/Getty Images

O ensaio clínico de fase II, que Luís Moita espera que comece este ano num centro hospitalar alemão, vai durar cerca de dois anos. O primeiro ano será sobretudo para o recrutamento de voluntários, ou seja, identificar candidatos que possam participar nos ensaios (um grupo mais ou menos homogéneo de doentes com sépsis originada numa perfuração intestinal). Luís Moita espera conseguir 40 doentes nesse período — 20 que tomem o medicamento, mais 20 que sigam o tratamento normal (grupo de controlo). Estes doentes vão participar no teste propriamente dito e serão seguidos ao longo de seis meses. Consoante os resultados desta primeira fase, o estudo pode ser alargado a outros centros hospitalares, noutros países.

Ensaios pré-clínicos: primeiro nível de grande exigência

Caso a molécula fosse nova, ou ainda nunca tivesse passado os testes de segurança em humanos, o percurso seria um pouco diferente. Depois de terem encontrado a molécula “ideal” e de terem feito os devidos testes laboratoriais — em células e em ratinhos —, os investigadores teriam de fazer a molécula passar pelos testes de segurança em modelos animais.

Susana Pires, responsável pela segurança pré-clínica numa empresa biofarmacêutica suíça, explica ao Observador que existem três momentos-chave nesta fase: conhecer o melhor possível a molécula que está em teste, pesquisar toda a bibliografia disponível sobre a mesma e realizar os ensaios de toxicologia — para determinar se o composto é tóxico em modelos animais. Esta fase, garante a investigadora, é “bastante escrutinada pelas autoridades reponsáveis”.

“As Boas Práticas Laboratoriais, em ensaios pré-clínicos, são tão ou mais reguladas que as dos ensaios em humanos.”
Susana Pires, responsável pela área de segurança pré-clínica

Em relação ao caso Bial — o ensaio clínico de fase I que provocou a morte de um voluntário e o internamento de mais quatro —, pôs-se a hipótese de uma das falhas ter ocorrido nos ensaios pré-clínicos, embora Susana Pires tenha dúvidas de que a agência do medicamento francesa (equivalente ao Infarmed em Portugal) deixasse passar lacunas desse tipo.

“É possível que este composto tenha pequenos efeitos noutro alvo muito diferente do alvo principal [FAAH, hidrólase de amidas de ácidos gordos]”, diz, num comentário ao caso, Stephen Alexander, membro da Sociedade Britânica de Farmacologia. Mas Susana Pires explica que, graças à sequenciação do genoma humano, é possível testar in silico (informaticamente) qual a probabilidade de um determinado fármaco se ligar a locais no organismo (alvos) diferentes dos que estavam previstos. Caso sejam encontrados outros alvos potenciais faz-se a confirmação in vivo. “Se a Bial não o tivesse feito, a agência francesa teria notado.”

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Uma alternativa aos ensaios pré-clínicos em células (a duas dimensões) é a criação de modelos tridimensionais, que melhor mimetizem o órgão humano que será o alvo do fármaco, ou onde a droga poderá provocar mais e piores efeitos secundários.

A técnica, cujas preocupações principais são desenhar um bom plano experimental para o ensaio pré-clínico e fazer um estudo exaustivo dos riscos, explica que, para aumentar a probabilidade de uma molécula ser segura em humanos é preciso testá-la na espécie mais relevante, aquela que seja o mais comparável biologicamente. No caso dos testes a moléculas biológicas (como anticorpos ou proteínas) com as quais trabalha a sua empresa, Susana Pires refere que o melhor modelo animal são os primatas. Esta parte do ensaio é encomendada a outra empresa, porque a certificação de laboratórios que façam ensaios de toxicologia em animais é muito exigente.

Ainda assim, se nos primatas é testada uma dose muito forte, nos humanos a dose mais alta não se aproxima sequer desse valor. E os ensaios clínicos começam sempre por uma dose única e muito inferior. Mais tarde serão testadas doses múltiplas. Mas tanto num caso como noutro as doses vão “aumentando devagarinho”, reforça Susana Pires. E os voluntários estarão vigiados para detetar reações adversas assim que ocorram. As análises de sangue frequentes vão permitir avaliar a permanência na corrente sanguínea.

Todas as situações terão de estar previstas, incluindo a possibilidade de reações adversas com alimentos. Por isso, um ou mais grupos do ensaio de fase I poderão tomar o fármaco durante a refeição para avaliar os efeitos.

Segurança em todas as fases do processo

A segurança não acaba nos ensaios pré-clínicos. Cada fase do processo é escrutinada pelos reguladores de cada país onde decorre o ensaio e tem de cumprir a legislação internacional e nacional (como aqui e aqui). Esta auditoria é assegurada em Portugal pelo Infarmed (Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde) em colaboração com a Comissão de Ética para a Investigação Clínica (CEIC) e a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD). A inspeção estende-se a promotores, investigadores, fabricantes, laboratórios analíticos e todos os locais que estão de alguma forma relacionados com a realização dos ensaios clínicos.

“Boas práticas clínicas são os preceitos internacionalmente reconhecidos de qualidade ética e científica que devem ser respeitados na concepção, na realização, no registo, na notificação, na publicação e na revisão dos estudos clínicos que envolvam a participação de seres humanos.”
Lei n.º 21/2014, de 16 de abril

“Estas ações visam verificar a observância das Boas Práticas Clínicas na condução de ensaios clínicos, a verificação da conformidade com as Boas Práticas de Fabrico de medicamentos experimentais, a verificação das Boas Práticas de Laboratório, quando aplicáveis a ensaios clínicos, bem como outras normas e dispositivos legais nos termos da legislação nacional e comunitária em vigor”, esclarece o Infarmed na página oficial dos ensaios clínicos. “O Infarmed realiza ações de inspeção e supervisão dos ensaios clínicos realizados em Portugal, bem como em outros países (União Europeia e países terceiros), sob mandato das instituições comunitárias.”

Em qualquer fase dos ensaios clínicos em que se demonstre que a segurança para uso em humanos não está garantida, o ensaio é interrompido. E sempre que acontecem situações como a da Bial — ou como um incidente em 2006 com uma molécula que hiperestimulou o sistema imunitário e provocou efeitos adversos graves — as recomendações e garantias de segurança tornam-se muito mais exigentes. “[Aquele caso de 2006] fez com que os requisitos de segurança fossem revistos, identificaram-se alguns medicamentos com um maior risco potencial e estabeleceram-se garantias adicionais para os medicamentos que atuam no sistema imunitário e podem provocar uma reação em cadeia imparável”, diz Cristina Avendaño, presidente da Sociedade Espanhola de Farmacologia Clínica, citada pelo El País.

Mas se o problema não for o protocolo (modelo experimental) escolhido, pode ser a molécula em si (como já foi referido), a produção do composto que é usado no ensaio clínico ou a distribuição. Raquel Fortunato, diretora geral da Genibet — uma empresa portuguesa que se dedica à produção de compostos que serão usados nos ensaios de fase I —, duvida que o problema esteja na produção ou distribuição. “É um campo altamente regulamentado”, diz ao Observador.

A empresa segue as recomendações de Boas Práticas de Fabrico para garantir a qualidade do produto. E, tal como os restantes intervenientes no processo, é fiscalizada pelo Infarmed. “Tenho dificuldade em imaginar que algo corra mal na produção”, diz Raquel Fortunato. Todos os produtos têm caderno de lote que inclui uma lista de instruções e verificações para assegurar que todos os passos importantes foram seguidos. De qualquer forma, todos os lotes passam por um processo de controlo de qualidade.

“É normal que haja erros, mas o sistema está montado para que sejam identificados.”
Raquel Fortunato, diretora geral da Genibet.

Em relação à distribuição, ainda que não seja da competência da Genibet, Raquel Fortunato afirma que “dificilmente pode haver contaminação no contentor de transporte”, porque este se encontra “selado”. Mesmo nos casos em que o composto tem um requisito especial, como a manutenção de uma determinada temperatura, há sistemas que permitem verificar se as condições foram mantidas durante a viagem. Além disso, as boas práticas recomendam que se faça uma verificação de qualidade em todos os lotes que sejam recebidos num laboratório depois do transporte.

A investigação não se esgota nos ensaios

A empresa farmacêutica Roche define “ensaios clínicos” como “qualquer investigação conduzida no ser humano, destinada a descobrir ou verificar os efeitos clínicos, farmacológicos ou os outros efeitos farmacodinâmicos de um ou mais medicamentos experimentais, ou a analisar a absorção, a distribuição, o metabolismo e a eliminação de um ou mais medicamentos experimentais, a fim de apurar a respetiva segurança ou eficácia”.

Embora a avaliação da segurança e eficácia seja o objetivo principal dos ensaios, a recolha de informação científica sobre a molécula também é muito importante. No caso da sépsis, quanto mais se souber sobre a forma como o medicamento atua no tratamento, mais se vai saber sobre esta doença ainda pouco estudada.

A sépsis é uma doença muito heterogénea. Tem origem numa infeção, mas esta pode ter sido causada por uma bactéria, por um vírus, por um fungo, ou por vários destes agentes patogénicos em simultâneo. Além disso, pode começar em qualquer um dos principais órgãos do corpo. Mais, cada doente é um caso particular, pois o seu estado de saúde de base vai influenciar a forma como evolui a doença.

A equipa de Luís Moita está interessada não só no medicamento que vai levar a ensaio clínico, mas também na compreensão dos próprios mecanismos da doença. Perceber como é que a molécula atua para aumentar a sobrevivência dos ratinhos, pode ajudar a compreender esses mecanismos. Quanto mais se souber sobre a doença, mais fácil será encontrar novos alvos terapêuticos e, consequentemente, novas moléculas que sejam específicas no tratamento da doença, por um lado, e eventualmente menos tóxicas que os citostáticos, por outro.

Nos cinco anos que já dedicaram ao estudo da molécula que irá iniciar os ensaios clínicos estes ano, os investigadores conseguiram identificar um mecanismo geral da doença, mas agora querem perceber o processo de uma forma mais detalhada.

Todo o conhecimento que resulta dos testes laboratoriais, ensaios pré-clínicos e clínicos — quer as moléculas sejam bem sucedidas ou não — deveria ser integralmente partilhado, como defende grande parte de comunidade científica. Não revelar os resultados obtidos ou mesmo os protocolos, para que possam ser usados por outros investigadores, é um desperdício de tempo e dinheiro e atrasa os avanços na medicina, alerta a Organização Mundial de Saúde.

Embora já existam plataformas – tanto na Europa como nos Estados Unidos – que permitem acesso aos ensaios clínicos que estão a decorrer, a informação ainda não está totalmente acessível. Aumentar a transparência é também um dos objetivos da nova regulamentação europeia que está em preparação. Outro objetivo, de certa forma relacionado, é a criação de uma plataforma que agregue toda a informação relativa aos ensaios clínicos – e que se espera que esteja acessível em 2018.

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