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ANA MARTINGO/OBSERVADOR

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

O bem contra o mal ou a guerra contra a paz. Como Guterres, Durão, Portas e Louçã discutiram no Parlamento a intervenção no Afeganistão

Guterres, Durão Barroso, Portas e Louçã foram alguns dos intervenientes quando o Parlamento discutiu como agir perante a ameaça talibã após o 11 de setembro 2001. Como foi a discussão há 20 anos?

Os dias entre o 11 de setembro de 2001 e a intervenção dos EUA no Afeganistão provocaram discussões acaloradas até no Parlamento português. António Guterres era primeiro-ministro e só duas semanas depois do atentado foi falar sobre o assunto com os deputados. Antes disso já disponibilizara a Base das Lajes à Administração Bush ou não tivesse já o artigo 5.º da NATO sido ativado. No Parlamento português, defenderia, na pele de chefe de Governo, que uma resposta militar norte-americana contra Estados que protegiam os terroristas (em particular o regime talibã no Afeganistão) estava legitimada pela comunidade internacional, incluindo as Nações Unidas — órgão que, 20 anos depois e no momento da retirada norte-americana, Guterres lidera.

Mesmo que se tenha pegado com o líder da oposição Durão Barroso, na base PS, PSD e também o CDS de Paulo Portas concordavam. Na discussão parlamentar, o centrão foi sempre “pró-americano”, com exceção de algum ceticismo da ala esquerda do PS, onde estava Manuel Alegre e também os “jotinhas” então encabeçados por Jamila Madeira. Barroso e Portas tinham o discurso mais belicista e não fugiam de termos como “retaliação” nem descartavam o uso da força (leia-se, uma intervenção militar no Afeganistão). Não muito tempo depois Barroso já era o chefe de Governo quando o país enviou tropas para Cabul (as primeiras foram em fevereiro, ainda com o executivo de Guterres em gestão pós-pântano) e Paulo Portas, em coligação, era já o Ministro da Defesa que coordenava a operação. Nem eles o previam no momento do debate em setembro de 2001. Pelo meio, Barroso apoiou a invasão no Iraque, também ao lado de Portas, que hoje comenta esta retirada na televisão.

Francisco Louçã foi sempre crítico dos norte-americanos e o PCP — em 2001, tal como aconteceu agora em 2021 — não parou de lembrar que os talibãs chegaram a ser apoiados e armados pelos EUA. Isto numa referência à guerra afegã-soviética, por muitos considerada o Vietname da antiga URSS.

Houve assim dois momentos — num plenário a 19 de setembro 2001 e num debate mensal com o primeiro-ministro seis dias depois, a 25 — em que as consequências do 11 de setembro foram discutidas na Assembleia da República e percebeu-se de imediato que PS, PSD e CDS concordariam que Portugal contribuísse com o envio de tropas para o Afeganistão. Foi o que acabou por acontecer. Com o artigo 5.º da NATO ativado e uma posição da UE alinhada de forma genérica com Washington não havia muito que os debates parlamentares pudessem mudar, mas valeram para troca de argumentos.

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Sampaio, “amigo” dos EUA, escreveu aos deputados

O mundo tinha mudado oito dias antes com o atentado ao World Trade Center e ao Pentágono. Havia incerteza na classe política e o Parlamento debatia pela primeira vez como Portugal devia reagir ao mundo pós-11 de setembro, apenas oito dias depois do ataque em Nova Iorque. No hemiciclo havia dois pólos: o ‘centrão’ (PS-PSD-CDS) que defendia a retaliação ao Afeganistão, em tons mais ou menos belicistas, que dependiam dos protagonistas; e PCP, Os Verdes e o jovem Bloco de Esquerda num tom mais anti-americano de quem queria evitar uma intervenção militar a todo o custo.

Jorge Sampaio, então Presidente da República, antecipou-se e antes mesmo do plenário enviou uma carta aos deputados a expor todas as suas preocupações. As palavras chegaram aos deputados pela voz da segunda figura do Estado, o socialista António Almeida Santos, que leu a carta perante o hemiciclo.

O tom do chefe de Estado era pró intenções norte-americanas e dizia que “Portugal é um país amigo”  e que “os EUA não estão sozinhos”. Aos deputados, lembrava que “importa que se proceda a uma reflexão coletiva sobre a resposta a dar a esta nova dimensão do terrorismo”.

Jorge Sampaio

A carta do Presidente aos deputados

Jorge Sampaio era na altura Presidente da República e decidiu enviar uma carta aos deputados no primeiro debate que se realizou após o 11 de setembro. Pediu-lhes que fizessem uma “reflexão coletiva sobre a resposta a dar a esta nova dimensão do terrorismo.”

De alguma forma também condicionou o debate ao lembrar as obrigações internacionais de Portugal no âmbito na NATO: “A Resolução n.º 1368 do Conselho de Segurança das Nações Unidas condenou com invulgar dureza os atentados, reconhecendo, pela primeira vez, o exercício do direito de legítima defesa contra o terrorismo internacional. A Organização do Tratado do Atlântico Norte abriu a possibilidade de recurso ao artigo 5.º do Tratado, uma decisão nunca antes tomada na sua história. Portugal revê-se nessas interpretações dos factos.”

Sampaio não fechava a porta a uma resposta em forma de conflito armado e preparava terreno. A Resolução n.º 1368 do Conselho de Segurança das Nações Unidas tinha reconhecido, pela primeira vez, o exercício de direito de legítima defesa contra o terrorismo. E mais, lembrava o Presidente, a NATO “abriu a possibilidade de recurso ao artigo 5.º do Tratado, uma decisão nunca antes tomada na sua história”. Este é, nada mais nada menos, o artigo que estabelece que um ataque a um dos membros da organização atlântica é considerado um ataque a todos. E a posição do Estado português, ali através do seu representante unipessoal, estava claramente alinhada com Washington: “Portugal revê-se nessas interpretações dos factos.”

Aos deputados, Jorge Sampaio lembrava ainda que “o inimigo é real e poderoso”, não fechava a porta à guerra — sem o referir diretamente — admitindo que “a ameaça terrorista exige respostas novas e eficazes”. Sobre essa resposta colocava como condição que fosse feita no quadro da comunidade internacional e com “firmeza, adequação, proporcionalidade e bom senso”.

"A ameaça terrorista exige respostas novas e eficazes. Essas respostas têm de se situar nos quadros da comunidade internacional e da sua ordem jurídica e deverão ser utilizadas com firmeza, adequação, proporcionalidade e bom senso."
Jorge Sampaio, então Presidente da República

Quando Almeida Santos acabava de falar, na TVI, a estação então líder de audiências, passava a novela Chiquititas e estava prestes a começar o Batatoon, com o palhaço Batatinha. Na SIC estava prestes a começar a novela New Wave. E na estação pública também uma uma novela, a “Vidas de Sala”. Ainda não havia ARTV e, a espaços, era via SIC Notícias — criada nesse ano, com esse nome, tendo por base o CNL — que se podia ver partes do debate.

Voltemos ao Parlamento. Os quatro deputados que se inscreveram para declarações políticas eram todos figuras em ascensão na política nacional — como os anos seguinte confirmariam. Francisco Louçã cumpria  com Fernando Rosas (iam rodando com Luís Fazenda) o primeiro mandato parlamentar; Durão Barroso era então líder da oposição e presidente do PSD; José Lamego era um deputado com peso na bancada socialista durante o guterrismo (e não só); e Paulo Portas, deputado e jovem líder do CDS, fizera apenas 39 anos no day-after do 11 de setembro.

Tinha a palavra o deputado Franscisco Louçã.

Louçã, o pacifista que atirou ao loving guy W. Bush

Francisco Louçã falava e era, a espaços, aplaudido por toda a bancada do Bloco de Esquerda. E o “toda a bancada” estava longe dos 18 que Catarina Martins tem hoje de claque: limitava-se ao historiador Fernando Rosas. O deputado e líder do Bloco de Esquerda Francisco Louçã começou por lamentar o “ataque bárbaro” de que foram alvo os Estados Unidos, mas não sem antes “convocar a memória” que exatamente 28 anos antes, também a 11 de setembro, Pinochet tinha feito um golpe de Estado no Chile contra o regime do socialista Salvador Allende. “Nunca caso como noutro, ouvimos esse grito distante do «viva la muerte» que justificou todas as barbáries, todos os genocídios e todas as intolerâncias”, dizia Louçã, que recusava que Bin Laden fosse visto como um representante dos oprimidos.

O bloquista pedia uma “ação concertada”, mas que passaria por uma escolha que excluía a guerra. É a escolha, dizia Louçã, “também da política portuguesa”: “E é a nossa, no Parlamento português: é a escolha entre o partido da guerra ou o partido da paz, entre aqueles que dizem ‘para a guerra, todos e em força’ e aqueles que percebem que há uma diferença entre a devastação e a força da lei”.

Louçã começa então a diminuir George Bush e Paulo Portas interrompe-o num aparte parlamentar:

Francisco Louçã: Quando, de um lado, temos uma liderança de George Bush, aquele loving guy que, durante 10 horas se passeia…

Paulo Portas: Se passeia?!

Fracisco Louçã: … Nebrasca e a Flórida, para só três dias depois visitar as vítimas do terror, percebe-se que não há aí uma direcção política capaz de ter escolhas. Se a espiral da retaliação é a escolha, ela é errada e os factos provam que é errada.

Por esta altura, circulavam imagens de George W. Bush a receber a notícia dos atentados enquanto lia uma história a alunos de uma escola na Flórida. Era nesse tom corrosivo que Louçã se referia a Bush. Ao jeito de um excerto da música-manifesto “FMI”, de José Mário Branco, Louçã foi chamando e citando no discurso figuras que admirava ou detestava, referindo Colin Powell, Maria de Lurdes Pintassilgo,  Freitas do Amaral ou Mário Soares. Lembrava ainda que o “mundo livre” apoiou figuras como Saddam Hussein, Jorge Rafael Videla, Pinochet, Noriega, Papa Doc  ou Sukarno. E por aí continuou.

“A Guerra Fria é o vazio das alternativas, convoca-nos para um combate que não é tolerável, em nome de quem inventa que George Bush é um D. Sebastião que aterra aqui, na Costa do Estoril, numa manhã de nevoeiro, para defender o mundo livre”, atirou ainda Louçã.

O bloquista tentava a todo o custo evitar que Portugal se envolvesse na intervenção no Afeganistão e — apesar de já ter sido ativado o artigo 5.º da NATO e de o país estar sujeito à lei internacional — Louçã exigia que o Parlamento fosse ouvido: “Quem quer guerra tem a responsabilidade de assumir aquilo a que a Constituição nos obriga: vir a esta Assembleia e pedir a declaração de guerra.” O deputado bloquista avisava que “Portugal na guerra nada conta”, mas “pode contar na paz”. O discurso era claro: criar uma dicotomia entre guerra e paz, anti-intervenção no Afeganistão, que PSD, CDS e PS tentariam desmontar com uma outra dicotomia (humanidade vs terrorismo) que justificaria uma intervenção militar.

"O horror do ataque bárbaro a Nova Iorque e a Washington, que vitimou milhares de cidadãos, convocou a memória, nestas trágicas coincidências, de um outro acontecimento de 28 anos antes, quando Pinochet tinha lançado as suas hordas contra o palácio de Allende. Num caso como noutro, ouvimos esse grito distante do 'viva la muerte' que justificou todas as barbáries, todos os genocídios e todas as intolerâncias."
Francisco Louçã, então líder e deputado do BE

Durão mais belicista e sem “tibiezas” ao lado do Tio Sam

Durão Barroso era líder da oposição e já trazia na bagagem uma derrota em legislativas dois anos antes, contra António Guterres — que lhe tinha sido desculpada pela deserção de Marcelo em ano eleitoral (1999). Essa derrota tinha-lhe dado confiança na concretização de uma profecia que tinha como lema desde a noite eleitoral: “Sei que vou ser primeiro-ministro, só não sei quando”. O objetivo do presidente do PSD era, por isso, desgastar o Governo PS de Guterres, mas isso ficaria para o debate com o primeiro-ministro — seis dias depois — dedicando a retórica agora ao apoio quase incondicional às intenções norte-americanas.

Assumido atlanticista, o discurso de Barroso foi dos mais belicistas, até na semântica. “Estamos perante um novo tipo de guerra”, disse, considerando o ataque às torres gémeas do World Trade Center e ao Pentágono como “um verdadeiro ato bélico” dirigido à civilização.

Durão Barroso com George W.Bush na Casa Branca

O líder do PSD era claro: “Perante esta ameaça, temos de responder com firmeza e sem ambiguidades.” Para Barroso, Portugal também tinha sido direta e indiretamente atacado (“Portugal também foi atingido!”) e aquele ato “para além da legítima defesa individual do Estado directamente atingido” tinha legitimado o “direito de legítima defesa colectiva da própria comunidade internacional”.

Se circulava a ideia (mais à esquerda) de que se podiam apenas fazer ações cirúrgicas para capturar os responsáveis pelo ato, Durão Barroso queria mais e pedia que se avançasse para “identificar os responsáveis, aniquilar as suas redes e os seus apoios”, mas também “agir contra os Estados cúmplices desse terrorismo”.

Barroso lembrava o Estado Novo para defender a necessidade de Portugal tomar um lado do conflito: “Não podemos voltar ao período cínico da nossa História em que o regime [salazarista] se gabava da neutralidade perante os ditadores e os fanatismos”.

Na linha do que era a ação externa norte-americana naquela altura, Barroso defendia no Parlamento português “a formação de uma coligação internacional contra o terrorismo, tão ampla quanto possível”, naquilo que deveria ser uma “reação enérgica, decidida, sem tibiezas” .

Se dúvidas houvesse sobre aquela que deveria ser, na ideia do líder do PSD, a posição portuguesa sobre um envolvimento militar, Barroso acabaria por esclarecer no fim do discurso:

“Recuso, pois, uma posição oportunista, que seria a de prometermos solidariedade verbal, mas não correspondermos positivamente aos esforços que nos sejam solicitados. Recuso, pois, também, o pacifismo falso“.

O PS status quo alinhado com EUA (e o desconforto de Jamila e Alegre)

José Lamego tinha sido secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros durante o primeiro Governo de Guterres, mas sairia a meio do mandato, para ser substituído por Luís Amado. Tinha, portanto, autoridade para falar em nome do PS sobre política externa e teria a sensibilidade de não comprometer António Guterres que iria, na semana seguinte, falar no assunto — já depois do Conselho Europeu Extraordinário que foi convocado para que a União Europeia desse uma resposta comum aos acontecimentos.

O socialista fez então o teaser da ida de Guterres ao Parlamento: “O Governo virá aqui, conforme foi afirmado pelo senhor primeiro-ministro, depois da reunião do Conselho Europeu Extraordinário de sexta-feira, para discutir com esta Assembleia todas as perspectivas e toda a multiplicidade deste ataque terrorista, bem como as suas consequências, em termos de vida política internacional e de vida política interna”.

José Lamego mostrava que a maioria do PS e o Governo estavam disponíveis para acompanhar os EUA também a nível militar e deixava já esse sinal: “Disponibilizando-nos, naturalmente, para a prestação de assistência a uma acção retaliatória relativamente aos criminosos e aos seus mandantes.”

O PS não ia partir em termos de unidade, votos de pesar ou outras ações simbólicas, mas no debate esteve longe de existir unanimidade. A então líder da JS, Jamila Madeira, tentava empurrar o PS mais para o lado da não-intervenção militar. A deputada e líder da organização juvenil respondia a José Lamego para dizer que era preciso ter “reações racionais” e que não bastava um “simples impulso de vingança”. Tal como BE, PCP e PEV, a JS não queria a guerra no Afeganistão: “Vingar os mortos não significa fazer justiça com as próprias mãos, parar o terrorismo não significa fazer sofrer inocentes e considerá-los apenas como danos colaterais.”

Por fim, Jamila Madeira tentou encostar às cordas o deputado da sua bancada fazendo-lhe perguntas diretamente: “Está ou não o PS inteiramente empenhado em que, depois de todos estes momentos de dor, se evitem mais vítimas? Está ou não o PS disponível para evitar que esta noção de justiça seja transformada na primeira guerra das nações do século XXI?

José Lamego tenta então meter a “jotinha” no lugar, lembrando-lhe que estava a ir contra aquilo que era a posição da bancada. A certa altura até lhe agredeceria a pergunta por permitir “clarificar” aquilo que é um “entendimento comum do partido e da bancada a que ambos pertencemos.” Não cedeu, no entanto, no tom, acrescentando que Portugal e os seus aliados não teriam de “atenuar a capacidade de reação”, já que “a haver uma ação de retaliação” teria sempre de “se pautar pelos princípios da proporcionalidade”. Deixava ainda o aviso: o primeiro-ministro António Guterres “não vem aqui para pedir qualquer tipo de autorização”.

Manuel Alegre, não estava tão confiante que fossem seguidas as regras do direito internacional, e a meio caminho entre José Lamego e Jamila Madeira, também pediria a palavra para dizer: “Quero sublinhar que a intolerância e o fanatismo não se podem combater pondo nós próprios em causa a tolerância“.

Portas queria “responsabilizar cúmplices estaduais” e promover “rearmamento moral”

Chegou a vez de Paulo Portas, que, com Basílio Horta, formou a dupla de deputados centristas mais interventivos neste debate. E muitas vezes acabariam por concordar com o PS. Na mesma linha de Durão Barroso, Paulo Portas também se mostrava mais defensor de um hard power para responder à ameaça internacional do terrorismo. “Nós não hesitamos nas palavras, não temos ambiguidade nos conceitos e não recomendamos tibieza na ação”, dizia o então líder centrista.

Portas propunha “a perseguição dos responsáveis e a responsabilização dos seus cúmplices estaduais ou institucionais é um direito que assiste aos Estados Unidos da América e um dever que assiste ao Ocidente e ao mundo livre de que Portugal faz parte.”

Perante o discurso pacifista da esquerda e da ala esquerda do PS, Paulo Portas contrapunha: “A condição da paz é fazer justiça”. O líder democrata-cristão defendia que “o Ocidente” (expressão que utilizou várias vezes e que Manuel Alegre contestou tantas outras) não podia “gastar mais tempo sem definir com clareza a identificação do adversário”. E ia mais longe ainda: “Acho que as sociedades ocidentais precisam, para a sua própria sobrevivência, de estabelecer o seu rearmamento moral.” Fernando Rosas acabaria por protestar em mais um aparte parlamentar: “E quem é que define o que é moral!?”

"A perseguição dos responsáveis e a responsabilização dos seus cúmplices estaduais ou institucionais é um direito que assiste aos Estados Unidos da América e um dever que assiste ao Ocidente e ao mundo livre de que Portugal faz parte."
Paulo Portas, então líder do CDS

Guerra e paz. Quatro votos de pesar para duas visões

No mesmo dia foram apresentados quatro votos de pesar pelas vítimas do 11 de setembro, mas neles já estavam duas visões sobre como deveria ser a posição portuguesa numa eventual intervenção militar no Afeganistão. O voto de pesar do centrão, assinado por PS, PSD e CDS, não fechava a porta a uma intervenção militar, pedindo “serenidade na decisão e eficácia na ação”, sem prejuízo de uma reflexão que se impunha “sem tibiezas e sem demoras, sobre a validade de respostas defensivas que têm permitido e de modelos organizativos que têm coexistido com tanto fanatismo, tanta crueldade e tanto ódio.”

Já os votos de pesar apresentados pelo Bloco de Esquerda, pelo PEV e pelo PCP defendiam que o país não apoiasse uma eventual intervenção no Afeganistão. O Bloco pedia que se trave a “espiral da guerra” pedia que se evitasse “escrupulosamente qualquer restrição às garantias, liberdades e direitos fundamentais”.

Já Os Verdes exprimiam, de forma inequívoca, “o desejo de que não sejam empreendidas quaisquer intervenções militares que, a acontecer, acabariam por gerar uma nova escalada de violência de proporções hoje inimagináveis e, atingir inevitavelmente civis e cidadãos indefesos”. O PCP pedia igualmente no seu voto que houvesse “serenidade e racionalidade nas medidas a tomar, excluindo acções arbitrárias que sobreponham a vingança à justiça contribuindo para uma espiral de violência de efeitos imprevisíveis.”

No fim, apenas o voto de pesar do “centrão” foi aprovado e só o Bloco de Esquerda votou contra. Por não haver referências mais explícitas a uma intervenção militar PCP e PEV optaram pela abstenção. Os outros votos acabaram chumbados, mas Jamila Madeira em três deles e uma outra deputada do PS, em dois deles abstiveram-se.

"Não macaqueie a História!"
Fernando Rosas num aparte à intervenção de Francisco Assis

O debate em torno destes votos de pesar seria também ele animado, como mostram algumas frases que ajudam a perceber bem a posição de cada bancada.

Carlos Encarnação (PSD):Se for preciso atos de guerra, que sejam praticados actos de guerra, em retaliação, com a mesma normalidade com que o direito à legítima defesa nos permite apelar a esta atitude.”

Basílio Horta (CDS): “Querer, hoje, firmeza e, eventualmente, a guerra, se for necessário tê-la, é garantir a paz, a curto e a médio prazo.”

Isabel Castro (PEV): “Exigimos que a resposta seja encontrada no plano dos direitos, seja uma resposta política e não militar. (…) O recurso às armas é a abertura de um capítulo que pode começar aqui, mas cujo fim desconhecemos

Bernardino Soares (PCP): “A identificação e a aplicação da justiça aos responsáveis por estes atos, nos termos do direito internacional, uma grande serenidade e racionalidade nas medidas a tomar, excluindo ações arbitrárias que abram caminho a uma escalada de violência e guerra, e também o respeito pelo papel das Nações Unidas, são algumas das preocupações que optámos por deixar expressas no voto que apresentámos na Mesa.”  

Fernando Rosas (BE): “É necessário entender que a escalada da guerra, a escalada do contraterror à margem do Direito Internacional como gesto de vingança imperial não pode resolver o quer que seja deste tipo de problemas, mas só pode constituir, isso sim, mais um passo no ciclo interminável da escalada da guerra e do terror. E nisto sentimo-nos bem acompanhados pelas declarações recentes do Bispo D. Januário Torgal, de Maria de Lurdes Pintasilgo ou de Mário Soares.”

Francisco Assis (PS): “Começamos claramente por rejeitar a retórica pacifista de tão má memória no século XX, que tende a impor uma dicotomia entre o partido da paz e o partido da guerra, porque essa dicotomia é absolutamente inaceitável!”

A intervenção de Assis acabaria por levar a uma troca de argumentos com um dos dois deputados do Bloco de Esquerda. Assis contestava a dicotomia entre paz e guerra e tocou no ponto mais sensível para Rosas, a sua vida profissional: “Basta olhar para o século XX! O senhor deputado Fernando Rosas, que é um notável historiador, melhor do que ninguém está em condições de avaliar isso, para saber quanto essa dicotomia é errada! Porque, se a aplicássemos aos anos 30, poderíamos ser levados a concluir que o Sr. Churchil estava do lado do partido da guerra e o professor Oliveira Salazar, com o seu neutralismo cínico, estava do lado do partido da paz!

A teoria era a mesma de Barroso: que o exemplo de neutralidade do país era o de Salazar e era de má memória. Fernando Rosas atirou em vários apartes de protesto: “Não macaqueie a História!”

Enfim, Guterres. “Vamos até aí”, se os senhores “vierem até aqui”

Duas semanas depois do 11 de setembro e uma semana depois do primeiro debate na Assembleia da República, apareceu António Guterres. Era o debate mensal (anos depois passariam para quinzenais, que foram recentemente extintos) com o primeiro-ministro. Não há nada que o então primeiro-ministro português tenha dito na altura que comprometa o cargo que hoje ocupa, de secretário-geral das Nações Unidas e árbitro mundial, mas, naturalmente, não excluiu a guerra, não excluiu a presença portuguesa numa eventual guerra contra os talibãs no Afeganistão e tentou autopromover-se como conciliador de povos do Médio Oriente, lembrando que três meses antes promovera um encontro entre Shimon Peres e Arafat em S.Bento.

António Guterres

O primeiro-ministro que permitiu o uso das Lajes e admitia intervenção militar no Afeganistão

António Guterres era primeiro-ministro e só duas semanas depois do atentado foi falar sobre o assunto com os deputados. Antes disso já disponibilizara a Base das Lajes à Administração Bush. Carlos Carvalhas disse que os norte-americanos utilizaram a base sem pedir autorização, ao que Guterres garantiu: “Isso não é verdade”.

No Parlamento português, defenderia, na pele de chefe de Governo, que uma resposta militar norte-americana contra estados que protegiam os talibãs estava legitimada pela comunidade internacional, incluindo as Nações Unidas — órgão que, 20 anos depois e no momento da retirada norte-americana, lidera.

Guterres deixava cair para já a ideia de fazer apenas detenções cirúrgicas dos responsáveis pelo atentado e visou diretamente os Estados (que neste momento já se sabia ser o Afeganistão e o Paquistão — que optou por alinhar de imediato com os norte-americanos) que apoiavam a Al-Qaeda. “O combate sem tréguas ao terrorismo, aos que o praticam e aos Estados e organizações que os apoiam ou albergam é, neste momento, o essencial”, disse Guterres na sua intervenção no debate no Parlamento português.

Para o justificar, Guterres invocava o multilateralismo e a resolução do Conselho de Segurança da organização que hoje lidera. A resolução n.º 1368, lembrava o chefe de Governo, “reconhece o direito inerente à legítima defesa”. E depois mostrava um apoio condicional que não só poderia ser dado, como já estava a ser dado:

Os Estados Unidos da América têm nesta ação o claro apoio de Portugal, traduzido já de forma inequívoca na cedência de facilidades de trânsito na Base das Lajes e no espaço aéreo português, nos termos do Acordo de Cooperação e Defesa.”

Guterres dizia que, “sem se pôr em bicos dos pés”, Portugal estava “pronto a assumir todas as suas responsabilidades, como país defensor dos valores democráticos, como aliado dos Estados Unidos nas boas e nas más horas, e como membro da NATO e das Nações Unidas.” O socialista, que tinha estado num Conselho Europeu extraordinário sobre o assunto, diz que esta posição de “firmeza” é partilhada pela UE. Ou seja: os Estados-membros não excluíam integrar uma aliança militar contra os talibãs, como se viria a verificar meses mais tarde.

A linha do Governo português, aqui pela voz do primeiro-ministro, não diferia muito da oposição, mas Guterres procurava também falar o mais que podia para a esquerda, dizendo que “esta resposta antiterrorista não pode ser, e estou certo de que não é, nem será, um acto de vingança e muito menos uma ‘guerra santa’ contra o Islão como inimigo imaginário ou abstrato”. Ao mesmo tempo que falava no “necessário uso da força”, Guterres advertia que este não pode apagar o princípio da tolerância que o terrorismo procura destruir.

Quando Barroso pediu a palavra já Guterres estava irritado com o líder oposição. Depois de Sampaio ter sugerido, na carta que enviou ao Parlamento, que se avançasse com a Lei da Programação Militar, Barroso foi a Belém apresentar a proposta do PSD. Guterres ficou furioso e não o escondeu no debate.

O problema inicial levantado por Barroso, que Guterres reconhecia, é que Portugal não tinha as Forças Armadas preparadas nem para se defender num conflito nem para honrar compromissos internacionais exigentes no plano militar. “Não estamos devidamente preparados em termos de defesa e de segurança”, apontava Barroso. Perante o consenso pedido pelo Governo para melhorar as Forças Armadas, o líder do PSD deixava um aviso a Guterres: “O consenso é uma avenida muito larga, mas com dois sentidos, consenso é ‘irmos até aí’ mas também ‘virem até aqui’.

Guterres tinha o pretexto para contra-atacar e disse a Barroso: “O PSD, que desde dia 11 poderia ter feito a proposta que fez, não só não a não fez como a fez na véspera da votação na especialidade nesta Câmara, e nem sequer a apresentou aos partidos desta Câmara, foi apresentá-la ao Sr. Presidente da República.” E atirou: “É verdade que o consenso passa por nós ‘irmos até aí’ e por os senhores ‘virem até aqui’; porém, o mais difícil de compreender é um consenso que passa por nós ‘irmos até aí’ e os senhores irem para outro lado tentar resolver o mesmo problema.” Ou outro lado era Belém.

Guterres é hoje o secretário-geral da ONU

UN Photo/Manuel Elias/LUSA

O fogo amigo de Alegre e as críticas da esquerda

Se seis dias antes Jamila Madeira tinha sido a voz mais inconformada, o histórico socialista deixou mais clara a sua posição com o primeiro-ministro pela frente. As frases foram claras: “Não se vence o terrorismo com uma retórica guerreira”; Este combate é muito difícil e não se resume a uma guerra-espectáculo”.

Manuel Alegre dizia que se congratulava com a posição do Governo, mas acrescentava um “no entanto”. E esse “no entanto” é para que o Governo não tenha pudor em reforçar a autonomia da Defesa Nacional. Guterres diria, na resposta, que estava de acordo com Alegre, mas não deixava de destacar que — em relação ao combate ao terrorismo  –“não há ambiguidades, não há neutralidades e não há desculpas”. E aí era claro: “Portugal tem de aceitar as suas responsabilidades nesse combate na medida das suas possibilidades, mas em espírito de inteira solidariedade com a Aliança Atlântica, com os Estados Unidos da América, com as Nações Unidas.”

Para o então primeiro-ministro esta questão não estava em causa e “não o estaria nunca” quando fosse “pedido o contributo português em qualquer das suas formas para o combate ao terrorismo”. Sobre o poderio militar (ou a falta dele), Guterres lembrava que Portugal respondeu quando foi chamado em conflitos como a Bósnia, o Kosovo ou Timor.

Francisco Louçã

Louçã comparou o 11 de Setembro de Bin Laden ao de Pinochet

Franscisco Louçã, então líder e deputado do recém-criado Bloco de Esquerda, só estava no Parlamento há dois anos, mas foi das vozes mais críticas de uma eventual intervenção. Defendia a paz sob todas as circunstâncias, mesmo se admitia que a ameaça terrorista era elevada.

O bloquista não hesitou em menorizar George W.Bush e comparou o 11 de setembro de 2001 com o 11 de setembro 28 anos antes no Chile, quando Pinochet afastou Salvador Allende do poder com um golpe de Estado. Referiu várias figuras no seu discurso, por diferentes razões: Maria de Lurdes Pintassilgo,  Freitas do Amaral, Mário Soares, como elogio. Ou em sentido inverso para lembrar figuras apoiadas pelo Ocidente como Saddam Hussein, Jorge Rafael Videla, Pinochet, Noriega, Papa Doc  ou Sukaro.

O então secretário-geral do PCP, Carlos Carvalhas, decidiu então insistir e fazer uma pergunta diretamente sobre intervenção militar ao primeiro-ministro: “Como avalia, então, no plano ético, uma poderosa operação militar de retaliação que, com grandes probabilidades, fará novas vítimas inocentes, sem provas claras, sem mandato da ONU, porque a resolução que citou não cobre este caso, alimentando novos ódios e espirais de violência?” Perguntaria ainda a Guterres o que achava das antigas relações dos EUA com Bin Laden e com as “despóticas monarquias do Golfo”.

Guterres seria duro na resposta a Carvalhas, que ainda acusou os EUA de utilizarem primeiro as Bases das Lajes e só depois avisarem o Governo. Na resposta, o primeiro-ministro acusou o líder comunista de descrever um “modelo imaginário”, garantindo que não era verdade que “os EUA tenham utilizado as Lajes sem autorização” e que qualquer ação estaria legitimada pelas Nações Unidas: “Para nós, não há dúvida alguma de que os Estados Unidos agem com legitimidade.” Guterres defendia que existia, naquele momento, uma “vasta coligação claramente legitimadora de uma ação de força feita com racionalidade para combater o terrorismo”.

Em resposta a Isabel Castro, o primeiro-ministro acabaria por esclarecer que aquilo com que concordou foi, não com uma “guerra santa”, mas com “uma intervenção dirigida contra quem praticou o terrorismo e os Estados que dão apoio a esse mesmo terrorismo“.

Barroso para Guterres: “Já não tenho paciência para os seus números políticos”

Ao longo do debate mensal, Portas acabaria por exigir mais segurança e repetir a posição que apresentou seis dias antes. Durão Barroso também se focou na Lei da Programação Militar sempre enquadrada na nova necessidade de resposta ao terrorismo e acabaria por subir o tom a meio da intervenção: “Quero dizer-lhe uma coisa, Sr. primeiro-ministro: eu já não tenho paciência para os seus números políticos!”

Seria Francisco Assis, pelo PS, a sair em defesa do Guterres: “É pena que o líder da oposição não esteja, nesta hora, verdadeiramente à altura do serviço público que lhe seria dado a assumir”. A bancada do PS acusaria o PSD de não ter o sentido de Estado de procurar consensos com o Governo num momento sensível.  Barroso justificava ao dizer que apenas fez uma “proposta séria e construtiva” ao primeiro-ministro e que este lhe “respondeu com um ‘número político’ que já lhe é habitual!”

Cinco meses depois desta discussão Portugal enviaria os primeiros homens para o Afeganistão.

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