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Germany Versus England, 1936
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A formação germânica faz a saudação nazi numa partida contra a Inglaterra, em 1936

Corbis via Getty Images

A formação germânica faz a saudação nazi numa partida contra a Inglaterra, em 1936

Corbis via Getty Images

O fascismo também calça chuteiras: como a paixão pelo futebol foi posta ao serviço da propaganda

Em "Fascismo e Futebol", o jornalista Cristóbal Villalobos Salas propõe-se examinar em livro a exploração pelos regimes fascistas das assolapadas paixões suscitadas pelo futebol.

Os líderes fascistas podem não ter, em geral, manifestado aptidão ou interesse pelo futebol, mas tal não os impediu de perceber o fascínio que o futebol enquanto espectáculo de massas exercia sobre a população e de tomar medidas para colocar as paixões futebolísticas ao serviço da propaganda. É desta relação que trata o livro Futebol e fascismo, do jornalista espanhol Cristóbal Villalobos Salas, editado originalmente em 2020 e que chega a Portugal pela mão das Edições 70 e com tradução de Manuela Parada Ramos.

Um festival de auto-golos

O livro começa mal: ao fim de menos de dois minutos de jogo, CVS já marcou três golos na própria baliza. A secção “A contradição de Borges” abre com a frase “Borges odiava futebol”, mas as quatro páginas deste capítulo (o primeiro de quatro que compõem a introdução) não contêm um único facto que sustente tal afirmação – as citações e histórias que CVS convoca revelam antes o alheamento de Borges em relação ao futebol e a sua desconfiança perante as reações irracionais e destemperadas que ele induz nas massas. É certo que, como CSV escreve na pg. 16, “Borges não adorava este desporto”, mas daí a “Borges odiava futebol” (pg. 15) vai uma imensa distância só possível de transpor com uma igualmente imensa desonestidade intelectual.

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Depreende-se da introdução que, para CVS, o facto de Borges não ser um entusiasta do futebol só pode explicar-se por má-vontade ou falta de discernimento, uma vez que invoca, em contraponto, “uma grande variedade de escritores que […] transformaram a bola no centro das suas reflexões. Albert Camus, Pier Paolo Pasolini, George Orwell, Mario Benedetti, Ernesto Sabato, Gabriel García Márquez, Augusto Rosa Bastos [na verdade é “Roa Bastos”], Eduardo Galeano, Javier Marías, Roberto Bolaño ou Peter Handke são apenas alguns nomes que dignificaram intelectualmente a atividade humana que desperta mais sentimentos e emoções nas massas populares”. A argumentação de CVS é infantil: coloca num prato da balança o nome de Borges (como se fosse o único escritor a não nutrir interesse por futebol) e no outro o de onze escritores que escreveram sobre futebol e espera, assim, ter demonstrado que Borges estava errado ao não “dignificar intelectualmente” o futebol.

Partida de “calcio fiorentino”, um jogo precursor do futebol, na Piazza Santa Maria Novella, em Florença, por Jan van der Straet, também conhecido como Stradanus ou Giovanni Stradano (1561-62)

A argumentação de CVS enferma de falta de clareza, ao colocar sob a designação “futebol” fenómenos muito diversos. Uma coisa é o jogo sem si, tal como é jogado na rua ou nos modestos campos das associações recreativas, com intuitos essencialmente lúdicos (ou seja, o futebol enquanto atividade desportiva amadora); outra a sua profissionalização e a sua prática em moldes “empresariais”, com os clubes convertidos em empresas cotadas em bolsa, geridas em função não tanto dos resultados desportivos, mas dos interesses de investidores, empresários e agentes, e em que os jogadores são despromovidos a meros “ativos” (ou seja, o futebol enquanto negócio); outra ainda o seu formidável empolamento e mediatização, convertendo-o num mecanismo de alienação de massas e num gerador de descabeladas exaltações nacionalistas (ou seja, o futebol enquanto espectáculo desportivo).

Não há registo que Borges desaprovasse que os miúdos jogassem futebol, por entretenimento, nas ruas e pátios; as reservas que manifestou dizem respeito à terceira faceta: “O futebol desperta as piores paixões. Desperta sobretudo o que há de pior nestes tempos, o nacionalismo relacionado com o desporto, porque as pessoas julgam que vão assistir a um jogo, mas não é bem assim. […] Existe uma ideia de supremacia, de poder, que me parece terrível”. Ora, CVS não só não nega que o futebol pode assumir esta vertente, como, afinal de contas, é a manipulação pelos regimes fascistas das paixões futebolísticas – sobretudo a sua componente nacionalista – que constitui o tema do seu livro.

Quando se chega ao final deste capítulo introdutório, fica-se sem perceber onde está, afinal a “contradição de Borges” enunciada no título, já que as citações e histórias apresentadas por CVS revelam que o escritor argentino manteve ao longo da vida uma atitude consistente em relação ao futebol e não é o facto de ter escrito, em parceria com Adolfo Bioy Casares (sob o pseudónimo Bustos Domecq), um conto (com o título “Esse est percipi”) que tem o futebol como tema, que significa que Borges se contradisse, tal como escrever um livro sobre o fascismo não significa adesão aos ideais fascistas. Na verdade, o conto de Borges/Casares é precisamente uma denúncia – em registo fantástico – do tremendo poder de alienação do futebol.

Italian Salute

Stadio Nazionale PNF, Roma, 10 de Junho de 1934, final do Campeonato do Mundo de Futebol, opondo Itália e Checoslováquia: no início, o árbitro Ecklind (sueco) e os seus auxiliares fazem saudação nazi

Getty Images

O que tem o futebol de especial?

Na introdução, CVS reproduz citações grandiloquentes, algumas de autores respeitáveis, sobre a “magia” do futebol: “O futebol é o cenário onde se resolvem – em determinadas ocasiões – maquinações obscuras do destino, sobretudo no que diz respeito ao destino nacional […] [É no futebol que os jogadores e fãs] representam o seu próprio drama, supervisionado pelas forças do destino” (Simon Critchley); “O futebol é a teatralização da guerra, a manipulação, nem sempre bem-sucedida de algumas (poucas) paixões universais” (Ramón Lobo); “O futebol é uma região laica” (Manuel Vásquez Montalbán). E o próprio CVS acrescenta, na mesma linha: “O futebol é o cenário onde se revelam as diferenças de identidades /família, tribo, cidade, nação) […], é toda uma experiência pessoal à qual nos rendemos livremente quando assistimos a um jogo”.

Porém, CVS não substancia nenhuma destas proclamações e não explica por que razão coube esse papel (supostamente) transcendente ao futebol e não ao badmington ou ao gamão. Também nada diz sobre como o futebol se tornou tão central na vida mental das massas nem sobre se houve antecedentes históricos de jogos que apaixonaram loucamente o povo e as elites – e houve, nos jogos circenses de Roma e Bizâncio (ver o último capítulo de A febre do futebol parte 1: Hooligans e tagarelas). Por outro lado, CVS omite que nem todo o mundo sucumbiu (ainda) ao fascínio do futebol – nos EUA, o “desporto-rei” é o futebol americano, seguido pelo baseball e pelo basquetebol; na Austrália é o futebol australiano; na Nova Zelândia o rugby; em Cuba, na Venezuela e no Japão o baseball; no Canadá o hóquei no gelo; na Índia e Paquistão o cricket; na Mongólia o wrestling. E em todos estes países há , provavelmente, “pensadores” que atribuem às suas modalidades favoritas as mesmas qualidades transcendentes que CVS e os autores por ele citados atribuem ao futebol – e que, quando examinadas de perto, não passam de tolices enunciadas em tom pedante.

A selecção da Alemanha no Campeonato do Mundo de 1938, em França. A Áustria qualificara-se, mas em março, o país foi anexado e os jogadores incorporados nesta equipa

Seria produtivo examinar as razões que levaram a que o futebol se impusesse nuns países mas não noutros e analisar a sua ascensão desde o momento em que foi criado – quando era um desporto como qualquer outro – até se ter tornado no foco emocional da vida de muitas centenas de milhões de pessoas.

O papel desmesurado que o futebol ocupa hoje no espaço mediático e mental da maior parte do mundo merece reflexão (ver A febre do futebol parte 1: Hooligans e tagarelas e A febre do futebol parte 2: Bairrismo na era global), mas o livro de CVS pouco contribui para escalpelizar e compreender este fenómeno: limita-se a enunciar vários exemplos do conúbio entre futebol e fascismo e a repetir os lugares-comuns e as formulações pseudo-filosóficas típicas do discurso sobre futebol que é corrente nos media e que só contribuem para o obscurecimento e para a mistificação.

O futebol no Portugal de Salazar

Sendo CVS um autor espanhol dirigindo-se a leitores espanhóis, o foco do livro está fortemente enviesado: o futebol na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler é tratado em 40 páginas e o futebol nas ditaduras sul-americanas é tratado em 36, mas só ao futebol na Espanha de Franco são consagradas 74 páginas. Destas 74, há que descontar as duas correspondentes ao capítulo “Futebol, fado e Fátima”, sobre o futebol no Portugal de Salazar. CVS abre o dito capítulo com a frase “António de Oliveira Salazar não gostava de futebol” e afirma que Salazar não utilizou “o desporto como carta de apresentação internacional do seu regime, apesar das vitórias continentais do Benfica ou do grande papel da seleção portuguesa no Mundial de Inglaterra em 1966”, preferindo antes usar o futebol como “agente de desmobilização” – ou seja, mais do que tentar galvanizar os portugueses com os feitos dos futebolistas portugueses, Salazar terá preferido mantê-los entorpecidos e alheados, sob os “poderes narcóticos” do futebol.

CVS menciona também o aproveitamento de Eusébio pelo regime como forma de promover a ideia de Portugal como uma sociedade aberta, tolerante e não-racista, em que um africano podia ascender e ser plenamente integrado. A superficialidade do capítulo sobre o futebol no Portugal do Estado Novo é atestada pelo facto de 2/3 do espaço ser consagrado a Eusébio.

Equipa do Benfica, na temporada 1938/39

Portugal volta a ter destaque no capítulo “Salazar, Franco e três rebeldes”, cujo assunto são dois jogos amigáveis entre as seleções de Portugal e Espanha, a 38 de Novembro de 1937 (em Vigo) e 30 de Janeiro de 1938 (em Lisboa), que, segundo CVS, tiveram por intuito obter o reconhecimento internacional de Franco como legítimo governante de Espanha, no contexto da derrota iminente das forças republicanas. No segundo jogo, CVS destaca o facto de três jogadores que alinhavam pelo Belenenses – Quaresma, Azevedo e Amaro – se terem recusado a fazer a saudação fascista, o que foi, com efeito, uma atitude invulgar, pois, em Portugal, os jogadores costumavam fazer este gesto em encontros oficiais (desde que houvesse altas figuras do Estado ou das Forças Armadas na tribuna).

Equipa do Sporting, algures durante o Estado Novo

O pouco recomendável curriculum da FIFA

Se estes jogos amigáveis destinados a legitimar Franco contaram com o apoio de Salazar, não menos importante foi a cumplicidade da FIFA, que, em novembro de 1937, “depois de negociações árduas, acabou por admitir a Federação franquista como representante legítima do futebol espanhol”, numa altura em que metade de Espanha ainda estava sob controlo do Governo republicano. Note-se que o Reino Unido e a França só reconheceram o regime de Franco a 27 de Fevereiro de 1939; o Governo republicano só partiu para o exílio a 6 de Março; Madrid só caiu a 28 de Março; e os EUA só reconheceram o novo regime a 1 de Abril.

A FIFA, então dirigida pelo francês Jules Rimet, que esteve no cargo entre 1921 e 1954 (o mais longo mandato da história da organização), voltou a tomar partido por Franco no início de 1938, quando proibiu os jogos da seleção basca, que andava em digressão pelo mundo com o fito de promover a causa republicana (o Governo regional basco era fervorosamente republicano) e se encontrava, na altura, na Argentina. Esta intervenção da FIFA resultou, claro, de um pedido da recém-reconhecida federação de futebol franquista; a FIFA viria a arrepender-se da perseguição movida à selecção basca em Outubro de 1938 e levantaria a interdição, mas por essa altura a equipa já fora obrigada a regressar ao México e integrara-se no campeonato mexicano com a designação de Club Deportivo Euzkadi (a maior parte dos jogadores dispersar-se-ia, depois, por vários clubes latino-americanos).

Mas Franco não foi alvo de um favorecimento especial pela parte da FIFA – acontece que esta instituição não parece ter tido pruridos morais em pactuar com ditaduras de direita:

1) Em 1934 concedeu a organização do II Campeonato do Mundo de Futebol à Itália, mesmo sendo previsível – ou melhor, quase certo – que Mussolini iria aproveitar o ensejo para uma mega-operação de propaganda ao seu regime.

Cartaz do II Campeonato do Mundo de Futebol, disputado em Itália em 1934

2) Apesar de cultivar uma fachada apolítica e neutral e interditar manifestações políticas nos relvados, a FIFA permitiu que os jogadores alemães, italianos, espanhóis e portugueses fizessem a saudação fascista em encontros oficiais – esta prática só foi proibida em 1945, quando a queda dos regimes de Hitler e Mussolini a tinham deixado, na prática, circunscrita a Espanha (e Franco, tal como Salazar, temia que os Aliados vitoriosos o pudesse remover do poder).

Antes de a II Guerra Mundial ter estalado, por vezes eram os próprios adversários dos fascistas a alinhar nas suas práticas. Embora CVS não o mencione, vale a pena recordar o episódio ocorrido no Estádio Olímpico de Berlim, a 14 de Maio de 1938, quando de um encontro amigável entre as seleções inglesa e alemã: o embaixador britânico em Berlim deu instruções para que os jogadores ingleses fizessem a saudação nazi no início do jogo, não para mostrar adesão aos ideais fascistas, claro, mas como deferência para com os anfitriões. Esta desastrosa operação de diplomacia ludopédica explica-se por o primeiro ministro Neville Chamberlain entender que a melhor forma de lidar com o tempestuoso e imprevisível Hitler era apaziguá-lo de todas as formas possíveis; Hitler, que anunciara a sua presença no estádio, acabou por não assistir ao jogo, mas deve ter rejubilado com o gesto de submissão da Grã-Bretanha e deve ter-se sentido encorajado a prosseguir com a estratégia de “bullying” na política externa.

Soccer - International Friendly - Germany v England - Olympic Stadium - Berlin - 1938

Estádio Olímpico de Berlim, a 14 de Maio de 1938: em nome de um suposto desanuviamento das relações diplomáticas anglo-germânicas, a selecção inglesa (à esquerda) faz uma embaraçosa figura

PA Images via Getty Images

3) No final de 1973, a URSS recusou-se a disputar a 2.ª mão da qualificação para o Mundial de 1974 no Estadio Nacional de Chile, em Santiago, alegando que este estádio tinha vindo a ser utilizado pelo regime do general Augusto Pinochet, desde o golpe de Estado de 11 de Setembro de 1973, como local de detenção, tortura e execução de milhares de opositores. Pinochet não atendeu o pedido soviético para que o jogo fosse disputado noutro local – fazia questão de “vencer futebolisticamente ao comunismo no mesmo sítio onde o fazia através da violência” (CVS) – e a FIFA deu cobertura à sua posição. Assim,  selecção da URSS ficou em casa e no dia 21 de Novembro (duas semanas após ter terminado o uso do estádio como campo de concentração), perante 15.000 espectadores, a selecção chilena entrou em campo, marcou um golo na baliza vazia (cumprindo as determinações da FIFA) e foi apurada para o Mundial.

4) A FIFA atribuiu a organização do XI Campeonato do Mundo de Futebol – 1978 – à Argentina, embora esta fosse governada desde 1976 por uma brutal junta militar cuja figura mais proeminente era o general Jorge Rafael Videla. Vários jogos – incluindo a final – foram disputados no Monumental de Buenos Aires, a quilómetro e meio da Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA), que, a partir do golpe de 1976, foi usada como centro clandestino de detenção, tortura e execução de opositores. Por esta altura, a FIFA era dirigida pelo brasileiro João Havelange, que deu o seu beneplácito à operação de branqueamento da junta militar, que pretendia, com o Mundial de 1978, apagar a imagem de repressão e violência associada ao país desde o golpe de 1976.

O Estadio Monumental de Buenos Aires, durante a cerimónia inaugural do Campeonato do Mundo de Futebol, em 1978

5) Havelange voltou a dar a mão a uma ditadura militar sul-americana – neste caso a do Uruguai – quando, a pretexto da comemoração, em 1980, do cinquentenário do I Campeonato do Mundo de Futebol, no Uruguai, deu cobertura à organização, naquele país, de um torneio que recebeu o nome de Mundialito (formalmente: “Copa de Oro de Campeones Mondiales)”, disputado pelas selecções que já tinham vencido o torneio. Apresentaram-se as selecções de Itália, Alemanha (RFA), Brasil, Argentina e Uruguai, mais a Holanda no lugar da Inglaterra (que declinou participar devido a incompatibilidades de agenda), e a prova decorreu entre Dezembro de 1980 e Janeiro de 1981.

Na verdade, o propósito da ditadura militar que governava o Uruguai desde um golpe de estado em 1973 era festejar o previsível resultado de um plebiscito a uma revisão constitucional que reforçaria o seu poder e que seria realizado a 30 de Novembro de 1980. As sondagens eram unânimes em atribuir uma confortável vitória dos militares, mas os eleitores acabaram por tirar-lhes o tapete e a vitória do Uruguai na final acabou por ser, para o regime, um tiro pela culatra, pois o povo uruguaio aproveitou o pretexto da comemoração do triunfo futebolístico para uma manifestação catártica de rejeição da ditadura militar.

Rodolfo Rodríguez, guarda-redes da selecção uruguaia, ergue o troféu do Mundialito de 1980

Com estes antecedentes, não é de estranhar que em 2010 a FIFA, então dirigida pelo suíço Joseph (“Sepp”) Blatter, tenha escolhido como organizador do Campeonato Mundial de 2022 esse modelo de amplas liberdades, profundo respeito pelos direitos humanos e ancestrais tradições futebolísticas que é o Qatar.

Vale a pena recordar que João Havelange (presidente em 1974-1998) terá recebido ao longo do seu mandato c.25-35 milhões de euros em subornos (repartidos com o seu genro, Ricardo Teixeira, membro do Comité Executivo da FIFA). Quanto a Sepp Blatter (presidente em 1998-2015) foi acusado em 2015 pela Procuradoria de Justiça suíça de gestão danosa e apropriação de fundos, sendo destituído da presidência pelo Comité de Ética da FIFA, que também o impediu de exercer cargos ou desenvolver atividade na área do futebol. Em 2021, uma nova investigação do mesmo comité, envolvendo o pagamento de subornos a Blatter, resultou na dilatação do período de interdição e na aplicação de uma multa; há também indícios de que a outorga da organização dos Campeonatos do Mundo de 2022 e de 1998 (que decorreu nesse outro modelo de democracia e liberdade que é a Rússia de Putin) poderá também ter sido obtida mediante subornos pagos a Blatter e a membros do Comité Executivo da FIFA.

[A propaganda ao Mundial de 2022 realça o arrojo estético, as tecnologias de ponta e as preocupações de sustentabilidade que presidem à sua construção dos estádios – neste vídeo, o foco está no Al Janoub, em Al-Wakrah – mas nada diz sobre as condições desumanas em que trabalham os operários (migrantes, sobretudo nepaleses) que estão a construí-los e que já terão causado, até à data, cerca de 6500 mortes]

Futebol e capitalismo

Neste livro, CVS aplica-se na enumeração de factos, mas pouco ou nada faz para os analisar – fica assim por responder uma questão crucial: o uso que os regimes fascistas fizeram do futebol foi essencialmente diverso daquele que foi praticado por outros regimes?

As ditaduras de esquerda parecem não ter produzido talento futebolístico comparável ao da Itália de Mussolini, ao da Espanha de Franco ou ao das ditaduras sul-americanas, pelo que a sua manipulação do futebol em prol da exaltação do regime e do país poderá não ser tão óbvia. A URSS e a República Democrática Alemã canalizaram os esforços de propaganda-através-do-desporto para outras modalidades, mas não deixaram de tentar obter dividendos do futebol e de tentar vincular as vitórias no relvado à legitimação e exaltação do regime, por via da excitação nacionalista.

Porém, é ingénuo pensar que só as ditaduras, de esquerda ou de direita, usam ou usaram o futebol com o intuito de manter as massas alienadas e proclamar as virtudes do regime e da Nação. Também as democracias liberais tiveram – e continuam a ter – no futebol um inestimável aliado na “domesticação” do povo. Mesmo no mais democrático dos regimes, os governantes têm todo o interesse em que as massas dispensem muito mais atenção às contratações de jogadores pelos seus clubes favoritos do que às moscambilhas e acordos de bastidores necessários à aprovação do Orçamento de Estado; que estejam ocupadas a discutir a nomeação do árbitro para um “derby” do que a nomeação de um ex-ministro ou secretário de Estado para a direção da entidade reguladora da área que tutelara enquanto governante; que revelem muito mais ardor e perseverança na discussão das “incidências do jogo” (foi penalty, não foi penalty, foi fora de jogo, não foi fora de jogo) do que a pedir contas ao Governo pelas promessas eleitorais por cumprir. Portanto, os políticos das democracias liberais tratam de “colar-se” o mais possível ao futebol – integrando as “comissões de honra” de candidatos a dirigentes desportivos e aclamando as vitórias dos clubes e seleções nacionais como se de vitórias do Governo ou da Nação se tratassem – e de acicatar a histeria futebolística das massas. Alguns deles circulam sem pudor entre cargos na política, no Governo e nas autarquias e na direção de clubes, outros aplicam a musculação retórica adquirida no debate político ao “comentário desportivo” (embora também haja quem faça o percurso inverso). Mesmo que tudo decorra de forma não-ilegal e não-violenta, serão os propósitos e comportamentos dos políticos democratas de hoje em relação ao futebol assim tão diferentes dos dos ditadores fascistas?

Na verdade, graças a uma cobertura televisiva de extensão e intensidade nunca vistas, às redes (ditas) sociais, à multiplicação de canais televisivos especializados em “desporto” (alguns deles operados pelos próprios clubes) e à proliferação de entrevistas, “antecipações de jogos” e programas de “comentário & análise futebolística”, nunca o futebol exerceu um domínio tão omnipresente e opressivo sobre a sociedade como no mundo democrático e liberal do século XXI.

Por outro lado, os fluxos financeiros necessários para sustentar este desmedido e luxuoso circo, com “gladiadores” e “treinadores de gladiadores” pagos a peso de ouro, cresceram a tal ponto que os clubes de futebol deixaram de estar nas mãos dos adeptos e dos sócios e passaram para o controlo de milionários americanos, oligocratas russos, príncipes sauditas e fundos de investimento anónimos.

Nasser Al-Kheilafi, presidente do Paris Saint-Germain e administrador da Qatar Sports Investments, proprietária do dito clube, na apresentação, no estádio Parc des Princes, em Agosto de 2017, do brasileiro Neymar. A transferência de Neymar do Barcelona para o PSG custou 222 milhões de euros e foi a mais cara da história do futebol

Na sombra, fazendo rodar esta cada vez mais complexa e inextricável engrenagem, estão os agentes desportivos, que, mercê da astronómica valorização dos seus “representados” e da rede tentacular de contactos e interesses que administram com astúcia e discrição, se tornaram nas eminências pardas do mundo futebolístico. Com a ajuda de um emaranhado esquema de participações em formato “boneca russa” e de um labirinto de empresas e holdings, convenientemente domiciliadas em paraísos fiscais, os clubes, as SADs, os dirigentes desportivos, os agentes e os próprios jogadores criaram um mundo opaco, em que mesmo as mais sagazes autoridades tributárias têm dificuldade em determinar quem é dono de quê e que impostos deve – se é que deve alguns (ver O que esta epidemia revelou sobre a esplendorosa indústria do futebol).

Pode dizer-se, portanto, que não foi sob Hitler, Mussolini, Franco ou Videla que o futebol mais se desviou dos “ideais desportivos”, mas sob o capitalismo infrene, hi-tech, apátrida e completamente destituído de escrúpulos do século XXI.

O fascismo no futebol é coisa do passado?

Ao contrário de Hitler, Franco e Salazar, que eram completamente avessos ao exercício físico, Mussolini era um desportista nato – pelo menos foi esse o mito que a máquina de propaganda italiana tentou criar, não perdendo uma oportunidade para mostrar o Duce a praticar equitação, esgrima, natação e ski, embora o corpo em forma de barrica que exibe nas fotos sugira que a prática de exercício físico estava sobretudo confinada às “photo ops”.

Como seria de esperar de uma criatura narcisista e egocêntrica, Benito Mussolini nunca manifestou interesse pela prática de desportos de equipa, mas, tendo percebido o poder que o futebol exercia sobre as massas, usou de manipulação, pressão, aliciamento e intriga junto das instâncias futebolísticas (italiana e internacional) de forma a extrair dividendos para o regime, indo bem mais longe neste domínio do que os restantes ditadores fascistas.

Tal como aconteceu com Hitler, Mussolini apenas terá assistido a um jogo de futebol durante a sua vida, mas o Duce envolveu-se mais intimamente com o futebol do que o Führer e até se fez sócio do Lazio, o clube da capital romana que reunia as preferências dos fascistas e das elites (embora o seu rival figadal, o AS Roma, tivesse sido uma criação do regime fascista).

Benito Mussolini swims in Rom. Photograph. November 2nd 1934. (Photo by Imagno/Getty Images) Benito Mussolini beim Schwimmen. Photographie. 2.11.1934.

Benito Mussolini exibe os seus dotes atléticos, 1934

Getty Images

Como o mundo dá voltas inesperadas, em 2021 há um Benito Mussolini a jogar pela Lazio: é um adolescente cujo nome completo é Romano Benito Floriani Mussolini (n.2003) e é bisneto de Benito e filho de Alessandra Mussolini, uma das figuras de proa do neo-fascismo italiano, que já passou pelos partidos Movimento Sociale Italiano, Alleanza Nazionale, Azione Sociale (que fundou e dirigiu) e Il Popolo della Libertà e hoje milita na Forza Italia de Silvio Berlusconi.

Romano nunca fez intervenções ou pronunciamentos políticos públicos e fez questão de esclarecer que está no Lazio pelo seu mérito enquanto futebolista, mas a sua presença no clube não deixará de ser ensombrada pelo nome que carrega, pela estridente carreira política da mãe e por o Lazio continuar a ser o favorito dos fascistas romanos e ter ganho sinistra fama graças aos seus adeptos “ultras”, que se concentram na “Curva Nord” do Estádio Olímpico de Roma (partilhado entre a AS Roma e o Lazio) e têm o hábito de entoar cânticos racistas, fazer saudações fascistas, exibir símbolos nazis e slogans anti-semitas e comparar os seus adversários a judeus dignos de serem exterminados (num encontro que opôs o Lazio à AS Roma, os “ultras” do Lazio desfraldaram uma tarja com 50 metros de comprimento onde se lia “Auschwitz é a vossa terra e as vossas casas são os fornos [crematórios]”).

O Lazio é apenas um exemplo da inquietante proliferação de neo-nazis e neo-fascistas entre as claques de futebol (ver Gestos humanos: De onde vêm, para que servem e como foram retratados ao longo da história), mas sobre isto CVS nada tem para dizer: para ele o fascismo no futebol está limitado a regimes tirânicos do passado e o espectáculo futebolístico do presente é encarado com o espírito acrítico e sumamente benevolente típico dos aficionados de futebol. É esta mentalidade que permite que alguns dirigentes de clubes enriqueçam desmedidamente e conduzam negócios duvidosos e promíscuos durante anos a fio, à vista de todos, sem que a “massa associativa” seja aguilhoada pela suspeita ou vacile na sua fidelidade (“pode ser um mafioso, mas faz com que o clube ganhe troféus!”) e que, igualmente à vista de todos, organizações fascistas de cariz paramilitar tomem conta das bancadas (“o que seria do futebol sem a animação dada pelas claques?”). Mesmo os aficionados do futebol que se apercebem da ascensão da extrema-direita nas claques e acham esta inquietante, não são assaltados pela questão óbvia: por que razão não há claques de “ultras” entre os aficionados de basquetebol, do polo aquático, do bobsleigh ou da petanca?

O futebol tem o dom de suspender todos os questionamentos e ao futebol tudo se perdoa e tudo se permite, sobretudo se se tratar do “nosso” clube – um conceito esvaziado de sentido numa época em que a fidelidade de jogadores e treinadores é efémera e vai para quem mais paga e em que os clubes são propriedade do grande capital apátrida.

Cedo em Futebol e fascismo se percebe que não há a esperar do autor lucidez, isenção ou coragem para apontar os podres do futebol, já que, logo no final da primeira parte da introdução, descreve um golo de Maradona como “pura criação literária”. Se alguém escrevesse que os contos de Borges eram puros remates de trivela seria – justamente – rotulado de tolo, mas os futebolólogo veem poesia, arte e significados cósmicos nas tropelias e altercações de 22 marmanjos disputando uma bola sobre um retângulo relvado, e a elite intelectual do nosso tempo acena aprovadoramente.

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