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Litografia de c.1881, com alguns dos jogadores mais notáveis que participaram na FA Cup (Taça de Inglaterra), cuja primeira temporada foi disputada em 1871/72, o que faz dela a mais antiga competição futebolística
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Litografia de c.1881, com alguns dos jogadores mais notáveis que participaram na FA Cup (Taça de Inglaterra), cuja primeira temporada foi disputada em 1871/72, o que faz dela a mais antiga competição futebolística

Litografia de c.1881, com alguns dos jogadores mais notáveis que participaram na FA Cup (Taça de Inglaterra), cuja primeira temporada foi disputada em 1871/72, o que faz dela a mais antiga competição futebolística

O que esta epidemia revelou sobre a esplendorosa indústria do futebol

Os salários milionários de jogadores, treinadores e dirigentes. As receitas dos grandes clubes. Retrato e história de uma indústria agora entre layoffs e apoios. Ensaio de José Carlos Fernandes.

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A pandemia de Covid-19 veio abalar muitas certezas e muitas rotinas, hierarquias, liberdades, direitos e prazeres que dávamos como garantidos. Uma das primeiras grandes alterações foi a suspensão das competições desportivas, pela razão óbvia de estas constituírem o sonho de qualquer agente infeccioso transmissível por via respiratória e por contacto físico, uma vez que promovem a aglomeração periódica de multidões de adeptos das mais variadas origens geográficas. E, claro, a modalidade cuja paragem mais repercussão teve na percepção dos cidadãos foi o futebol – excepto nos EUA ou na Índia, onde outros desportos são mais populares.

O sector do futebol ainda tentou manter a actividade com jogos à porta fechada, mas acabou por resignar-se com a suspensão completa. Passadas algumas semanas, começaram a multiplicar-se as notícias sobre clubes em dificuldades financeiras, não só nos que vegetam nos escalões mais baixos como nos que disputam as ligas de topo. São notícias que podem parecer inesperadas, já que a modalidade parecia viver tempos de pujança sem precedentes, a julgar pelas somas cada vez mais astronómicas que faz girar e pelo espaço desmedido que conquistou nos mass media de todo o planeta. Haverá algo de frágil ou até de putrefacto sob todo este aparente vigor?

Um artigo assinado por Fernando Gomes, presidente da Federação Portuguesa de Futebol, publicado esta segunda-feira, 4 de maio, em vários jornais portugueses (ver Presidente da FPF considera que o futuro não está garantido), dá a entender que sim: “Vivemos o tempo do impensável […] O futuro do futebol, lamento dizê-lo, não está garantido. O futebol, durante muitos anos parecia o centro da vida de muitas pessoas, mas […] já todos percebemos que não é”.

Um jogo entre as selecções da Escócia e de Inglaterra, em 1875

Os nababos dos relvados

É certo que a suspensão das competições privou os clubes das receitas de bilheteira e dos direitos de transmissão televisiva, mas não deixa ser insólita esta aflição quando, na Europa, a soma de receitas dos clubes no 1.º escalão das competições, passou de 11.351 milhões de euros em 2008 para 20.112 milhões em 2017, um crescimento de 77% em nove anos (uma média de quase mil milhões por ano) que nem a crise das dívidas soberanas europeias de 2010-12 conseguiu travar – um desempenho que que dificilmente encontrará rival em qualquer outro sector da economia tradicional.

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É certo que a suspensão das competições privou os clubes das receitas de bilheteira e dos direitos de transmissão televisiva, mas não deixa ser insólita esta aflição quando, na Europa, a soma de receitas dos clubes no 1.º escalão das competições, passou de 11.351 milhões de euros em 2008 para 20.112 milhões em 2017, um crescimento de 77% em nove anos (uma média de quase mil milhões por ano).

As receitas têm distribuição muito desigual, estando fortemente concentradas nos clubes de topo de cada liga nacional, cujo top 10 europeu se organiza assim (dados da temporada 2018/19, em milhões de euros):

FC Barcelona: 840.8

Real Madrid: 575.3

Manchester United: 711.5

Bayern de Munique: 660.1

Paris Saint-Germain: 653.9

Manchester City: 610.6

Liverpool: 604.7

Tottenham: 521.1

Chelsea: 513.1

Juventus: 459.7

O Camp Nou, a “casa” do Barcelona desde 1957, tem capacidade para 99.354 espectadores e é o maior estádio da Europa e o 3.º maior do mundo

Os clubes com maiores receitas são, naturalmente, os que têm nas suas fileiras jogadores com salários mais elevados, como pode ver-se pela lista dos 10 jogadores mais bem pagos do mundo em 2019 (valores em milhões de euros/ano e incluindo prémios de jogo; o valor entre parêntesis resulta da soma salários + direitos de imagem):

Lionel Messi (Barcelona): 85 (117)

Neymar Jr. (Paris Saint-Germain): 69 (97)

Cristiano Ronaldo (Juventus): 60 (100)

Paul Pogba (Manchester United): 27 (30)

Andrés Iniesta (Barcelona): 27 (30)

Alexis Sánchez (Manchester United): 26 (29)

Kylian Mbappé (Paris Saint-Germain): 25 (28)

Oscar (Shanghai SIPG): 25 (27)

Mesut Özil (Arsenal): 22 (28)

Antoine Griezmann (Barcelona): 21 (25)

Quando se utiliza como critério os salários médios dos jogadores na temporada 2019/20, o top 5 dos clubes europeus organiza-se assim:

Barcelona: 11.30 milhões de euros/ano

Real Madrid: 10.26

Juventus: 9.30

Paris Saint-Germain: 8.22

Manchester City: 8.03

Bayern de Munique: 7.48

É claro que dentro da 1.ª liga de cada campeonato existem assimetrias, pelo que é relevante confrontar os salários acima com os dos clubes que pagam menos bem em cada uma das ligas de topo europeias (Inglaterra, Espanha, Itália, Alemanha e França):

Sheffield United (Premier League): 837.000 euros/ano

Osasuna (La Liga): 417.000

Brescia (Serie A): 534.000

Paderborn (Bundesliga): 385.000

Nîmes (Ligue 1): 275.000

O Stade des Costières, a “casa” do Nîmes Olympique, tem capacidade para 18.500 espectadores

Se é instrutivo perceber quanto ganha em média um jogador de cada uma das cinco ligas de topo, é também útil remover a distorção causada na média pela presença na equipa de um ou dois jogadores com salários muito mais elevados do que os dos seus colegas (como Messi, Cristiano Ronaldo e Neymar). Para tal recorre-se ao conceito de mediana, ou seja, o valor médio que separa as metades maiores e menores de uma amostra, que dá uma ideia mais aproximada do salário “típico” dos jogadores de cada liga. E é também útil ter uma ideia da massa salarial total dos jogadores de cada liga (valores expressos em milhões de euros/ano):

Premier League: 2.69; 1810

La Liga: 0.95; 1152

Serie A: 1.19; 1122

Bundesliga: 1.03; 898

Ligue 1: 0.52; 634

Na I Liga portuguesa, o salário médio é menos de metade do da Ligue 1: 360.000 euros/ano (30.000 euros/mês).

A primeira equipa do Benfica, em 1904

O resto da corte

Mas não são os jogadores os únicos a ter salários milionários – há também os treinadores, cujo top 10 na temporada 2019/20 é o seguinte (em milhões de euros/ano; o valor entre parêntesis resulta da soma salários + direitos de imagem):

Diego Simeone (Atlético de Madrid): 40.0 (40.5)

Antonio Conte (Inter Milan): 20.2 + 9.8 por rescisão do contrato

Pep Guardiola (Manchester City): 22.0 (27.0)

Zinedine Zidane (Real Madrid): 21.0 (22.0)

Jürgen Klopp (Liverpool): 16.5 (24.0)

Ernesto Valverde (sem clube): 17.0 por rescisão do contrato

José Mourinho (Tottenham): 16.5 (23.0)

Fabio Canavarro (Guangzhou Evergrande): 12.0 (14.0)

Massimiliano Allegri (sem clube): 13.5 por rescisão do contrato

Rafael Benitez (Dalian Yifang): 13.0

Liverpool FC v Atletico Madrid - UEFA Champions League Round of 16: Second Leg

O treinador argentino Diego Simeone festeja o 2.º golo do Atlético de Madrid num jogo da Champion’s League com o Liverpool, em Liverpool, a 11 de Março de 2020

Note-se que dois destes treinadores com salários milionários não exercem actividade: foram despedidos dos clubes que treinavam – Valverde do Barcelona, Allegri da Juventus – por os resultados da equipa terem sido entendidos como decepcionantes, mas os contratos que assinaram asseguram a continuação da remuneração. Conte acumula o seu salário no Inter com o pagamento resultante de ter sido despedido pelo Chelsea.

E é claro que aos salários dos treinadores têm de ser somados os da sua “equipa técnica”, que pode incluir um ou dois treinadores-adjuntos, um treinador de guarda-redes, preparadores físicos e “instrutores de fitness”, um treinador técnico, um treinador individual, um treinador de formação e (o futebol moderno já não passa sem as novas tecnologias) um videoanalista. Os clubes têm ainda um departamento médico, com médicos, fisioterapeutas e massagistas, um departamento de scouting (o do Manchester City, por exemplo, tem 13 elementos) e um ou mais técnicos de equipamentos (a versão século XXI do humilde “roupeiro” de antanho). Enfim, não é o esplendor de Versailles no tempo de Luís XIV, até porque o traje mais frequente é o fato de treino e não há perucas empoadas, mas o séquito dá para encher um autocarro ou dois.

Outro sorvedouro de dinheiro são os dirigentes desportivos, mas os seus vencimentos são costumam ser tão amplamente publicitados como os dos jogadores e treinadores. A Premier League é menos opaca neste domínio, pelo que se sabe que o mais bem pago na temporada de 2019 foi Ed Woodward, do Manchester United, que recebeu 3.6 milhões de euros (do total de 7.8 milhões com que o clube remunerou os seus administradores), apesar do desempenho sofrível da equipa nessa temporada – o seu vencimento foi de 4.8 milhões em 2017/18, quando o clube terminou o campeonato em 2.º lugar. Em 2.º lugar na Premier League surge Daniel Levy, do Tottenham, com 3.4 milhões de euros.

Poderia esperar-se que as remunerações dos administradores em cada ano reflectissem os resultados desportivos obtidos pelo clube, mas é bom lembrar que aos accionistas e aos proprietários dos clubes, que são quem decide a remuneração dos administradores, interessam sobretudo os resultados financeiros (ainda que possa existir alguma relação entre resultados desportivos e resultados financeiros). Muitos administradores são homens de negócios com interesses em múltiplas áreas, dentro e fora do futebol, e alguns têm acumulado formidáveis pecúlios: por exemplo, Florentino Pérez, presidente do Real Madrid, tem uma fortuna avaliada em 2.300 milhões de euros; já a fortuna de Josep Maria Bartolomeu, presidente do arqui-rival Barcelona, fica-se por uns “modestos” 100 milhões.

Um cartaz no estádio Santiago Bernabéu, a “casa” do Real Madrid, expressa o agradecimento dos adeptos ao presidente do clube, Florentino Pérez, Agosto de 2009

Atendendo à generosidade das remunerações de jogadores, equipa técnica e, em menor medida, dos administradores, não é de estranhar que elas representem, por larga margem, a principal despesa dos clubes: nos últimos anos a fracção das receitas dos clubes das primeiras ligas europeias gasta com salários tem oscilado entre 61 e 65%. Nas cinco ligas de topo os rácios entre salários e receitas foram os seguintes (dados de 2017):

Premier League: 56%

La Liga: 58%

Serie A: 66%

Bundesliga: 53%

Ligue 1: 68%

Porém, há ligas em que os salários absorvem uma parte tão substancial das receitas dos clubes que a sobrevivência destes só é possível com recurso sistemático ao endividamento:

Grécia: 97%

Ucrânia: 98%

Sérvia: 107%

Croácia: 116%

Neste parâmetro, Portugal está um pouco acima da média, com um rácio de 68%.

No tempo em que o futebol era apenas um desporto

À força de sermos bombardeados diariamente nos media com os valores astronómicos das remunerações e prémios dos jogadores, das cláusulas de rescisão dos contratos, das verbas envolvidas nas transferências e das comissões pagas aos agentes, assumimos que tudo isto é “normal” e que é só “o mercado a funcionar”. Para nos subtrairmos a este desvario e recuperar o sentido das proporções, é instrutivo regressar aos primórdios do “Association Football”.

Em 1893, o Derby County, um dos 12 clubes fundadores da English Football League, em 1888, propôs que esta liga estabelecesse um salário máximo de 4 libras por semana, que representam hoje, fazendo o ajustamento à inflação, cerca de 520 libras (c.600 euros), um valor inferior ao que ganha presentemente o trabalhador médio britânico – 585 libras por semana, ou seja c.670 euros – e uma quantia irrisória face ao vencimento médio dos jogadores do Manchester United (os mais bem pagos da Premier League), que é de 145.000 euros por semana, ou de Paul Pogba, o jogador mais bem pago da Premier League, que é de 520.000 euros por semana.

Em 1893, o Derby County, um dos 12 clubes fundadores da English Football League, em 1888, propôs que esta liga estabelecesse um salário máximo de 4 libras por semana, que representam hoje, fazendo o ajustamento à inflação, cerca de 520 libras (c.600 euros), um valor inferior ao que ganha presentemente o trabalhador médio britânico – 585 libras por semana, ou seja c.670 euros – e uma quantia irrisória face ao vencimento médio dos jogadores do Manchester United (os mais bem pagos da Premier League), que é de 145.000 euros por semana, ou de Paul Pogba, o jogador mais bem pago da Premier League, que é de 520.000 euros por semana.

A equipa do Preston North End FC foi a vencedora da edição inaugural da Football League (hoje designada como Premier League), que decorreu em 1888/89. O clube venceria também nesse ano a FA Cup (Taça de Inglaterra) e repetiria a vitória na Football League na temporada seguinte

Na verdade, o limite de 4 libras proposto pelo Derby County, que representava 4 vezes o salário médio semanal de um trabalhador não especializado e 2 a 1.6 vezes o de um trabalhador especializado, não incomodou a maioria dos jogadores, que ganhavam bem menos do que isso e nem sequer eram jogadores a tempo inteiro, tendo outra profissão que lhes assegurava o sustento. De qualquer modo, um pequeno número de jogadores de elite aspirava a receber mais – quiçá até 10 libras por semana –, pelo que o sindicato dos jogadores (AFU: Association Footballers’ Union), constituído em 1898, conseguiu impedir que fosse imposto um tecto máximo aos salários. E foi assim que o Liverpool, após sagrar-se campeão da temporada 1900/01, anunciou que iria pagar aos seus jogadores umas exorbitantes 7 libras por semana (867 libras de hoje), que, com os prémios de jogo, poderiam ascender às 10 libras (1238 libras de hoje).

A equipa do Liverpool que venceu a Football League de 1900/01

Porém, nesse mesmo ano a Football League conseguiu impor um salário máximo de 4 libras e a abolição dos prémios de jogo, para evitar que surgissem grandes assimetrias entre clubes. A AFU, vendo-se desfeiteada no seu principal propósito, acabou por dissolver-se e só em 1907 surgiria nova tentativa de os jogadores fazerem valer os seus direitos, com a criação da Association of Football Players’ and Trainers’ Union. Porém, apesar de uma ameaça de greve em 1907, os jogadores não conseguiram levantar a imposição de um tecto máximo. Este foi sendo, aproximadamente, ajustado à inflação, e o seu valor real até decresceu ligeiramente, sendo de 9 libras (515 libras de hoje) em 1922, ano em que, aproveitando a elevada taxa de desemprego na Inglaterra do pós-guerra, os clubes conseguiram ainda impor um corte de uma libra no tecto máximo.

Em 1957 o tecto estava nas 20 libras, o que, em valores ajustados à inflação, representava 486 libras, ou seja, menos 100 libras do que o valor ajustado das 4 libras de 1893. Nesse ano, Jimmy Hill, que jogava no Fulham e assumira a direcção da Association of Football Players’ and Trainers’ Union no ano anterior e mudara a sua designação para Professional Footballers’ Association (PFA), nome que ainda hoje mantém, iniciou uma campanha para que o tecto máximo fosse abolido, o que acabou por ser obtido em 1961, após uma ameaça de greve dos jogadores.

Jimmy Hill (1928-2015), no tempo em que jogava no Fulham

Nesse mesmo ano, Johnny Haynes, colega de Hill no Fulham e visto ainda hoje como o mais notável jogador da história deste clube, colheu os frutos desta luta: viu o seu ordenado quintuplicar para 100 libras por semana (2.240 libras de hoje, c. 2600 euros), tornando-se no primeiro jogador da liga inglesa a atingir este valor. Alguns clubes tentaram manter em vigor o conceito de tecto salarial – o Manchester United, por exemplo, impôs durante algum tempo um máximo de 50 libras/semana – mas não tardaram a ver-se ultrapassados pelos acontecimentos. Começara uma nova era, a que talvez não seja estranho o facto de em 1960/61 ter tido lugar a primeira tentativa de transmissão televisiva directa regular de jogos da Premier League, pela parte da ITV.

Charlton And Haynes

Chestnut, Hertfordshire, Outubro de 1961: Johnny Haynes (ao centro) e Bobby Charlton (à esquerda) nos treinos da selecção inglesa para o embate com a selecção de Portugal, numa jornada de qualificação para o Campeonato do Mundo

O futebol como “bode expiatório”

A 7 de Abril, os dirigentes das duas ligas mais opulentas do futebol mundial – Richard Masters, director executivo da Premier League, e Javier Tebas, presidente de La Liga – anunciaram que só a não conclusão da temporada de 2019/20 representaria uma perda de pelo menos um milhão de euros para cada uma das ligas, perdas que poderiam ser bem maiores “se a pandemia se agravasse e prolongasse” (Masters).

Por esta altura, já alguns clubes da Premier League tinham recorrido ao mecanismo de layoff: entre eles estavam o Bournemouth, o Newcastle e o Tottenham.

Jogo no primeiro “estádio” do Tottenham, em Northumberland Park, a 28 de Janeiro de 1899, entre a equipa da casa e o Newton Heath (futuro Manchester United). O aluguer do espaço de Northumberland Park custava ao clube 17 libras por ano (2200 libras a preços de hoje)

O mecanismo de layoff em vigor na Grã-Bretanha consiste no pagamento pelo Estado de 80% do salário dos trabalhadores até um tecto máximo de 2500 libras (2875 euros), pelo que os clubes não solicitaram a medida para os jogadores e equipa técnica, mas para os funcionários “subalternos” com tarefas “não-desportivas” (manutenção, lojas, tarefas administrativas, etc.). Cada clube da Premier League tem centenas deles (no Manchester City rondam os mil) e os seus vencimentos não costumam andar muito acima do salário mínimo.

Pela mesma altura em que estes pedidos de layoff foram solicitados, os jogadores de futebol ingleses recusaram aceitar uma redução nos salários, e, naturalmente, a conjugação destas atitudes fez levantarem-se vozes acusatórias – nomeadamente entre governantes e políticos – contra o mundo do futebol profissional (fazendo recuar o Liverpool, que retirou o pedido de layoff que apresentara).

O actual estádio do Tottenham, a 9 de Abril de 2019, momentos antes do início do desafio entre o clube da casa e o Manchester City, nos quartos de final da Champion’s League. O estádio, com capacidade para 62.303 espectadores, custou 1150 milhões de euros

O Secretário da Cultura, Oliver Dowden, sugeriu que o mecanismo de layoff não abrangeria clubes de futebol e Julian Knight, secretário do comité do Parlamento britânico para assuntos digitais, culturais, de media e desportos (DCMS: Digital, Culture, Media and Sport), que fora o destinatário da carta de Richard Masters, não só foi da mesma opinião como classificou a Premier League como “risível”.

Masters alegou, em defesa destes clubes, que “o esquema de layoff anunciado pelo Governo é dirigido a toda a economia, incluindo as muitas empresas que providenciam entretenimento e empregam talentos de elite […] Temos de lidar com as perdas que se anunciam ou então os clubes e outras empresas que dependem do futebol para as suas receitas irão falir”.

No Sunday Times, Wayne Rooney, antiga estrela do Manchester United e da selecção inglesa, queixou-se de que “subitamente, toda a classe profissional ficou sob pressão, com a exigência de um corte de 30% nos vencimentos. Qual a razão de os futebolistas se terem tornado, subitamente, no bode expiatório?”. Vale a pena notar que Rooney, que tem 35 anos e já está longe do seu apogeu, joga actualmente numa equipa do 2.º escalão das ligas inglesas, o que não o impede de auferir 3 milhões de euros por ano, um valor apreciável neste escalão, onde o salário médio ronda os 450.000-500.000 euros/ano. O que é irónico é que a presente equipa de Rooney é o mesmo Derby County que fez, em 1893, a proposta de limitação de salários a 4 libras/semana.

Derby County v Manchester United - FA Cup Fifth Round

Wayne Rooney a 5 de Março de 2020, num jogo da FA Cup (Taça de Inglaterra) opondo o seu clube actual, o Derby County, ao seu antigo clube, o Manchester United

Gordon Taylor, que lidera a Professional Footballers’ Association (PFA) desde 1981, chamou a atenção para o facto de o corte de 30% nos salários dos seus associados durante 12 meses representaria um total de 500 milhões de libras (575 milhões de euros) e isso faria com que entrassem menos 200 milhões de libras (230 milhões de euros) em impostos nos cofres do Estado britânico – um argumento que pode ser usado para defender que o salário mínimo nacional passe para 2.000 euros por mês ou para que a generosa reforma de Jardim Gonçalves não seja cortada, uma vez que tal também beneficiaria a receita fiscal.

A antiga estrela do ludopédio Gary Lineker tentou deitar água na fervura, fazendo notar que os jogadores são muito jovens e que precisariam de tempo e alguma orientação para tomarem as atitudes eticamente correctas – todavia, não lhes tem faltado aconselhamento sábio e atempado quando se trata de gerir as suas carreiras, assinar contratos milionários com clubes e patrocinadores e colocar os seus rendimentos a salvo do fisco através de complexos esquemas envolvendo transferências financeiras entre empresas e holdings domiciliadas em paraísos fiscais.

Gary Lineker

Gary Lineker (à direita), num jogo, na Cidade do México, entre as selecções de Inglaterra e do Paraguai, no Campeonato do Mundo de 1986, competição em que Lineker foi o melhor marcador

Contrastando com a relutância inicial em baixar salários na liga inglesa – que é aquela onde eles são mais elevados – um pouco por toda a Europa os clubes têm chegado a acordo com os jogadores. O Bayern de Munique acordou numa redução de 20% e outros clubes da Bundesliga fizeram cortes similares. O Barcelona e o Atlético de Madrid acordaram em reduções de 70%, o Real Madrid em reduções de 10-20%, embora o central alemão do Real, Toni Kroos, que aufere 12 milhões de euros por ano, tivesse manifestado desagrado com a ideia: “Aceitar um corte salarial é um donativo ao clube”.

A Juventus anunciou uma redução de um total de 90 milhões de euros nos salários dos jogadores entre Março e Junho, e, dias depois, todos os clubes e jogadores da Serie A acordaram num corte de 15% (no caso de a presente temporada ser concluída) ou de 30% (se a temporada for dada como encerrada). Além das reduções de salários anunciadas, alguns dos clubes mais abastados da Bundesliga – Bayern de Munique, Bayer Leverkusen, Borussia de Dortmund, RB Leipzig – criaram um fundo de 28 milhões de euros para auxiliar as equipas em dificuldades na Bundesliga e no 2.º escalão do futebol alemão.

A Allianz Arena é, desde a temporada 2005/06, a “casa” do Bayern de Munique, clube cujo valor está estimado actualmente em 2780 milhões de euros

O Lyon e o Marselha aderiram ao layoff não só para os funcionários não-desportivos como para os jogadores, sendo de realçar que estes clubes estão em 3.º e 4.º lugar no ranking de remuneração média dos jogadores da liga francesa, com 1.85 e 1.22 milhões de euros/ano, respectivamente (temporada 2019/20).

O Standard de Liège, que é o 2.º empregador mais “generoso” do 1.º escalão do futebol belga, depois do Anderlecht, pagando uma média de 519.000 euros/ano, também colocou jogadores em layoff. Vale a pena notar que a massa salarial dos jogadores do 1-º escalão do futebol belga (Pro League), que ascende hoje a 300 milhões de euros, duplicou nos últimos oito anos e cresceu 50 milhões de euros só nos últimos dois anos, enquanto as receitas cresceram apenas 35 milhões, pelo que a proporção dos salários nas receitas atingiu os 76%. Em resultado deste crescimento descontrolado dos salários, o lucro de 40 milhões de euros registado em 2017 pelo conjunto das equipas dos 2 primeiros escalões do futebol belga deu lugar em 2019 em perdas de 87 milhões de euros.

O Standard de Liège tem sido um dos principais protagonistas nesta escalada de salários: em 2015, a remuneração média era de 366.000 euros, muito abaixo dos 600.000 euros pagos pelo Anderlecht, mas enquanto o valor pago pelo Anderlecht caiu ligeiramente, para 546.000 euros, o Standard trepou até ao nível do rival em apenas cinco anos.

O Standard de Liège tem sido um dos principais protagonistas nesta escalada de salários: em 2015, a remuneração média era de 366.000 euros, muito abaixo dos 600.000 euros pagos pelo Anderlecht, mas enquanto o valor pago pelo Anderlecht caiu ligeiramente, para 546.000 euros, o Standard trepou até ao nível do rival em apenas cinco anos. Para mais, a 1 de Abril, a liga belga decidiu concluir definitivamente o campeonato e atribuir o título ao 1.º classificado quando da suspensão dos jogos, o Club Brugge, o que significa que o layoff do Standard de Liège fará com que o contribuinte belga subsidie longos meses de ociosidade de jogadores milionários.

O Stade Maurice-Dufrasne, a “casa” do Standard de Liège

Em Portugal, o governo considerou que os clubes de futebol eram um sector da economia como qualquer outro e que portanto poderiam também recorrer ao layoff simplificado, que permite que os trabalhadores recebam 2/3 do salário, entre um mínimo de 635 e um máximo de 1.905 euros por mês, cabendo ao empregador o pagamento de 30% e ao Estado 70%, o que significa que, no caso do valor máximo, o layoff representa para o Estado um encargo de 1333 euros por mês e por trabalhador. Em Portugal, à data da escrita deste artigo, tinham aderido ao layoff dois clubes do 1.º escalão, Belenenses SAD e o Sporting (ver Sporting coloca funcionários do clube em layoff por 30 dias) aderiu ao mecanismo, tal como vários clubes do 2.º escalão.

Os falsos amadores

O Público de 09.04.20 dava conta da intenção da Federação Portuguesa de Futebol em “pagar os salários de todos os jogadores nacionais nas competições amadoras referentes aos meses de Abril e Maio, no limite de um salário mínimo”. Neste caso, o dinheiro dos contribuintes não está (directamente) em causa, mas a ideia de pagar salários a amadores é desconcertante, pois o que distingue os amadores dos profissionais é, por definição, que os primeiros praticam a sua actividade por paixão, não por dinheiro.

A 13 de Abril, a selecção portuguesa de futebol justificou a sua iniciativa de doar metade do prémio (no valor de 4.7 milhões de euros) correspondente à qualificação para o Campeonato da Europa de 2020, ao fundo de apoio às competições não-profissionais, por entender que os jogadores destas, devido ao “não-profissionalismo, sentem um impacto ainda maior nas suas vidas”. Ora esperar-se-ia que os não-profissionais do futebol (ou de qualquer desporto), ganhassem a vida como técnicos oficiais de contas, dentistas, padres, arquitectos, estucadores, instrutores de cross fit, pasteleiros, vendedores de automóveis ou tipógrafos, e, portanto, não sentissem qualquer impacto financeiro com a suspensão das competições desportivas. E, com efeito, não consta que tenham sido criados fundos para apoiar os amadores que se dedicam a outras modalidades desportivas, ao aeromodelismo, à renda de bilros ou ao acordeão (que também tem as suas competições) e ninguém manifestou preocupação com a subsistência em tempos de pandemia e confinamento dos aguarelistas de fim-de-semana e dos poetas não-publicados.

Acontece que boa parte daquilo que hoje se designa em “sportilíngua” por “futebol amador” é antes “futebol profissional muito mal pago”. Na verdade, é, por vezes, algo bem pior: os pequenos clubes locais, onde jogava, por recreação, a rapaziada da terra, deram lugar a SADs que apenas conservam do original a designação, o estádio e as instalações, mas que são, na prática, plataformas de tráfico de seres humanos entre os bairros pobres da América do Sul e África e os relvados esmeradamente tratados dos grandes estádios da Europa.

Egipto, 2017

Estes clubes são uma das mais acabadas concretizações do capitalismo global desprovido de rosto, pátria ou escrúpulos. Nada têm a ver com o local onde se instalam, nada absorvem dele e nada deixam nele: o capital é estrangeiro e anónimo e a “força de trabalho” são miúdos das academias de futebol e pequenos clubes dos países sem horizontes, aliciados pela possibilidade de virem a ser o próximo Sadio Mané (um senegalês a quem o Liverpool paga 172.500 euros por semana) ou o próximo Pierre-Emerick Aubameyang (um gabonês a quem o Arsenal paga 228.000 euros por semana).

Arsenal FC v Tottenham Hotspur - Premier League

Pierre-Emerick Aubameyang

O que encontram estes miúdos quando aterram em Portugal está longe de ser um sonho dourado: são acomodados da forma mais sumária possível e recebem um vencimento que por vezes nem chega ao salário mínimo e nem sempre é pago a horas. As SADs estão nas mãos de investidores internacionais (que raramente deixam os seus escritórios em Londres ou Guangzhou para visitar a terreola portuguesa onde adquiriram um clube) e mudam de mãos com frequência, mais ao sabor das circunstâncias, oportunidades e especulações do mundo financeiro do que dos resultados desportivos. Feitas as contas, estes últimos são secundários, já que estes clubes são pouco mais do que uma montra para exibir a mercadoria dos agentes desportivos perante o voraz mercado europeu de talento ludopédico: um lote de jovens atléticos, com boa dentição e vontade de trabalhar e dispostos a serem tratados como mercadoria.

Por parcas que sejam as remunerações e sumárias as condições, manter um clube a disputar, digamos, o 3.º escalão do futebol português custará ao administrador da SAD uma ou duas centenas de milhares de euros por ano, mas basta que um elemento do “plantel” seja alvo do interesse de um grande clube, para que o lucro com ele obtido mais do que compense os gastos do ano. Muitas vezes, a aposta não dá em nada e a SAD acaba por ser declarada insolvente, deixando atrás de si um rasto de dívidas a fornecedores, salários por pagar, dívidas ao fisco e à Segurança Social e os sonhos desfeitos dos miúdos que acreditaram ter talento para um dia pisar o relvado da Allianz Arena, do Camp Nou ou de Old Trafford. Não tardará muito até que surja na terreola outro “investidor” que tomará conta do nome do clube e do estádio e restantes instalações, negociará condições vantajosas com o autarca, acenando-lhe com um projecto megalómano que levará o nome da terreola à órbita da Liga de Honra (e, quiçá, até da Primeira Liga) e tudo recomeçará – nos subúrbios de Abidjan e São Paulo haverá sempre milhares de miúdos ansiosos por escapar à pobreza e à violência.

Por parcas que sejam as remunerações e sumárias as condições, manter um clube a disputar, digamos, o 3.º escalão do futebol português custará ao administrador da SAD uma ou duas centenas de milhares de euros por ano, mas basta que um elemento do “plantel” seja alvo do interesse de um grande clube, para que o lucro com ele obtido mais do que compense os gastos do ano.

Se a situação destes clubes já tendia a ser periclitante em situação “normal”, a suspensão dos campeonatos ditada pela pandemia veio piorar tudo e deixar muitos jogadores “amadores” sul-americanos e africanos à beira do desespero, sem dinheiro, longe das famílias, impedidos temporariamente de sair de um país cuja língua e usos mal conhecem, enquanto dirigentes de clubes, directores desportivos, agentes e administradores da SAD se eclipsam ou jogam ao passa-culpas. O que é mais extraordinário é que há quem reivindique apoios para manter este tenebroso “modelo de negócio”, invocando a necessidade de “manter empregos”. É claro que os elementos mais desamparados – os jogadores e, em particular, os estrangeiros – devem ser socorridos, mas não deverão as entidades que tutelam o sector desportivo fazer algo para pôr cobro ou impor limites a esta actividade malsã e parasitária que nada acrescenta à economia nem à sociedade portuguesa?

O vácuo moral

Na reacção à decisão de alguns clubes da Premier League de recorrer ao mecanismo de layoff, o já citado Julian Knight, secretário do comité para assuntos digitais, culturais, de media e desportos, declarou: “Isto mostra o comportamento financeiro lunático do futebol inglês e o vácuo moral que está no seu centro”.

Infelizmente, o futebol inglês não é o único a gastar desvairadamente: um pouco por todo o mundo, o espectáculo futebolístico gera mais receitas a cada ano que passa, mas torna-se mais insustentável a cada ano que passa, pois a competição entre os clubes fomentou uma irresponsável escalada de salários e mordomias. Como pode um sector de actividade que despende centenas de vezes mais recursos para produzir essencialmente o mesmo “produto” (jogos de futebol) que produzia há 60 ou 70 anos invocar o mesmo tipo de auxílio que os outros sectores? Se a gestão dos clubes de futebol assumiu, nas últimas décadas, um rumo insensato e ruinoso, deverá a sociedade ir em socorro de quem insiste em “viver acima das suas possibilidades”? E antes de se apelar a apoios estatais, não deveriam ser chamados a intervir os seus proprietários?

Se a gestão dos clubes de futebol assumiu, nas últimas décadas, um rumo insensato e ruinoso, deverá a sociedade ir em socorro de quem insiste em “viver acima das suas possibilidades”? E antes de se apelar a apoios estatais, não deveriam ser chamados a intervir os seus proprietários?

Acontece que estes são frequentemente gente bastante abastada. Nem todas as ligas possuem uma plutocracia tão florescente quanto a Premier League, em que 12 dos 20 clubes são propriedade de bilionários (ver A febre do futebol parte 2: Bairrismo na era global), cuja fortuna somada ascende a 90.800 milhões de euros, segundo estima a Forbes, mas não faltam bilionários noutras ligas:

François Pinault (Artémis, Gucci, Yves Saint Laurent, Balenciaga, etc., fortuna estimada em 30.900 milhões de euros) no Stade Rennais (Ligue 1);

Dietrich Mateschitz (Red Bull, fortuna estimada em 17.800 milhões de euros) no RB Leipzig (Bundesliga),

A família Agnelli (Fiat, fortuna estimada em 12.400 milhões de euros) na Juventus (Serie A);

Nasser Al-Khelaifi (Qatar Investment Authority, fortuna estimada em 7400 milhões de euros) no Paris Saint-Germain (Ligue 1);

Zhang Jindong (Suning.com, fortuna estimada em 7000 milhões de euros) no Inter Milan (Serie A)…

Não haverá nestes bolsos dinheiro para acudir às necessidades mais prementes dos seus clubes enquanto os campeonatos estão suspensos?

François Pinault, além de ser proprietário do clube Stade Rennais e da Kering, um grupo empresarial que inclui algumas das mais famosas marcas de luxo do mundo, é dono de uma colecção de arte com 5000 obras, cujo valor está estimado em 1200 milhões de euros

Mesmo quando os proprietários não são tão abonados, uma vez que, com os jogos parados, a despesa dos clubes se resume, essencialmente, aos opíparos salários de jogadores e equipa técnica, não poderão estas proprietários aceitar, para lá de redução de salários, a sua cativação durante o período de suspensão das competições? Não terá o jogador que aufere o salário “típico” da Premier League (51.000 euros por semana) um pé-de-meia para se “desenrascar” durante três ou quatro meses, de forma a que o seu clube possa canalizar o dinheiro disponível para pagar os funcionários “não-desportivos”?

Como pode pedir-se ao cidadão comum que acorra em auxílio de uma casta de ultra-privilegiados?

Jogo de futebol em Kingston-upon-Thames, 24 de Fevereiro de 1876, por autor anónimo

Tome-se o caso do Newcastle, o primeiro clube inglês a recorrer ao layoff na presente crise: o seu proprietário é o um bilionário Mike Ashley, que é dono da cadeia de lojas de departamentos House of Fraser (meia centena no Reino Unido) e possui uma fortuna avaliada em 2270 milhões de euros. O Newcastle United F.C. (é este o nome oficial do clube) teve uma carreira gloriosa no início do século XX, mas no século XXI tem tido desempenho irregular: a um regresso à boa forma, com 4.º lugar na Premier League em 2001/02 e um 3.º lugar em 2002/03, seguiram-se muitos anos pela metade inferior da tabela e até duas temporadas passadas no 2.º escalão; quando da interrupção dos jogos em Março, estava no 13.º lugar da Premier League.

Isto não significa que não seja uma empresa apetecível: basta ver que Mike Ashley a adquiriu em 2007 por 153 milhões de euros e está agora a ultimar negociações para a vender por 400 milhões a um consórcio formado pelos irmãos Reuben, a segunda família mais rica do Reino Unido, com fortuna estimada em 19.000 milhões de euros, e pelo Fundo de Investimento Público saudita (PIF na sigla inglesa), cujos activos estão estimados em 294.000 milhões de euros. E são entidades desta natureza que transferem para o contribuinte o pagamento dos salários dos seus funcionários mal surge uma crise.

Estádio de St. James Park, a “casa” do Newcastle

A pandemia de que não se fala

Tal como no vácuo físico não é possível a propagação do som, também no vácuo moral que tomou conta do espectáculo futebolístico parece não haver condições para que se propague a justa indignação perante o crescendo de desmandos, injustiças, venalidade e soberba em que o meio é fértil.

Há quem tenha visto na pandemia de Covid-19 uma oportunidade para repensar a organização da sociedade e da relação entre trabalho e capital e criar um mundo menos desigual e mais solidário; outros sugeriram que a pandemia era um sintoma de quão doentia se tinha tornado a relação do homem com a natureza e que era altura de rever os nossos padrões de produção e consumo e criar uma civilização menos sôfrega e mais sustentável. Todavia, perante o ultraje que é ver clubes milionários e perdulários a aderir ao layoff, não se ouvem vozes, nem à esquerda nem à direita, a sugerir que o Grande Circo Ludopédico se tornou numa aberração e que é tempo de o reformar.

Acontece que décadas antes do SARS-CoV-2 ter conseguido transpor a barreira inter-específica e infectar humanos, já estes estavam maciçamente contaminados com o vírus da futebolite, uma doença que “enlouquece as massas, não poupa as elites e converte pessoas ordinariamente sensatas em energúmenos. Esta pandemia, que tem vindo a tornar-se cada vez mais virulenta e omnipresente, atinge um pico no início do Verão, a cada dois anos” (ver A febre do futebol parte 1: Hooligans e tagarelas, publicado por ocasião do Campeonato do Mundo de 2018). Uma vez chegado ao cérebro, o vírus da futebolite entra nos neurónios e força a maquinaria celular destes a reproduzir o seu material genético, suprimindo o espaço para qualquer outro tema de conversação ou meditação e cancelando qualquer sentido crítico em relação ao fenómeno futebolístico.

Veneza, 1960, foto de Paolo Monti

Nos media podem surgir regularmente notícias sobre corrupção generalizada, das mais altas instâncias da FIFA aos campeonatos distritais; sobre os sofisticados ardis empregues por jogadores, treinadores e agentes milionários para fugir ao cumprimento das suas obrigações fiscais; sobre os malabarismos dos dirigentes desportivos nas bolsas de valores e sobre os seus interesses nem sempre claros no ramo imobiliário; sobre a emergência dos agentes desportivos como eminências pardas do futebol, moldando a escolha dos jogadores para as selecções nacionais em função da sua “carteira de jogadores” e adquirindo participações em SADs; sobre a utilização de clubes como fachada para lavagem de dinheiro por “investidores internacionais”; sobre jogos manipulados pela cada vez mais poderosa indústria das apostas. Mas o vírus da futebolite impede que o seu hospedeiro se dê conta de tudo isto ou que pondere as suas implicações ou que incorpore esta informação na sua mundividência e toda a informação neste domínio é apagada da memória a cada nova jornada do campeonato nacional ou da Champions League. Os adeptos de futebol que recordam com impressionante detalhe jogos disputados há 10 ou 20 anos, são amnésicos em relação a tudo o que sugira que a modalidade que os apaixona possa estar minada pela corrupção ou seja gerida de forma moralmente censurável.

É provável que nem sequer a divulgação dos terabytes de informação comprometedora sobre o Footbal Leaks que estarão, supostamente, armazenados nos dez discos externos encriptados por Rui Pinto, sejam capazes de mudar a atitude permissiva e benevolente da opinião pública perante o Grande Circo Ludopédico.

Um dos aspectos mais fascinantes deste fenómeno de suspensão do julgamento no que diz  futebol é que é transversal a todo o espectro ideológico e até as vozes que na esquerda acusam as “grandes empresas” que “arrecadam milhões à custa da exploração dos trabalhadores” de recorrer ao layoff sem dele realmente necessitarem e apenas para compensar quebras temporárias nas receitas, não para manter postos de trabalho, nada têm a dizer quando as “grandes empresas” são clubes de futebol.

Jorge Mendes, presidente da Gestifute, que representa alguns dos jogadores e treinadores mais bem pagos, é uma das figuras apontadas pela Football Leaks como estando implicada em múltiplos casos de evasão fiscal: Na foto, Mendes recebe o prémio de melhor agente do ano, em 2013

Os governos, pelo seu lado, nada fazem para combater o vírus da futebolite, pois o entorpecimento intelectual que este produz é indispensável para manter as massas dóceis. Enquanto estas descarregam as suas frustrações nos árbitros, nos jogadores e treinadores das equipas adversárias – ou das suas próprias equipas, caso estas não tenham o desempenho esperado – folgam as costas dos políticos; enquanto as claques convergem para os estádios em “caixas de segurança” vigiadas pela polícia não estão a manifestar-se em frente do parlamento ou da residência oficial do primeiro-ministro; enquanto os adeptos gastam boa parte do seu tempo a ver jogos e a infinidade de programas sobre futebol que enxameiam a programação televisiva não escrutinam a governação do país; enquanto as massas discutem apaixonadamente as contratações milionárias de jogadores, não discutem as adjudicações pelo Estado de contratos de utilidade e legalidade duvidosa a empresas obscuras. Aliás, existe uma “porta giratória” entre cargos governamentais e autárquicos e as direcções e assembleias de clubes desportivos e SADS e as instâncias que tutelam o mundo do futebol, num vai-vem que é muito menos vigiado do que aquele que decorre entre o Estado e o mundo empresarial.

Como se não bastasse esta promiscuidade entre política e futebol, assistimos ainda à ascensão de um novo tipo de protagonista político, que ganhou popularidade e traquejo em retórica histriónica e verborreia inane nesses “fight clubs” para oligofrénicos que são os programas televisivos de “comentário desportivo”.

Adeptos do West Bromwich Albion invadem o campo após o término de um jogo decisivo na derradeira jornada da temporada 2004/05, cujo resultado salvou o clube da descida para o escalão inferior

A classe política até poderá nutrir, secretamente, inveja ou rancor pela classe futebolística, por ver que o povo considera que os governantes e os deputados são principescamente remunerados (o vencimento do primeiro-ministro ronda os 7600 euros, o de um deputado 3600 euros) e que o seu número deveria ser o mais reduzido possível (não há populista que não proponha a redução de lugares no Parlamento nem se abespinhe com o número de secretários de Estado), enquanto acha perfeitamente natural que um jogador sofrível de um clube do fundo da tabela ganhe quantias muitas vezes superiores, mesmo que o treinador recorra a ele apenas durante uma ou duas centenas de minutos durante toda uma temporada. Mas a classe política também sabe que sem a dose regular de futebol a sociedade pode tornar-se difícil de controlar: antes gastar dinheiro com os polícias que controlam as “caixas de segurança” das claques, do que ter de chamar o corpo de intervenção para proteger o parlamento da ira popular.

Talvez não seja um acaso que, no meio da suspensão generalizada dos campeonatos de futebol por todo o planeta, estes tenham sido mantidos, contra a vontade de muitos jogadores e as recomendações das autoridades de saúde, em países que nada têm de democráticos.

Talvez não seja um acaso que, no meio da suspensão generalizada dos campeonatos de futebol por todo o planeta, estes tenham sido mantidos, contra a vontade de muitos jogadores e as recomendações das autoridades de saúde, em países que nada têm de democráticos:

A Bielorrússia, governada desde 1994 por Aleksandr Lukashenko;

O Tadjiquistão, governado desde 1994 por Emomali Rahmon;

A Nicarágua, governada desde 2007 por Daniel Ortega (que já estivera no poder em 1979-1990);

O Burundi, governado desde 1994 por Pierre Nkurunziza, que também gosta de exibir-se como jogador de futebol na equipa que ele próprio comprou e gere, o Haleluya FC.

Burundian President Pierre Nkurunziza co

Pierre Nkurunziza em campo, num jogo realizado numa academia de futebol em Abidjan, Costa do Marfim, 2007

Pensar no impensável

O artigo de Fernando Gomes mencionado no início deste texto é uma reflexão invulgar, sobretudo por provir de alguém “de dentro dos sistema”. Apesar de a pandemia e suas consequências não ter (pelo menos em Portugal) levado ao questionamento no espaço público do “modelo de negócio” do futebol e do papel deste na sociedade, o presidente da FPF dá um passo em frente e (implicitamente) admite em público que o futebol não tem vindo a ser gerido de forma sensata, responsável e sustentável.

Isto é particularmente notório quando exige que a modalidade assente em “provas desportivamente rentáveis, socialmente relevantes e economicamente viáveis” e em “escolher bem directores desportivos, treinadores e jogadores. Ultrapassada esta conjuntura extraordinária, teremos de evitar as trocas constantes de recursos humanos ao primeiro sinal de que as coisas não correm conforme o planeado”. E também quando se pergunta “será que o futebol português, com a dimensão que o país tem, é capaz de garantir aos jogadores cerca de 2000 empregos de qualidade? Não podemos permitir que se vendam ilusões a jovens. Temos o dever de os proteger, criar mecanismos que lhes permitam tomar as melhores decisões e tornar óbvia a diferença entre profissional e amador”.

E também quando se pergunta “será que o futebol português, com a dimensão que o país tem, é capaz de garantir aos jogadores cerca de 2000 empregos de qualidade? Não podemos permitir que se vendam ilusões a jovens. Temos o dever de os proteger, criar mecanismos que lhes permitam tomar as melhores decisões e tornar óbvia a diferença entre profissional e amador”.

Porém, é duvidoso que esta disrupção temporária no funcionamento do mundo do futebol faça alterar mundividências, hábitos e procedimentos profundamente arreigados nos clubes, na FPF, na UEFA e na FIFA. Os momentos de crise aguda ou de desastre iminente levam por vezes as pessoas a ter vislumbres de lucidez e rebates de consciência, a admitirem pecados ou falhas “inconfessáveis” e a anunciarem que, se se salvarem, daí em diante passarão a ter um comportamento exemplar, mas assim que a “conjuntura extraordinária é ultrapassada”, tudo regressa ao “business as usual”: os “recursos humanos” (deliciosa expressão) continuarão a ser vistos como fungíveis e descartáveis e o futebol continuará a ser gerido em função do superior interesse de accionistas de SADs, proprietários de clubes, patrocinadores, agentes desportivos e apostadores.

Uma das preocupações expressas por Fernando Gomes é seguramente infundada: o futebol pode representar apenas “0.25% do PIB português, de acordo com um estudo recente”, mas continuará a ocupar mais de 25% do espaço mental do português médio. Assim que o “esférico” voltar a rolar, o futebol voltará a ser “o centro da vida” para muitas pessoas, em Portugal e no resto do mundo.

A young Feyenoord fan

Um jovem adepto do Feyenoord, durante a final do taça UEFA de 2002, que opôs o clube de Roterdão ao Borussia de Dortmund

Se a ciência descobrir uma vacina eficaz e susceptível de ser produzida em massa, o SARS-CoV-2 poderá ser colocado sob controlo ou até erradicado dentro de um ano e meio ou dois anos, mas a futebolite continuará a infectar o planeta e as suas vítimas continuarão a não ter consciência de quão enfermas estão. Fernando Gomes pode dormir descansado: o futuro do futebol está garantido.

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