As reuniões separadas desta terça-feira entre Governo e ANTRAM e Governo e Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP) não trouxeram acordo, nem abriram a porta a nova mediação. Este mecanismo legal caiu por terra depois de a associação sindical ter recusado abdicar de duas pré-condições “essenciais”: a fixação do subsídio de operação de matérias perigosas em 175 euros (mais 50 euros do que o acordado entre a ANTRAM e a FECTRANS) e o pagamento de todas as horas extraordinárias. Horas depois era anunciado um novo pré-aviso de greve ao trabalho suplementar em dias úteis, feriados e fins de semana.
Mas antes do desacordo, e da greve, houve uma tentativa de negociação que durou desde 18 de abril (com a assinatura de um Protocolo Negocial) até ao início de julho, ora na Direção-Geral do Emprego e das Relações do Trabalho (DGERT) ora no Ministério das Infraestruturas: reuniões de longas horas, com pouca comida (de vez em quanto lá apareciam umas “bolachinhas”), muita água, servida nuns “jarrinhos bonitos com o logótipo da EPAL” e escassos cafés (só oferecidos no início dos encontros no Ministério de Pedro Nuno Santos).
“Passei muita coisa naquelas reuniões e uma delas foi fome”, brinca Anacleto Rodrigues, porta-voz do Sindicato Independente dos Motoristas de Mercadorias (SIMM), que de vez em quando não resistia a descer para fumar um cigarro. Este sindicato juntou-se às negociações conjuntas a partir de junho.
Já António Medeiros, tesoureiro do SNMMP, atira que se uma coisa os intervenientes aprenderam foi a trazer a bateria dos telemóveis sempre carregada. “As reuniões demoravam muito tempo e tínhamos de nos manter em contacto com os associados.” As ‘escapadinhas’ ao Facebook eram outra forma de descomprimir do stress das reuniões.
Antes do corte de negociações entre SNMMP e Governo, houve copos de água entornados e Bruxas d’Arruda. Promessas de um vinho abafado e até uma caixa de chocolates.
Matias de Almeida e Pardal Henriques (quase) sempre de telemóvel na mão
São dois dos protagonistas da ‘guerra’ que opõe sindicatos e ANTRAM e que culminou na greve iniciada a 12 de agosto. Aliás, um estudo da Cision mostra isso mesmo. Entre 12 e 18 de agosto (o período da greve) foram publicadas 8.241 notícias sobre a paralisação. E o assessor jurídico do SNMMP, Pedro Pardal Henriques, foi a personalidade mais mediática (com 30% de referências, depois da ANTRAM e do SNMMP).
Já André Matias de Almeida, advogado da associação patronal, surge em sétimo lugar (atrás do SIMM, do primeiro-ministro, António Costa, e do ministro do Ambiente, Matos Fernandes), com 11% de alusões. Está à frente do presidente do SNMMP, Francisco São Bento (9%), do ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos (7%), de Anacleto Rodrigues (3%) e de Pedro Polónio, representante dos patrões do setor (2%).
As discussões, e as indiretas, entre os dois advogados foram frequentes durante as negociações que antecederam a greve. E a conciliadora da Direção-Geral do Emprego e das Relações do Trabalho (DGERT), Paula Fernandes, chegou mesmo a chamá-los à atenção sobre o tom usado.
André Matias de Almeida não esteve nas negociações desde o início. Entrou já depois de assinado o Protocolo Negocial que levou à desconvocação da greve de abril. É descrito como um “negociador duro” que tem “sempre o argumento na ponta da língua”. “Ele vai preparado. Dá a sensação de que já leva o roteiro próprio para a reunião, e tem documentos, como os protocolos e as declarações conjuntas, que suportam esse guião”, diz Anacleto Rodrigues.
Antes de Matias de Almeida aparecer na mesa de negociações, era Ana Souta, diretora jurídica da ANTRAM, quem liderava as reuniões. E por isso, tem, segundo o sindicalista do SIMM, um “conhecimento muito mais profundo dos temas”. Aliás, foi ela quem participou nas negociações para a elaboração do contrato coletivo de trabalho que foi assinado com a FECTRANS e que entrou em vigor no ano passado.
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Com a chegada de André Matias de Almeida, Ana Souta tomou um lugar secundário e passou a pronunciar-se apenas para dar apoio técnico ao colega e “discutir os pormenores técnicos das questões levantadas”, como o conteúdo das cláusulas que constam no contrato coletivo, segundo Anacleto Rodrigues. Já Gustavo Paulo Duarte, o presidente da ANTRAM, não participou em todas as reuniões e só se sentou à mesa com o SIMM na última quarta-feira, um dia antes de a greve ser desconvocada por este sindicato.
“Teve uma postura cordial, e se ele materializar o que verbalizou ali, terá no SIMM um aliado para construir uma relação laboral no setor dos transportes”, defende o porta-voz dos motoristas. E o que garantiu o patrão dos patrões naquele encontro? “Ele disse que percebe que o trabalhador motivado é muito mais produtivo, e que há falta de atratividade e dificuldade em recrutar novos profissionais no setor.” Gustavo Paulo Duarte e André Matias de Almeida não atenderam as chamadas do Observador.
Da parte do SNMMP, Pedro Pardal Henriques cedo tomou o protagonismo — à frente das câmaras e na mesa das negociações. Era ele quem liderava as discussões com Matias de Almeida. É “objetivo e mantém sempre o mesmo registo de calma independentemente da situação”. Ao contrário do colega de profissão, Pardal Henriques esteve desde o início nos encontros de negociação. E até antes disso: acompanha o conflito desde que o sindicato que hoje assessora foi criado, no final de 2018.
Nas últimas intervenções do SNMMP, Pardal Henriques tem dado passos atrás e deixado as luzes da ribalta para Francisco São Bento, o presidente da associação sindical. Ainda assim, manteve-se ao lado, ou atrás, do colega de sindicato e várias vezes foi apanhado pelas câmaras a sussurrar ao ouvido de São Bento enquanto os jornalistas faziam as perguntas. O advogado prepara-se agora para novas batalhas — neste caso, a da campanha eleitoral para as legislativas, depois de ter anunciado que aceitou o convite de António Marinho e Pinto “para integrar a lista do PDR como cabeça de lista pelo círculo de Lisboa”. Continua a representar juridicamente o SNMMP, mas deixará de ser o porta-voz.
Para lá das divergências, André Matias de Almeida e Pedro Pardal Henriques têm uma caraterística em comum: na mesa de negociações têm quase sempre o telemóvel na mão. Um sinal de que estão em contacto constante com os associados que representam. Ou com os jornalistas que aguardam as conclusões de cada encontro.
Paula Fernandes, a conciliadora nas negociações e… nos casamentos
É mediadora e conciliadora na Direção-Geral do Emprego e das Relações do Trabalho (DGERT) desde 2011 e chegou a diretora de serviços da mesma entidade em fevereiro de 2016. Paula Fernandes foi a conciliadora destacada para as negociações entre os sindicatos e a ANTRAM, desde a greve do SNMMP de abril, incumbida de ajudar as partes a chegarem a acordo para resolver o conflito.
“É uma pessoa neutra, isenta, que procurou conciliar. Ouvia todos os sindicatos, ouvia a Antram e tentava encontrar pontos em comum”, destaca Anacleto Rodrigues. Era ela quem várias vezes “batia na mesa” e restabelecia a ordem na sala de reuniões quando os ânimos se exaltavam entre sindicatos e patrões. Assertiva, gesticula expressivamente, e em duas ocasiões chegou a entornar o copo de água pela mesa e pelas folhas.
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A capacidade de conciliação aplicou-se até aos casamentos dos próprios intervenientes das negociações, numa tentativa de evitar, também aí, conflitos. “Houve uma reunião que acabou muito tarde e… acho que foi com o Dr. Fernando Velasco [vice-presidente executivo da Antram]… Sei que ou a esposa dele fazia anos ou faziam os dois anos de casado. A reunião acabou tardíssimo e ele não pôde comprar uma lembrancinha. A Dra. Paula Fernandes tinha uma caixa de chocolates no gabinete dela e deu-lhe para ele oferecer à esposa“, conta o porta-voz do SIMM.
E quando a discussão estava mais tensa, atirava uma ou outra piada. “Uma vez sugeriu, para as reuniões começarem logo desde início desanuviadas, levar uma garrafa de vinho abafado de Arruda dos Vinhos, de onde ela é”, acrescenta o sindicalista. Nunca chegou a concretizar a ideia, mas várias foram as vezes em que “falava da terra dela, do bacalhau, da degustação” e de como “não é apreciadora” das Bruxas d’Arruda, um bolo típico da localidade. “Com estas histórias, ajudava a descomprimir“, sublinha, por sua vez, António Medeiros.
Durante as reuniões que duravam horas, havia apenas água numas “jarras muito bonitas com o logótipo da EPAL”, diz o tesoureiro do SNMMP. E, por vezes, era Paula Fernandes quem trazia “umas bolachinhas de água e sal” para os intervenientes enganarem a fome, acrescenta Anacleto Rodrigues.
A atitude da conciliadora contrastava com a de Guilherme Dray, mais discreto e ponderado. Inicialmente, nas reuniões no Ministério das Infraestruturas (e, portanto, sem a técnica da DGERT), tinha um “papel mais ativo” na mediação entre as partes. Quando as reuniões passaram para a esfera da DGERT, Paula Fernandes passou a assumir, sobretudo ela, o controlo, e o papel de Dray ficou-se maioritariamente por “pequenas intervenções sobre o que se tinha passado na negociação das matérias perigosas, em abril”, relata Anacleto Rodrigues.
Nos encontros em que se juntou o ministro das Infraestruturas, Dray passou a dar, essencialmente, “apoio técnico” ao governante. Nessas reuniões, era Pedro Nuno Santos quem assumia o protagonismo — e o papel de mediador.
Pedro Nuno Santos, o “homem do Norte” que é um “negociador nato”
Se Paula Fernandes era a conciliadora na DGERT, tentando equilibrar ambas as forças, o ministro Pedro Nuno Santos desempenhava o mesmo papel no Ministério das Infraestruturas. Também ele com humor — mas só nos momentos mais descontraídos.
Anacleto Rodrigues teve “discussões acérrimas” com Pedro Nuno Santos. Sobretudo quando o governante tentou pressionar o SIMM a desconvocar a greve, numa reunião no Ministério, na quarta-feira (um dia antes de o sindicato desmarcar de facto o protesto laboral). “Ele insistia e eu dizia que, numa reunião onde não estava o sindicato das matérias perigosas, não íamos desconvocar uma greve que tinha sido convocada por dois sindicatos. Além disso, faltava ouvir os nossos associados que estavam no piquete de greve”, argumenta o sindicalista, para quem Pedro Nuno Santos é um “negociador nato” e, por vezes, um “porreiro”.
“É governante, tem de mostrar que numas coisas está intransigente e defende determinada ideia com unhas e dentes. Na negociação propriamente dita é um negociador nato. Faz os avanços e recuos como deve ser numa negociação. Aperta mais aqui, desanuvia ali para tentar chegar a um entendimento. Já quando as coisas estão fora do âmbito da negociação é um porreiro.”
Nos momentos de maior tensão, respondia com sentido de humor. E mostrava ser despachado. “Certa vez o nosso advogado pediu cinco minutos de intervalo. E o ministro respondeu: ‘Não há cá necessidade de mais cinco minutos! Cinco minutos para quê?”, conta Anacleto Rodrigues. António Medeiros complementa: “É um homem do Norte!”.
Anacleto Rodrigues é “tagarela”. Francisco São Bento “apaixonado”
É o próprio que o reconhece, em conversa com o Observador: Anacleto Rodrigues, porta-voz do SIMM, gosta de “discussões acaloradas” e quando fala dos problemas da profissão várias vezes acaba exaltado. “Normalmente quem se exalta mais é quem fala com o coração. Eu, o Francisco São Bento, o António Medeiros“, diz. O tom de voz chegou a subir em algumas reuniões, mas, garante, nunca houve agressividade nem faltas de respeito. “O que estamos aqui a discutir são os direitos que se irão aplicar a mim, amanhã, quando pegar no camião.” Por isso, assume ser “tagarela”.
O entusiasmo durante a discussão levou mesmo os colegas de sindicato (sobretudo o presidente do SIMM, Jorge Cordeiro), a terem de lhe “tocar no braço a pedir calma”. E também nos dois debates televisivos a dias da greve que o colocaram, ao lado de Francisco São Bento, frente a André Matias de Almeida, houve vozes exaltadas e ‘atropelos’ de ambas as partes.
Num debate na SIC Notícias, a certa altura, Francisco São Bento acusou a ANTRAM de “mentir” quando disse que não tinha capacidade para aumentar salários, argumentando que as empresas filiadas na associação patronal têm “faturações de 40 milhões de euros e investimentos de 10 milhões”. E aqui a discussão subiu de tom. “O que é que isso significa?”, perguntou-lhe André Almeida. “Significa que você está a mentir! Está a dizer que são pobrezinhos, coitadinhos, não podem pagar aos trabalhadores”, respondeu o sindicalista ao mesmo tempo que o advogado da ANTRAM ripostou: “Isso [faturação anual de 40 milhões] não significa nada!”. “Não significa nada? Por amor de Deus, só se for para si!”, aponta São Bento.
O próprio presidente do SNMMP também dava gás às discussões no Ministério das Infraestruturas ou na DGERT. “O Francisco é apaixonado por aquilo que está a defender. É o coração a falar“, sublinha o porta-voz do SIMM.
Um pouco antes da troca de acusações entre São Bento e Matias de Almeida na SIC Notícias, foi o próprio Anacleto Rodrigues a levantar um papel onde se lia a palavra “Mentira”, enquanto o advogado da Antram acusava os sindicatos de querer bloquear veículos nos piquetes de greve. “Isso é uma invenção da sua cabeça!”, respondeu-lhe o sindicalista.
Durante as reuniões as ‘picardias’ entre os dois eram igualmente comuns. Além disso, em algumas ocasiões, quando o advogado se dirigia apenas ao sindicato das matérias perigosas, Anacleto interrompia-o para o lembrar de que o SIMM também fazia parte da negociação.
O sindicalista não quer o protagonismo todo para si. É o porta-voz mas sublinha que, para as “coisas económicas”, é o sindicalista Pedro Leal quem intervém no debate em representação do SIMM. Quanto a Jorge Cordeiro, o presidente do sindicato, ainda que não se sinta à vontade à frente das câmaras, dentro da sala de reuniões “é um diplomata”, diz Anacleto Rodrigues. “Ouve tudo, fala pouco. Mas quando fala, fá-lo de forma assertiva. Quando há uma discussão, há sempre desvios do assunto e quando ele intervém é para redirecionar”.