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O depoimento de Salgado, Ricciardi ao ataque e "que se lixem os lesados". A primeira semana do julgamento do caso BES em seis momentos

Começou na manhã de terça-feira, dia 15, e acabou esta sexta-feira à tarde a primeira de muitas semanas de um dos casos mais mediáticos da Justiça em Portugal.

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Os primeiros sinais surgiram ainda em 2013, com suspeitas internas sobre o rigor da gestão que Ricardo Salgado fazia das contas do Banco Espírito Santo. O que é descrito, num primeiro momento, como meros family affairs e tensões entre primos dá lugar, já em 2014, a documentos que — garantiu José Maria Ricciardi em tribunal — seriam “a prova” de que as contas do grupo estavam a ser falsificadas para ocultar perdas de milhares de milhões de euros. Perdas que sustentaram a resolução do banco e que levaram à queda do império Espírito Santo.

O GES/BES chegou ao fim da linha em agosto de 2014. Resultado: milhares de clientes lesados e um impacto gigantesco nas contas públicas. Esta terça-feira, começaram a ser julgados os 18 arguidos — 15 pessoas e três empresas —, acusados de mais de 300 crimes. É o princípio do fim de um dos maiores processos da história da justiça portuguesa.

Os 30 minutos de Salgado em tribunal

Nos trinta minutos em que esteve na sala de audiências, Ricardo Salgado esteve sempre acompanhado pela mulher, Maria João Salgado

TERESA DIAS COSTA/OBSERVADOR

Terça-feira, 15 de outubro de 2024. 9h30. Ricardo Salgado chega visivelmente debilitado ao Campus de Justiça, acompanhado pela mulher, Maria João Salgado. À sua espera estavam lesados do BES em protesto, críticos da gestão que o ex-banqueiro fez do banco. Um desses lesados dirigiu-se a Salgado — mas, ao contrário do restante grupo, para lhe desejar votos de “muita saúde”.

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Dentro da sala de audiência, aquele que foi o homem forte do Grupo Espírito Santo é o primeiro a fazer a identificação, mas não consegue responder com clareza a todas as 10 perguntas feitas pela juíza Helena Susano.

Os advogados, a mulher e as dificuldades em tribunal

“- A sua profissão, qual era?

– Banqueiro.

– Onde vive?

— Vivo….

– Em Lisboa ou Cascais?

– Cascais?

– E sabe a rua?

– Agora não me lembro.”

 

O estado do ex-banqueiro levou a que a juíza o dispensasse de estar presente no julgamento. Salgado saiu da sala, de mão dada com a mulher, meia hora depois de ter entrado. 

 

Mais tarde, o advogado do antigo banqueiro, Francisco Proença de Carvalho, disse que a justiça portuguesa “humilha a dignidade” dos arguidos por ter exposto Salgado, que está diagnosticado com Alzheimer.

15 arguidos, três empresas e mais de 300 crimes: um mega processo que chega a julgamento 10 anos depois

No primeiro dia, só vão 12. Do total de 15 arguidos envolvidos no caso, Isabel Almeida, Cláudia Faria e António Soares não marcam presença na primeira sessão para fazer a identificação — o momento em que os arguidos dizem o nome, idade, morada e profissão perante o coletivo de juízes.

Machado da Cruz, Manuel Fernando Espírito Santo, João Martins Pereira e Amílcar Morais Pires estiveram presentes no primeiro dia para fazer a identificação perante o coletivo de juízes

As duas arguidas comparecem em tribunal na quarta-feira, o segundo dia de julgamento, apenas para fazer a identificação — saem logo de seguida. Já António Soares só se apresenta na quinta-feira de manhã.

[Já saiu o terceiro episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio e aqui o segundo.]

Nesta fase inicial do julgamento, nenhum dos 15 arguidos presta quaisquer declarações.

Isabel Almeida e António Soares saíram do tribunal depois da identificação e não prestaram quaisquer declarações

Num processo onde serão julgados mais de 300 crimes, estão ainda envolvidas três empresas: a Rioforte, a ESI e a Eurofin, cujos representantes marcam presença logo na primeira sessão. Entre as principais acusações estão os crimes de associação criminosa, burla qualificada, manipulação de mercado, branqueamento de capitais, falsificação de documentos, corrupção passiva no setor privado e corrupção ativa no setor privado.

Ricardo Salgado é o arguido que irá responder pelo maior número de crimes (62).

O cerco de Ricciardi ao primo Salgado

José Maria Ricciardi revelou que as suas desconfianças em relação ao "big boss" do BES não foram bem recebidas. "O dr. Ricardo Salgado começou a tomar-me de ponta."

TERESA DIAS COSTA/OBSERVADOR

É uma quezília entre primos que acabaria por ter profundas implicações num dos maiores bancos do país. No terceiro e quarto dias de julgamento, José Maria Ricciardi — que já no tempo em que ambos eram meros “vogais” do conselho superior do GES questionava a autoridade do primo Ricardo Salgado — , faz mira ao antigo homem forte do grupo.

Em tribunal, Ricciardi diz que a relação com o ex-banqueiro ficou fragilizada quando, numa reunião do conselho superior, perguntou se o conselho servia para discutir estratégias e tomar decisões ou apenas para ouvir o que já tinha sido decidido por aquele que o Ministério Público diz ter sido o “big boss” do BES.

Durante o depoimento, Ricciardi pinta a imagem de um homem controlador e que monopolizava o seu império. “O dr. Salgado fazia tudo o que lhe apetecia e sobrava-lhe tempo. Nós não sabíamos o que acontecia”.

Mas se a relação já era tensa, foi a partir de dezembro de 2013 que tudo piorou: José Maria Ricciardi conta em tribunal que percebeu que as contas do BES tinham sido falsificadas e pediu uma auditoria para apurar responsabilidades. Nada foi feito porque, diz, o primo controlava tudo e tornava impossíveis quaisquer consequências.

Revela então que, só mais tarde, em maio de 2014, teve acesso a um documento que, garante em tribunal, provava que as contas tinham sido falsificadas a mando de Ricardo Salgado. A denúncia fora feita por Machado da Cruz, contabilista do grupo, numa conversa com o advogado. Ricciardi não revela contudo quem era a “fonte anónima” que lhe fez chegar a transcrição dessa conversa

Um documento desaparecido, a simpatia exagerada de Salgado e "que se lixem os lesados"

Em outubro de 2013, José Maria Ricciardi reuniu seis assinaturas de membros do conselho de administração num documento cujo objetivo era levar ao afastamento de Ricardo Salgado do grupo. Mas o desfecho não foi o esperado.

 

Alguém — um dos responsáveis pelas seis assinaturas — contou a Salgado o que estava a acontecer e o documento desapareceu.

 

Numa outra revelação feita na tarde desta sexta-feira, recordou a “simpatia exagerada” do primo, durante um jantar em casa deste em junho de 2014. Na altura, Ricciardi já sabia da falsificação das contas do banco. A simpatia excessiva foi recebida com desconfiança e as intenções de Salgado foram confirmadas quando, numa conversa entre os dois nessa mesma noite, Salgado pediu “solidariedade com a família” — uma conversa em que, garantiu Ricciardi, o primo terá assumido que o pedido de “solidariedade” estava relacionado com a manipulação das contas do Grupo Espírito Santo.

 

 

Outra das revelações de José Maria Ricciardi em tribunal arrasta consigo críticas à atuação do ex-governador do Banco de Portugal. Quando Ricciardi começou a perceber que o império podia estar em risco, Carlos Costa terá tentado travar a saída do primo de Salgado. “O dr. Carlos Costa assobiou para o lado, não quis saber de nada e disse para estar quieto.”

Mais tarde, Ricciardi deixa claro que culpa o ex-governador pela derrocada do BES e que foi o antigo governador quem impediu o pagamento aos lesados. “O Banco de Portugal e o dr. Carlos Costa [governador do BdP na época] disseram: ‘Vamos tomar a conta dos lesados, porque não é uma conta que afete o BES, que se lixem os lesados e vamos deslocar esse dinheiro para os créditos das contas que a gente fez mal no Banco Espírito Santo’.”

O depoimento da testemunha que já morreu

António Ricciardi morreu em 2022. Mas isso não impediu que fosse a primeira testemunha a ser ouvida neste julgamento.

Antes do depoimento absolutamente demolidor de Ricciardi filho, a manhã de 17 de outubro fica marcada pelo depoimento de Ricciardi pai, através da reprodução de um vídeo gravado em 2015.

Salgado decidia e António Ricciardi assinava

Nele, o tio de Ricardo Salgado esclarece que, apesar de à época fazer parte da administração de diversas sociedades do Grupo Espírito Santo — como a Espírito Santo Control (ESC), Espírito Santo International (ESI) e Espírito Santo Financial Group (ESFG) —, o poder estava concentrado nas mãos do seu sobrinho. A António Ricciardi, garantia o próprio em 2015, chegavam documentos para assinar sobre decisões que já estavam tomadas. Ricciardi recebia os documentos e assinava. Sem fazer perguntas.

 

“- A maior parte das vezes ele [José Castella, ex-controller do GES e considerado uma figura muito próxima de Ricardo Salgado] aparecia com documentos para serem assinados.”

Os assuntos eram decididos por quem?

– Eu acho que eram decididos pelo dr. Ricardo Salgado.

– Porquê?

Porque ele era o único de nós que sabia tudo.”

Na gravação, António Ricciardi afasta ainda a ideia de que José Manuel Espírito Santo, ex-administrador do BES, que foi acusado de oito crimes de burla qualificada e um crime de infidelidade e que morreu em fevereiro de 2023, tenha tido alguma responsabilidade no caso, alegando que, “se soubesse, teria feito qualquer coisa”.

Quanto à confiança em Ricardo Salgado — que o filho nunca teve —, António Ricciardi diz que a manteve até 2013. Nessa altura, tudo mudou.

A jogada da defesa para travar depoimento de Salgado

No segundo dia de julgamento, o coletivo de juízes quer ouvir o depoimento que Ricardo Salgado deu ao juiz Carlos Alexandre durante 12 horas, a 24 de julho de 2014.

Mas a defesa do ex-banqueiro tenta impedir a reprodução, por considerar que o arguido não está em condições de fazer o contraditório das declarações dadas há 10 anos.

O requerimento é, contudo, rejeitado pelo tribunal. Na altura da gravação, Salgado tinha sido informado de que as suas declarações estavam sujeitas à apreciação do tribunal, tendo-lhe sido dada a opção de permanecer em silêncio por direito. Os juízes acrescentaram ainda que o contraditório não depende da presença do arguido em tribunal e pode ser feito pela defesa.

O que Salgado disse em 2015

Por isso, e com a autorização dada pelo próprio Ricardo Salgado em 2015, o áudio foi reproduzido na sala de audiência, tendo sido interrompido algum tempo depois por se ouvir apenas ruído e substituído por um vídeo do depoimento de Salgado no Departamento Central de Instrução e Ação Penal, gravado a 20 de julho de 2015. 

 

Neste vídeo, o “general” do universo Espírito Santo afirmou que o GES nunca teve dificuldades em obter capitais e criticou Machado da Cruz, contabilista do grupo e também arguido no processo, por nunca ter dado qualquer sinal de que havia problemas na “solidez das contas do grupo”.

 

Quanto a si próprio, não assumiu qualquer responsabilidade. 

Estava em causa mais do que a reprodução do depoimento de Salgado em tribunal. Desde o primeiro minuto do julgamento, os advogados do ex-homem forte do BES têm insistido no argumento de que o diagnóstico de Alzheimer impede Salgado de exercer o direito ao contraditório. O objetivo é claro: impedir que o ex-banqueiro seja julgado pelas eventuais responsabilidades que teve na manipulação de contas do banco.

Quantas malas se compram com 500 ações do BES?

Aparentemente, nenhuma. Pelo menos, não na Avenida da Liberdade.

A referência à relação da presidente do coletivo de juízes com o Banco Espírito Santo é levantada pela primeira vez por Adriano Squilacce, advogado de Ricardo Salgado, no primeiro dia de julgamento: Helena Susano é, também ela, uma lesada do BES, tendo perdido pouco mais de 500 ações com a queda do banco.

Este possível conflito de interesses levou Susano a pedir escusa do caso antes do julgamento, mas o pedido foi recusado pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Tiago Rodrigues Bastos, advogado de do Cadosch e Creton, que estão em primeiro plano com a intérprete. Caso BES/GES

Num momento de maior tensão entre o advogado Tiago Rodrigues Bastos e o coletivo de juízes, a defesa de três dos arguidos volta a referir que Helena Susano é uma lesada do BES

Na quarta-feira, segundo dia de julgamento, o assunto é novamente mencionado, desta vez por Tiago Rodrigues Bastos, advogado de Alexandre Cadosch, Michel Creton e da Eurofin.

Mas se na primeira sessão   Helena Susano tinha optado por não responder ao advogado de Ricardo Salgado, a Rodrigues Bastos sugeriu “ver quanto é que valem as 500 e tal ações, passar na Avenida da Liberdade e ver se consegue comprar uma mala com isso”.

Em junho de 2014, o valor de cada ação no BES estava fixado nos 12 cêntimos. As cerca de 500 ações de Helena Susano valeriam um total de 67 euros.

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