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O pedido de ajuda surgiu na madrugada desta sexta-feira: “Socorro, estão a invadir as nossas casas com catanas”. Eram quase duas da manhã em Moçambique quando o blogger Beleza em Pessoa fez um direto no Youtube, “uma live de emergência”, a denunciar, nervoso, com as palavras a falharem-lhe por vezes, o que se passava nos bairros, na periferia de Maputo. “Estamos todos a correr perigo de morte. Há certos homens armados com armas brancas que estão a entrar de casa em casa, batendo portas para poderem aniquilar pessoas”, avisava.
O conhecido blogger, que mora perto da cadeia de onde fugiram 1.534 reclusos na quarta-feira, conta que algumas dessas pessoas foram “neutralizadas” por patrulhas que se organizaram nos bairros, de que ele próprio fez parte, alertando: “Isto está fora de controle, não temos proteção, não temos polícia”, continua.
Matola and Maputo city did not sleep last night.
I suspect Frelimo created a distraction by (facilitating more than 1500 inmates to escape) from maximum security prison in Maputo, after elections results were announced by Constitutional Council. Is this not a coincidence?
It…
— Cídia Chissungo (@Cidiachissungo) December 27, 2024
“Ninguém tem como dormir aqui no bairro, todo o que é masculino tem de sair fora, só mulheres e crianças ficam”, apela, dizendo que “se for para dormir é para dormir de dia”. Beleza em Pessoa deixa depois vários conselhos: “Se for para circular só de dia, até às 17h e em bando, de noite não durmam, unam-se e patrulhem, irmãos, temos de fazer de tudo para sobreviver. Protejam-se a si e às vossas famílias”.
“Dizem que há grupos à civil que foram armados com catanas, dizem que são reclusos. Não sabemos se são reais, só há audios, mas o certo é esses sons estão a espalhar o terror, o pânico instalou-se só com o ‘ouvi dizer “, denunciou ao início da manhã desta sexta-feira a ativista Quitéria Guirengane ao Observador. A população organizou-se para se defender e “estará a neutralizar essas pessoas, mas isto pode ser usado para linchar e queimar inocentes: a polícia está a usar o pânico para ela mesma se esconder em civis para linchar inocentes. A polícia viu que precisa de se camuflar “.
Ouça aqui o novo episódio de “A História do Dia” sobre a crise moçambicana
Quitéria Guirengane relata que duas pessoas foram baleadas na noite desta quinta-feira no bairro Patrice Lumumba, que há vários moçambicanos “assassinados em Nampula, e o registo de pessoas perseguidas dentro de casa para serem silenciadas”. Refere ainda um caso da madrugada desta sexta-feira, na Matola, em que “dois indivíduos, alegadamente com catanas, a fugir de um grupo de moradores entraram num hospital e lançaram a confusão”.
Wilker Dias, líder da Plataforma Eleitoral Decide, dá um outro exemplo do que pode acontecer: choque entre quem patrulha e a própria polícia. “Houve um caso em que dois jovens que estavam a guardar uma loja foram regadas com tiros pela polícia”.
Mas já ao meio dia (hora de Lisboa) desta sexta-feira, Venâncio Mondlane, o candidato presidencial que tem convocado as manifestações, veio dizer que os avisos sobre “homens catana” não passam de “manipulação”. Que é a mesma voz nas mensagens que falam de “homens catana” em vários bairros, e que é uma estratégia da Frelimo para lançar o medo e aterrorizar as pessoas. “Onde estão esses homens? Ninguém viu esses homens”, perguntou e respondeu. Assegura que “são informações falsas divulgadas pelo partido Frelimo”.
[Já saiu o segundo episódio de “A Caça ao Estripador de Lisboa”, o novo Podcast Plus do Observador que conta a conturbada investigação ao assassino em série que há 30 anos aterrorizou o país e desafiou a PJ. Uma história de pistas falsas, escutas surpreendentes e armadilhas perigosas. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio.]
Também o investigador e professor universitário Cristiano Matsinhe, que mora na Matola, deu conta, num post no Facebook a que chamou ironicamente de “Noite das Catanas”, da sua experiência de patrulha.
“Passei o dia de reunião em reunião, nos grupos de bairro e de comunidade alargada, SOS Bairro isto, Resposta de Emergência Bairro aquilo, Chefe de duas casas aqui, chefe de 10 casas ali. ‘POS’ ou contribuições para o ‘combustível do carro da polícia’, ‘com direito à BTR’, até porque os ‘generais’ que moram nas cercanias ‘já estão a tratar de tudo’ e coisas assim. Torrei minha quota de internet a processar ‘falsos alarmes’, gravações de choradeiras meigas de meninas e senhoras em representação dos Bairros A, B, C ou D e todas a aludirem aos tais temíveis ‘homens catana’. (…) A meio do alarde, testemunhei que 3 jovens foram encontrados com catanas na rotunda da minha esquina (tenho vídeo) e levados pela nossa milícia de circunstância para um posto policial indeterminado. Familiares reportam que 2 homens foram encontrados noutro Bairro contíguo com catanas. Volta e meia, vizinhos ativam o grupo criado numa dessas reuniões, para atender a uma presença de homens catanas nas redondezas. Eventualmente, fui o primeiro a sair e, como não havia homem catana nenhum, apressei-me a desmobilizar quem estivesse a levantar da cama”.
Umas horas antes do alerta de Beleza em Pessoa, a meio da noite desta quinta-feira, chegava a notícia da morte do delegado do Podemos (Partido Optimista para o Desenvolvimento de Moçambique), que apoia o candidato Venâncio Mondlane, em Mocuba. “Xadreque Miguel foi baleado dentro da sua residência”, revelou Wilker Dias. “O político já vinha sendo perseguido por ter organizado a marcha na semana de 21 de Outubro, em protesto aos resultados”, relata o ativista. Venâncio Mondlane concretizou na sua “live“, esta sexta-feira, que foi morto com “dois tiros na barriga e um na cabeça”.
Mikrus foi morto “à queima-roupa”
No dia de Natal, sentado no chão, Mikrus explicava que não fugiu da B.O., cadeia nos arredores de Maputo. A câmara para que ele falava, alegadamente de um dos polícias, deixava ver ao lado vários reclusos deitados de barriga para baixo. Tinham sido capturados pelas forças de segurança. Mas Mikrus, moçambicano detido em 2021 por um delito comum e a meio da pena, podia sair em liberdade no próximo mês. “Não tinha razões para fugir” (como ele, aliás, explicava no vídeo que circulou nas redes sociais), diz ao Observador Wilker Dias.
“Era brigadista, tinha um regime especial, limpava a área onde os familiares deixavam comida para os presos, podia sair e passear nas imediações e voltar à cadeia às 19 horas”. Foi nessa zona que foi detido e, apesar de pedir que vissem o seu telemóvel, que em momento algum tinha procurado fugir, acabou por ser morto, e “pelas imagens parece que à queima-roupa”, continua Wilker Dias.
Um outro vídeo mostra reclusos deitados no chão obrigados a levantarem-se, a gatinharem até uma parede, em que são encostados, num cenário que aponta para uma execução, que o vídeo não mostra. Mais tarde, numa outra gravação com imagens noturnas, estão corpos no chão. “Tudo leva a crer que foram executados mas não temos a certeza de que são os mesmos que andaram de joelhos”, ressalva Wilker, a partir de Haia, pouco depois de uma reunião no Tribunal Penal Internacional, onde está a preparar uma queixa pelas mortes às mãos das forças de segurança nesta contestação.
A fuga da “tenebrosa cadeia onde a PIDE torturava presos políticos”
O caso de Mikrus é apenas um dos exemplos (há vídeos de mortos e feridos na sequência da fuga das prisões) do que o ativista considera “o uso excessivo e desproporcional” das forças de segurança na resposta aos protestos que há mais de dois meses sacodem Moçambique.
Mas a morte de Mikrus não é um caso como os outros e está ligado ao clima de medo e pânico que se agravou em Moçambique no dia de Natal que a live de Beleza em Pesssoa revela. Resulta de um acontecimento inédito numa situação cada vez mais crítica, de que a morte de Xadreque Miguel é mais um exemplo, desde que a Comissão Nacional de eleições deu a vitória a Daniel Chapo, o candidato do partido no poder há 49 anos, a Frelimo, com mais de 70% dos votos.
Uma realidade que, como muitos previam, se tornou explosiva na segunda-feira, quando o Conselho Constitucional validou a eleição de Daniel Chapo, reduzindo-lhe a margem de vitória, e a derrota de Venâncio Mondlane, candidato independente que tem convocado os protestos, subindo a percentagem de votos de 20 para 24%.
Protestos em Moçambique. “O poder está na rua” e adivinha-se um “Natal violento”
Ao tão esperado anúncio sucederam-se queimas de pneus, estradas barricadas com tijolos, ruas destruídas, bancos incendiados e assaltados, supermercados e lojas pilhadas e manifestantes mortos, feridos e detidos pela polícia. Em três dias morreram 132 pessoas, elevando o total de mortes desde 21 de outubro para 258, números da Plataforma Decide. Venâncio Mondlane avançou nesta quinta-feira com outros cálculos: “Mais de 400 pessoas mortas”, disse o candidato, que está em parte incerta, fora do país por razões de segurança, na sua habitual mensagem em direto no Facebook.
Tudo piorou no dia de Natal, quando fugiram (ou foram libertados) 1.534 prisioneiros de uma cadeia a 14 quilómetros de Maputo. Não é um estabelecimento prisional qualquer, é de alta segurança, é a Machava, “a prisão tenebrosa onde a PIDE prendia e torturava os grandes nomes do movimento de libertação de Moçambique”, recorda ao Observador uma jurista moçambicana sob anonimato. Mas não foi a única com fugas de reclusos. Também se evadiram detidos da B.O., ao lado desta Cadeia Central de Maputo, e em Nampula, Gaza e Zambézia.
“Parece uma agenda maquiavélica da Frelimo para criar terror”
As circunstâncias, as consequências e as motivações são pouco claras, levantam dúvidas no meio de ativistas, investigadores e oposição e levam alguns, como Paula Cristina Roque, especialistas em assuntos africanos, a falar de um “caos organizado” e ação “intencional”. E outros, como Venâncio Mondlane, a acusar os guardas prisionais de terem aberto as portas, aludindo a táticas soviéticas.
Quitéria Guirengane, do Movimento de Defesa da Liberdade de Associação (plataforma que junta organizações não governamentais) e dirigente do Nova Democracia, defende que tudo parece apontar “para uma estratégia montada de libertar criminosos para justificar o terrorismo nos bairros”, frisa, a partir de Maputo, ao Observador. “Cheira a agenda maquiavélica da Frelimo para lançar o terror”.
A conhecida ativista, que recebe permanentemente notícias de vários pontos do país, bem como pedidos de ajuda, insiste em dizer que a maior parte das pessoas que a contacta está convencida de que se trata de uma ação concertada: “Estes grupos estão bem instruídos, pois os ataques com as catanas são anunciados ao mesmo tempo em várias partes do país, não pode ser coincidência”. Dizem que “são os terroristas que fugiram da cadeia, mas, se assim é, porque é que não divulgam nome e fotos deles para as pessoas ajudarem a identificar? Parece uma agenda muito bem montada para criar pânico e terror na população, uma situação de violência generalizada, para afastar as pessoas das manifestações. Aliás, se de noite estão a patrulhar, de dia precisam de dormir, não se podem manifestar nas ruas”, nota.
As contradições entre a ministra da Justiça e o comandante geral da polícia
As contradições do governo sobre o que aconteceu na Cadeia Central de Maputo só acenderam mais a polémica e alimentaram mais as dúvidas. As versões da ministra da Justiça e do comandante geral da Polícia da República de Moçambique (PRM) não coincidem.
Bernardino Rafael, que confirmou a evasão no dia de Natal, disse tratar-se de uma ação “premeditada” dos manifestantes pós-eleitorais e avisou que, nas 48 horas seguintes, “se esperava uma subida vertiginosa de todo o tipo de criminalidade” em Maputo. Na conferência de imprensa, adiantou ainda que apenas 150 tinham sido recapturados e que entre os fugitivos estavam “alguns terroristas altamente perigosos”.
Fuga de mais de 1.500 reclusos de cadeia de Maputo faz 33 mortos
“Facto curioso é que naquela cadeia nós tínhamos 29 terroristas condenados, que eles libertaram. Estamos preocupados, como país, como moçambicanos, como membros das Forças de Defesa e Segurança”, afirmou Bernardino Rafael.
Segundo o comandante geral, a fuga desta cadeia situada na cidade da Matola, a 14 quilómetros do centro da capital moçambicana, que contava com cerca de 2.500 condenados e detidos, resultou da “agitação” de um “grupo de manifestantes subversivos” nas imediações. “Fazendo barulho nas suas manifestações, exigindo que pudessem retirar os presos que ali se encontram a cumprir as suas penas”, os manifestantes causaram “agitação” no interior da cadeia B.O. Esses distúrbios “levaram à queda do muro que separa outro presídio ao lado, e eles aproveitaram a oportunidade para fugir pelos portões. Houve um confronto com os companheiros que garantem a segurança, mas não conseguiram prender os prisioneiros, 1.534 presos fugiram”, contou, acrescentando que 33 morreram.
A versão da ministra é diferente. Helena Kida, numa entrevista à televisão privada STV, disse que a evasão de presos da cadeia central de Maputo não estava relacionada com as manifestações pós-eleitorais e garantiu que o motim se iniciou no interior do estabelecimento prisional.
Aliás, Wilker Dias lembra que não houve manifestações perto das duas cadeias, e que “seria muito complicado ter uma invasão externa por manifestantes sem armas à única cadeia de máxima segurança”. Por outro lado, refere relatos de pessoas que “dizem que lhes abriram os portões” e que se veem nos vídeos “presos a saírem normalmente e sem o uniforme cor de laranja de reclusos, logo tiveram tempo para trocar de roupa e sair”.
E, tal como Quitéria Guiregane e Venâncio Mondlane, aponta o dedo às declarações de Bernardino Rafael que em vez de procurar tranquilizar a população, lançou o pânico, “criou agitação” dizendo que esses reclusos agora “iriam assaltar as casas, matar e raptar, violar mulheres”. O comandante geral da polícia chegou mesmo a dizer que iriam entrar em casa dos manifestantes, “parecia que não só conhecia muito bem estes reclusos pois sabia o que podiam fazer como até os instruiu ao dizer o que iriam fazer”, condenou Venâncio Mondlane na sua comunicação de quinta-feira.
“Estratégia da Frelimo é sinistra, mas eficaz”
O caso das cadeias é a prova de “um caos organizado de várias vertentes, é intrumentalizado” para “justificar uma reação mais dura do regime”, considera Paula Cristina Roque, especialista em assuntos africanos,
A investigadora equipara o que se está a passar em Moçambique ao que se passou no Sudão ou na África do Sul em julho de 2021. “Elementos dos serviços secretos sul-africanos que estavam a favor de Jacob Zuma instrumentalizaram os ataques a propriedades privadas e públicas e depois a população, que estava com fome, aproveitou”.
Paula Cristina Roque diz estar a ver “a mesma estratégia a ser usada pela Frelimo”, pois “a anterior, de balear e assustar os manifestantes, não resultou depois de um carro blindado ter atropelado propositadamente a alta velocidade uma manifestante acendendo um coro de protestos internacionais”.
A Frelimo teve de mudar de tática “e infiltrou grupos de jovens de vários quadrantes que aderiram facilmente à desobediência civil e que conseguem causar o caos para deslegitimar as reivindicações destas populações e descredibilizar Venâncio Mondlane”, sublinha.
População carrega bens após saques de armazéns na periferia de Maputo
“Não é possível haver simultaneamente quatro prisões em que os prisioneiros saem em liberdade sem reação das forças de segurança. Podemos ver provavelmente nestas evasões um total de dez mil homens, o que é uma milícia”, alerta. Juntando a isso “as 14 esquadras da polícia que desarmaram — sendo que possivelmente até tinham armas em casa, pois o desarmamento pós guerra civil não foi muito extenso em Moçambique, a Renamo [partido rival da Frelimo durante a guerra civil], quando voltou para a mata tinha armas enterradas, logo há armas em Moçambique — temos todos os ingredientes para uma situação que agora já é dramática mas que pode ser ainda mais explosiva”.
A investigadora teme “que isto tenha sido instrumentalizado para assustar a sociedade, virar as pessoas contra Venâncio Mondlane e comprar tempo à Frelimo para dizer à comunidade internacional que este homem não pode ser Presidente nem membro de um Governo de transição nacional porque instigou a violência e um golpe de Estado”. É uma “estratégia sinistra, mas eficaz”, lamenta Paula Roque.
No quadro do anúncio do Conselho Constitucional eram esperadas mais manifestações, pelo que Rodrigo Adão da Fonseca, português que durante vários anos revia diariamente relatórios sobre segurança e defesa em Moçambique, esperava que de alguma forma a autoridade do Estado estivesse preparada para um agravamento da situação. Daí que o responsável de cibersegurança de várias empresas e organizações em Portugal, que é próximo de Venâncio Mondlane, veja no que está a acontecer “uma vontade deliberada de aumentar o caos para deslegitimar Venâncio”.
O também colunista do Observador destaca que “as pilhagens e saques e toda esta sensação de caos e medo visam causar a tensão clássica entre liberdade e segurança, para legitimar a aceitação dos limites dos direitos”. Rodrigo Adão da Fonseca diz “que num país de muita fome há sempre espaço para saques e roubos, alguns até de polícias esfomeados, mas daí a conseguir-se um motim numa cadeia de alta segurança e a saída em massa dos reclusos vai um passo impossível, pelo que se cria a sensação de que o se pretende é gerar um ambiente de terror”.
Como a classe média se está a afastar do movimento contestatário
A investigadora Paula Cristina Roque vai praticamente no mesmo sentido de Venâncio Mondlane, que na sua mensagem em direto no Facebook nesta quinta-feira, apelou aos manifestantes para não pilharem nem saquearem, pois não quer tomar posse a 15 de janeiro “no meio de escombros”. Acusa a polícia de, enviada pela Frelimo, arrombar lojas e armazéns para desviar a atenção do povo, frisando que enquanto “o povo retira bens a polícia não atua, só depois da retirada é que aparece, simulando que vai impor a ordem”.
Uma ideia que é partilhada pelo blogger Beleza em Pessoa ao assinalar que o grupo inicial que arromba portas de lojas e armazéns não é o grupo que entra e retira os produtos. Quitéria Guirengane lamenta que a Frelimo tenha conseguido dividir um povo que estava unido nos protestos, “nas manifestações pacíficas, em que os mais pobres e desfavorecidos estavam ao lado da classe média, dos pequenos empresários”. A ativista aponta para os vídeos que mostram a ação das forças de segurança no arranque de alguns saques para dizer que há fortes indícios de que são iniciados ou incitados por eles. “É uma forma de vingança, pois os pequenos empresários estiveram ao lado dos manifestantes”, considera.
Há um vídeo onde se vê um carro blindado a arrombar os portões de um armazém de comida e os militares a dizerem às pessoas para entrarem. “Isso só prova que está a ser feito com a participação ou conivência das forças de segurança”, salienta Paula Cristina Roque.
A “polícia arromba e depois incita a população faminta a entrar e vandalizar”, acusa Venâncio Mondlane, que diz ainda que foi a polícia que mandou queimar negócios de empresários. O pastor evangélico vai mais longe. Diz mesmo que, no bairro Benfica, onde terão saqueado um armazém, “foi a polícia que trancou e carbonizou as pessoas lá dentro, não foi o proprietário chinês”. Mondlane estava a referir-se aos 12 corpos que as autoridades retiraram de um armazém incendiado durante uma alegada tentativa de saque de eletrodomésticos neste bairro de Maputo. “Foi a polícia que trancou, lançou gás lacrimogéneo e mandou fogo”, alegou.
Quitéria Guirengane está muito preocupada com esta divisão e por isso deixa um conselho. Sublinhando que as pilhagens estão a diminuir, pois “há grupos organizados nos bairros para as impedirem e denunciarem”, sugere que se repense a relação entre a classe média e os mais pobres. “O dono do pequeno negócio, que transpirou para o ter, que ainda tem dívidas ao banco de um momento para o outro vê tudo a ir por água abaixo. Isso causa revolta. E se estes empresários não forem acautelados, em janeiro haverá fome a triplicar, pois aquilo que estão a destruir faz parte daquilo que os faz sobreviver”, destaca.
O facto de as pessoas nos bairros se estarem a organizar para proteger as suas casas e famílias faz com que Quitéria acredite que se vão voltar a unir como no tempo das manifestações pacíficas em que não havia criminalidade nos bairros e vão reorganizar-se e repensar novas formas de manifestação.
Os protestos são mesmo para continuar, diz Venâncio Mondlane, que também culpa as autoridades da fuga dos prisioneiros. “Foram os guardas que abriram os portões”. Pedindo uma investigação de organizações não governamentais nacionais e estrangeiras, e uma intervenção do TPI, Mondlane diz que muitos dos reclusos que fugiram eram jovens detidos durante as manifestações (número que fixa em quatro mil, no total) ainda sem julgamento e que foram libertados para serem executados, sendo que “no meio colocaram alguns terroristas, homens perigosos”. O candidato aponta para “mais de 100 jovens baleados ao saírem da cadeia”, falando em “massacre”, “crime contra a humanidade” que tem de ser investigado, apelando a que se visitem as morgues.
Na sua live de quinta-feira, pede aos moçambicanos para não só não pilharem mas para “não se deixarem manipular”: aideia da Frelimo, através da polícia, é aterrorizar, dividir, lançar o caos e depois aparecer como salvadora, defendeu. “Quem quiser acreditar que é a população que está a pilhar que acredite”, atirou, anunciando que as manifestações não vão parar, vão intensificar-se, mas sem perder o foco: a Frelimo, os órgãos do poder, as instituições do poder.
Com a falta de alimentos a fazer-se sentir — mais dois, três, cinco dias e não vai haver comida — avisa Quitéria, há relatos de que nem pão se consegue comprar em Maputo, já que praticamente todos os supermercados terão sido vandalizados, há falta de combustível, o comércio e os serviços ficaram paralisados, há hospitais sem consumíveis e com falta de profissionais de saúde. O que se pode esperar? “É uma incógnita”, admite Wilker Dias. Esta sexta-feira termina a V8Turbo, esta fase de manifestações acionada pelo anúncio do Conselho Constitucional e muitos esperavam pela mensagem em direto no Facebook de Venâncio Mondlane. Chegou por volta do meio dia em Portugal: protestos param dois dias para enterrar os mortos e cuidar dos feridos, e nova fase, a derradeira, a que chamou Ponta de Lança, é anunciada na segunda-feira. Nesse dia, apenas as “mamanas”, vendedoras dos mercados, podem trabalhar.
“Parece que não houve mortes suficientes para a comunidade internacional”
Ao mesmo tempo, crescem os apelos ao diálogo de ativistas, comentadores, académicos e da comunidade internacional. “É fundamental que Venâncio fale com as pessoas da nomenclatura, da segurança, da Frelimo, que não se reveem nesta estratégia”, sugere Paula Cristina Roque. É que “isto vai ter um custo terrível para o partido, a situação é dramática e ainda vai ficar pior, pois já está a haver massacre atrás de massacre e economicamente vai ser ainda mais dramática”, prevê. “E reconstruir isto tudo vai demorar muito tempo, vai exigir um esforço enorme, muita moderação que eu não estou a ver a Frelimo a ter, atualmente”, ressalta.
“Esperava-se uma reação de fúria popular mas com mais adesão aos protestos de cânticos, panelaços, e estratégias que vimos serem usadas nos últimos dois meses”. Tal como Venâncio Mondlane, a investigadora esperou que “polícias e militares não travassem os manifestantes a caminho do palácio da Ponta Vermelha, por exemplo, e assim haver uma revolução mais pacífica”. Não aconteceu. “O que não se esperava era este trabalho de fundo de infiltração, de mapeamento de pessoas feito pelos serviços de informação e segurança e políticos”.
Por isso, o próximo passo “terá de ser falar com as forças de segurança e dizer-lhes que têm um dever constitucional de proteger a população e de não cometer crimes de guerra e contra a humanidade”, diz a especialista. Coisa que Venâncio Mondlane já fez muitas vezes publicamente nas suas comunicações no Facebook. Ainda esta quinta-feira o repetiu: “Militares, juntem-se ao povo. Polícias, juntem-se ao povo”.
Rodrigo Adão da Fonseca põe a tónica na comunidade internacional: “Tem de fechar a torneira [do financiamento]”. O apoiante de Venâncio Mondlane em Portugal revela que havia na União Europeia e em Portugal, “interlocutores internacionais fortes interessados numa mediação” mas que não houve coragem ainda para levar o tema por diante. “Parece que não houve ainda mortes suficientes”.
O especialista faz questão de lamentar “a narrativa muito usada nas cleptocracias (que come bacalhau no Natal, grita pelo Benfica e compra casa em Portugal)” que faz a apologia do medo da ingerência pós-colonial”. Ora, garante, “isso não é partilhado pela população”, e Lisboa não pode ficar refém desse receio.
Uma coisa é certa, assegura Rodrigo Adão da Fonseca. Mondlane não vai recuar. “Entrou num caminho sem regresso há algum tempo. Há demasiadas mortes para honrar”.
Quitéria Guirengane não sabe o que se vai seguir, mas aos políticos “pede bom senso, um pacto de verdade e reconciliação para refundar o Estado assente em valores de união e verdade”. Beleza em Pessoa dizia na madrugada desta sexta-feira que só tinha “promessa para amanhã” não tinha certezas “para o depois de amanhã”. E dizia: “Eu não sei até quando vou viver”.
O Observador contactou a Ministra da Justiça na quinta-feira de manhã e o Gabinete de Informação do governo moçambicano ao início ao tarde, mas até à hora de publicação deste artigo não obteve qualquer resposta.