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Provavelmente já se cruzou com uma das esferas espelhadas da startup Worldcoin e nem sequer se apercebeu. Os dispositivos, denominados Orb, estão em áreas de grande tráfego pedonal – em Portugal, é possível encontrá-los em centros comerciais, gares de transportes ou até numa das praias da Costa da Caparica.
A Orb, o ponto mais reconhecível da Worldcoin, é a principal ferramenta de trabalho da empresa criada por Sam Altman, fundador da OpenAI do ChatGPT, e por Alex Blania, um físico de 29 anos. As esferas metálicas, que parecem retiradas de um episódio de “Black Mirror”, têm a assinatura de Thomas Meyerhoffer, a primeira contratação feita por Jony Ive na Apple, o conhecido designer responsável pelo visual do iPhone e do iPad.
A Worldcoin, criada em 2019, tem objetivos ambiciosos: a criação de uma solução de preservação da identidade digital, chamada World ID, e também a de um ativo digital, Worldcoin (WLD), que se recebe “simplesmente pela prova de que se é humano”, explicam os fundadores na apresentação deste projeto. Ao mesmo tempo, também sonha com a criação de uma rede global que possa “mostrar o caminho potencial para um rendimento básico universal”.
Por trás do projeto está uma entidade sem fins lucrativos, a Worldcoin Foundation, que é a responsável pela gestão do “token” Worldcoin (WLD), atribuído a quem prova que é humano através do registo da íris. Neste universo existe ainda outra peça, a Tools for Humanity, a empresa que assegura o desenvolvimento tecnológico de ferramentas para o projeto Worldcoin.
Ao longo de mais de um ano e meio, em Portugal e noutros mercados, numa fase beta (de teste) foram sendo digitalizadas íris com a promessa de uma recompensa — um “token” próprio da Worldcoin. Que só se veio a materializar em julho, após alguns adiamentos.
É uma “nova fase” no percurso da empresa, dizem os responsáveis. Desde 24 de julho os serviços da Worldcoin passaram do modo beta à fase de mercado, com o lançamento do prometido “token”. “Através da sua tecnologia única a Worldcoin tem como objetivo proporcionar a qualquer pessoa no mundo, independentemente da origem, geografia ou rendimento, o acesso à crescente economia digital e global de uma forma descentralizada e que preserve a privacidade”, disse Alex Blania no dia de lançamento.
1/ Today, I am excited to reveal Worldcoin, a new, global digital currency that will be distributed fairly to as many people as possible. We will launch by giving a free share of Worldcoin to everyone on Earth. Read more: https://t.co/xfAMwcRw2C pic.twitter.com/JI3VqlxiTM
— Alex Blania (@alexblania) October 21, 2021
Os Estados Unidos ficaram fora da lista de disponibilidade de serviços, numa altura em que os reguladores norte-americanos têm os criptoativos na mira. “Quando começámos a pensar nisto não achámos que acabaria a ser ‘o mundo todo menos a moeda dos EUA’, mas aqui estamos”, admitiu Sam Altman numa entrevista ao Financial Times. “Diria que 95% da população mundial não está nos EUA. Os EUA não fazem ou acabam com um projeto deste tipo.”
Uma troca de olhares com uma Orb para se autenticar
Pedro Trincão Marques, responsável da Worldcoin para Portugal e Espanha, explica ao Observador que, com o desenvolvimento da inteligência artificial (IA), vai ser cada vez mais necessário ter ferramentas para distinguir um humano de um produto digital. É através das Orbs, os dispositivos de reconhecimento biométrico, que, com recurso a sensores e a câmaras fotográficas, se consegue fazer um registo – a World ID, uma identidade digital que permitirá preservar a privacidade e, ao mesmo tempo, comprovar que é humano e um ser único, conceito a que a companhia chama “humanidade única”.
Como incentivo, os utilizadores recebem “tokens”. Até ao lançamento do ativo próprio da Worldcoin (WLD), a recompensa era feita com um valor equivalente a 9 dólares em criptomoedas, com a promessa de que mais tarde se receberia WLD. Durante a versão beta, os utilizadores receberam 25 WLD. Com o lançamento, quem já tinha registo recebeu mais 25. A empresa argumenta que esta é a primeira moeda digital a ser distribuída de forma gratuita e justa, apenas pelo facto de se ser humano.
Trincão Marques dá uma explicação detalhada do processo de digitalização do olho, em que são tiradas fotografias a cada um dos olhos: “Antes da foto, através de sensores de temperatura e profundidade da cara, garante-se que o que está à frente da Orb é um ser humano vivo, que não é uma fotografia, por exemplo. São tiradas duas fotografias, uma de cada íris, e decompõe-se estas fotos num código muito grande, a que chamamos Iris Code, sendo as fotos apagadas.”
A privacidade dos dados é uma promessa. “O código é transferido para a nossa blockchain [protocolo de segurança, em que é impossível alterar registos], onde é comparado com outros códigos. Se esse código já existir, considera-se que a pessoa não é única e que não se pode registar.”
A digitalização da íris anda de mãos dadas com a aplicação World App – é a primeira compatível com a World ID e que permitirá fazer pagamentos, compras e transferências globais. Não são pedidos mais dados ao utilizador. “Não pedimos nome, idade, sexo, nada. Quando me perguntam qual é o nosso público-alvo, costumo dizer que não sei. Não tenho dados sobre os utilizadores”, diz o responsável ao Observador.
Pedro Trincão Marques reforça que é um dos grandes princípios internos da empresa. “Não queremos ter dados nenhuns.” Torna-se mais difícil perceber quem são as pessoas interessadas no projeto, admite, mas garante que vivem “bem com isso”. A Worldcoin quer ser “o mais privada possível”. “Levamos este tema muito a sério, queremos garantir que o sistema é o mais correto possível e que a tecnologia funciona.”
Os planos da startup para Portugal
Em Portugal, mais de 170 mil pessoas já olharam fixamente para as Orbs metálicas da Worldcoin. A nível global há já dois milhões de utilizadores, e é possível agendar uma visita num conjunto de países, incluindo Singapura, Uganda, Quénia, Chile, Argentina, entre outros.
Portugal foi o mercado de estreia da Worldcoin na Europa – em parte, por uma questão de conveniência. Ricardo Macieira, que já liderou as operações de empresas como a Airbnb e a Revolut em Portugal, foi contratado no ano passado para trabalhar a estratégia da empresa no velho continente. “O Ricardo já conhecia o mercado”, explica Pedro Trincão Marques. “Há ainda o facto de Portugal ser um bom testbed [área de teste] para este tipo de produtos. Em Lisboa, por exemplo, temos uma população bastante diversificada e isso acabou por ser um contexto mais fácil para essa execução.”
Não é a única ligação ao mercado português. “As bancas [onde são expostas as Orbs] foram desenhadas em Portugal”. Antes, as operações eram feitas maioritariamente na rua, “sem muita estrutura. Mas, depois, “[a banca] no Ubbo [centro comercial em Lisboa] foi o primeiro modelo de shopping criado a nível mundial – é uma coisa muito gratificante para nós.”
Atualmente, Portugal “é o país com maior taxa [de penetração], temos mais ou menos 1,5% de pessoas com World ID”. “Em Espanha, só recentemente ultrapassámos Portugal em nível de utilizadores brutos”, explica.
A empresa está a caminhar para a marca de 200 mil utilizadores de forma rápida, assegura o responsável para Portugal e Espanha. “Na altura, quando começámos cá, o Sam Altman não era conhecido, o ChatGPT não existia… Explicar o que era a Worldcoin era mais complexo do que é agora.” Com toda a atenção dada a Sam Altman e à OpenAI, Pedro Trincão Marques reconhece que a “taxa de crescimento está a ficar cada vez maior.” “Demorámos mais tempo a chegar aos 100 mil utilizadores do que vamos demorar até aos 200 mil em Portugal.” Em abril, a última vez em que foram divulgados números para o mercado português, havia 130 mil pessoas registadas.
A Worldcoin quer aumentar o número de localizações onde é possível fazer a leitura dos olhos. “Se fosse um projeto puramente digital, como é o Revolut, por exemplo, se calhar as taxas de aquisição não tinham uma barreira”, exemplifica o responsável da Worldcoin. Mas “a pessoa tem de dirigir-se fisicamente a um sítio para concretizar o registo. Não só há esse esforço da pessoa como também da nossa parte temos de garantir que há uma Orb disponível.”
No site da empresa, é possível perceber como encontrar uma Orb. Em Portugal há atualmente dez localizações: no centro comercial Parque Nascente, em Rio Tinto, no ViaCatarina, no Porto, e no GaiaShopping, em Vila Nova de Gaia; na Gare do Oriente e no Ubbo, em Lisboa; na Praia da Saúde, na Costa da Caparica, e no Almada Fórum, em Almada; no CascaiShopping e no Alegro Sintra. No sul do país, existe uma banca no Aqua Portimão. “Estamos focados em garantir que estamos onde está a maior parte da população.”
A empresa está também a fazer testes com operações móveis, como é o caso da banca na Praia da Saúde, com um cariz mais sazonal. “Estamos a perceber se este tipo de dinâmica funciona.”
As questões de privacidade. CNPD fez ação de fiscalização
A atividade da Worldcoin na proteção de dados na Europa é supervisionada pela Bavária e são mantidos “contactos com reguladores”. Em relação em Portugal, Pedro Trincão Marques explica que, antes de a empresa entrar em algum país, é feita “uma análise muito forte das leis locais”. Na altura da chegada a Portugal, há mais de um ano, garante ter havido contactos com a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD). “O Ricardo Macieira interagiu com a CNPD para mostrar o projeto e ficaram a par daquilo que tínhamos intenção de fazer.”
Ao Observador a CNPD confirma que “recebeu a Worldcoin, a pedido desta, há mais de um ano, para fazer uma apresentação do projeto Worldcoin, embora não tenha sido submetida à CNPD para apreciação qualquer avaliação de impacto sobre a proteção de dados (AIPD).”
“De qualquer modo, uma vez que não há em Portugal nenhum estabelecimento das empresas envolvidas neste projeto, mas sim na Alemanha, a CNPD tem de recorrer à cooperação prevista no RGPD com a autoridade de proteção de dados alemã que é competente, ao abrigo do mecanismo de balcão único”, continua fonte oficial numa resposta enviada ao Observador. Esta cooperação é feita “sem prejuízo” da própria competência da CNPD em território nacional “quanto às operações de tratamento realizadas em Portugal, designadamente a recolha de dados biométricos”, realça.
Até ao momento, a CNPD diz “não ter recebido qualquer queixa” sobre a atividade da empresa, mas que já realizou uma “ação de fiscalização ao projeto Worldcoin, não podendo, por isso, adiantar qualquer informação sobre o assunto nesta fase por se encontrar ainda em análise.” O regulador diz que “divulgará posteriormente o que vier a ser o resultado deste processo”.
Com o lançamento de um ativo digital, a Worldcoin passa a ter presença também na área financeira. Pedro Trincão Marques diz que, até agora, não houve contacto com entidades como o Banco de Portugal ou a CMVM. “À data de hoje não, mas não é algo que não possa acontecer.” Garante que o “foco não está tanto no ‘token’”, mas sim na tecnologia. “O ‘token’ acaba por ser um produto do que estamos a fazer, mas é mais importante garantir que o nosso método de identificação funciona. Acho que [o contacto] pode acontecer num futuro próximo e vemos com muita naturalidade essa interação com reguladores a nível local.”
A Worldcoin poderá mesmo precisar de reforçar o contacto com reguladores internacionais, principalmente da área da proteção de dados, já que o anúncio da disponibilidade dos serviços em mais países foi recebido com relutância em alguns pontos da Europa. A 25 de julho, o regulador britânico de dados disse à Reuters que vai analisar a atividade da empresa. “Demos conta do lançamento da Worldcoin no Reino Unido e vamos fazer questões.”
Mais tarde, foi a vez de o regulador da proteção de dados francês, a CNIL, levantar dúvidas sobre a legalidade da recolha de dados biométricos da companhia. “A legalidade desta recolha parece questionável, assim como as condições de armazenamento de dados biométricos”, declarou.