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O que vão mesmo fazer os bispos portugueses para acabar com os abusos sexuais na Igreja?

Do plenário dos bispos portugueses resultaram dois compromissos: a criação de comissões em todas as dioceses e a atualização das regras internas sobre os abusos. Mas o que quer isto dizer na prática?

Depois de o Papa Francisco ter chamado ao Vaticano os presidentes de todas as conferências episcopais do mundo para discutir a resposta da Igreja à crise dos abusos sexuais, pareceu ficar claro na cabeça de todos, crentes ou não, que o tema era a prioridade número um da hierarquia católica. Durante quatro dias, 190 líderes católicos de todo o mundo (Portugal foi representado pelo cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente) escutaram relatos de vítimas, falaram da necessidade de transparência e de melhores procedimentos internos e ouviram recados da comunicação social. No final, ficaram oito ideias concretas — que souberam a pouco para as vítimas.

Para todos os que esperavam mais e melhor da liderança da Igreja Católica no combate ao problema mais grave que tem em mãos, o consolo era o de que as medidas concretas viriam a ser tomadas por cada conferência episcopal, para de facto que houvesse uma resposta firme de prevenção dos abusos, de apoio às vítimas e de punição dos agressores — mas adaptada à realidade de cada país. O Papa Francisco não tardou em dar o exemplo: em março, anunciou formalmente uma série de alterações à lei do Vaticano (o único território onde tem jurisdição civil) que tornou obrigatória a denúncia de situações de abuso, prevendo multas avultadas para quem omitisse esta denúncia.

O objetivo era claro: dar o exemplo aos bispos de todo o mundo para que alterassem também as normas internas de cada conferência episcopal, criando estruturas de prevenção e de apoio às vítimas e endurecendo os castigos para os infratores.

O Papa Francisco chamou bispos de todo o mundo, incluindo D. Manuel Clemente, para um encontro inédito sobre os abusos sexuais na Igreja

AFP/Getty Images

No caso português, as expectativas eram elevadas. Ainda em Roma, o cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente disse aos jornalistas portugueses que iria reforçar as diretrizes que existem no país desde 2012 e admitiu mesmo a adoção de novas medidas contra os abusos antes de abril. De facto, uma das exigências do Papa Francisco foi precisamente a de “reafirmar a necessidade da unidade dos bispos na aplicação de parâmetros que tenham valor de normas e não apenas de diretrizes”. Abril foi, aliás, o mês para o qual todos os bispos portugueses foram remetendo as novidades neste campo. Era a data da primeira reunião plenária dos bispos após a cimeira do Vaticano. E dali sairiam as medidas concretas para a proteção das crianças.

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Chegados a abril, a “unidade dos bispos” pedida pelo Papa ficou pelo caminho: até ao dia da assembleia plenária, vários bispos pronunciaram-se a favor e contra a criação de comissões para a proteção dos menores. Da reunião saíram duas decisões, mas ainda pouco concretas: a criação de “instâncias de prevenção e acompanhamento” em todas as dioceses, e um compromisso para “atualizar as diretrizes” — sem data prevista e sem indicação de quais as alterações a efetuar ao documento de 2012, que, a título de exemplo, não obriga os bispos a denunciar os casos de abuso às autoridades civis, pedindo-lhes que aconselhem as vítimas a fazer essa denúncia.

Vão ser criadas comissões de proteção de menores em todas as dioceses?

Embora a expectativa fosse a de que os abusos sexuais fossem o tema central da assembleia plenária dos bispos portugueses, que decorreu em Fátima entre segunda e quinta-feira, o discurso de abertura da reunião fê-lo parecer uma nota de rodapé. Num discurso de quatro páginas em que se debruçou longamente sobre temas como as Jornadas Mundiais da Juventude ou a preparação para o matrimónio, D. Manuel Clemente apenas dedicou um breve parágrafo ao tema dos abusos sexuais — e fê-lo sem referir quais os planos da Igreja em Portugal para combater o problema ou o que iria estar em cima da mesa durante a reunião:

“Em fevereiro, o encontro em Roma sobre ‘A proteção dos menores na Igreja’, em que participei como Presidente da CEP. Acolhemos inteiramente tudo quanto o Santo Padre decidiu e decida neste campo. Como aliás o vimos fazendo, também no seguimento do que estabelecemos em 2012.”

A verdade é que o cardeal patriarca de Lisboa já tinha dado o pontapé de saída no que toca às medidas concretas, quando anunciou formalmente a criação de uma comissão no Patriarcado de Lisboa para acompanhar as denúncias e para o aconselhar em matéria de prevenção e proteção dos menores. A criação da comissão, que inclui o ex-Procurador-Geral da República Souto de Moura e o antigo diretor nacional da PSP Francisco Oliveira Pereira, foi considerada por muitos uma atitude exemplar e um exemplo para todos os bispos do país.

Mas foi precisamente a discussão à volta destas comissões que expôs a grande divisão entre os bispos portugueses sobre qual a melhor forma de atacar o problema dos abusos sexuais.

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Poucos dias depois do anúncio formal da comissão lisboeta, o bispo do Porto, D. Manuel Linda, deu uma entrevista à TSF sobre o assunto. Quando foi questionado sobre se equacionaria criar uma comissão idêntica, respondeu de forma contundente que não. “Ninguém cria, por exemplo, uma comissão para estudar os efeitos do impacto de um meteorito na cidade do Porto”, justificou D. Manuel Linda. “É possível que caia aqui um meteorito? É. Justifica-se uma comissão dessas? Porventura não”, acrescentou, dizendo que apenas tomaria medidas se servirem para “prevenção” e “formação dos seminaristas”. “Se se destina, como foi divulgado, a recolher as queixas não se justifica pois até agora não tivemos nenhum caso desses, graças a Deus”, assegurou.

Depois do Porto, mais bispos juntaram-se à discussão, quando o jornal Público questionou todas as dioceses do país sobre se estariam a ponderar ou não avançar para a criação de comissões do mesmo tipo. O bispo de Lamego, D. António Couto, recusou a medida, considerando que não iria criar um grupo de trabalho para “tratar um assunto que não existe” e acrescentando que não é “daqueles que criam comissões que depois não terão nada para fazer”. Também a diocese de Santarém disse àquele jornal que não se justificaria criar uma comissão uma vez que já contava com o trabalho de dois padres e de um médico psiquiatra “para acompanhamento dos padres, atendimento de denúncias e reclamações”.

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Outros bispos, como os de Bragança-Miranda, Évora, Faro, Leiria-Fátima e Vila Real adiaram para depois da reunião da conferência episcopal qualquer decisão nesse sentido. Só a diocese de Setúbal afirmou já estar a trabalhar no sentido de criar a comissão.

Mais: no próprio dia do arranque da assembleia plenária, à chegada à reunião, o bispo do Funchal, D. Nuno Brás, disse aos repórteres que “em princípio” não iria criar nenhuma comissão, “porque não existem casos que justifiquem isso”.

O que vão fazer as comissões?

Por isso, a decisão conhecida esta quinta-feira de que todas as dioceses do país vão criar comissões para tratar o assunto foi recebida com algum espanto. Sobretudo quando o cardeal-patriarca de Lisboa disse aos jornalistas, na conferência de imprensa que fechou a reunião plenária, que a decisão de criar as comissões foi “uma decisão unânime de todos os bispos portugueses”. Ou seja, até daqueles que dias antes tinham rejeitado a criação das comissões.

Fontes eclesiásticas contactadas pelo Observador reconheceram a existência de opiniões discordantes dentro da Conferência Episcopal e atribuem-nas a entendimentos diferentes sobre o verdadeiro objetivo das comissões. Vários bispos interpretaram a decisão de D. Manuel Clemente como a mera criação de um organismo unicamente dedicado à receção de queixas de abusos sexuais — e recusaram criar um gabinete semelhante nas suas dioceses por considerarem que não há casos que o justifiquem.

Questionado nesta quinta-feira sobre as opiniões divergentes entre o episcopado português, D. Manuel Clemente desvalorizou a discórdia, sublinhou novamente que a decisão foi unânime e até garantiu que “no Porto existem vários bispos, todos eles estão a pensar a problemática e existe um cuidado permanente, em colaboração estrita com as autoridades estatais”.

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Mas a unanimidade na criação das comissões parece não convencer toda a gente, nem mesmo dentro da Igreja, havendo quem duvide de que todos os bispos tenham intenção de criar uma comissão deste género. Isso pode ver-se inclusivamente, como disse ao Observador, uma fonte eclesiástica, na própria formulação do compromisso, incluído no comunicado final da assembleia plenária divulgado esta quinta-feira:

“Os Bispos comprometem-se a criar instâncias de prevenção e acompanhamento em ordem à proteção de menores nas suas Dioceses e a atualizar as diretrizes aprovadas pela Conferência Episcopal em 2012, tendo em conta as orientações da Santa Sé.”

Segundo disse fonte eclesiástica ao Observador, em várias dioceses os bispos deverão optar por criar outras “instâncias” em vez de comissões fixas dedicadas à prevenção e à criação de um ambiente seguro para os menores na Igreja, por exemplo nomeando uma pessoa para prestar especial atenção a eventuais denúncias de abusos ou então atribuindo esta responsabilidade a algum órgão já existente.

Também não se sabe bem em que consistirão as comissões a ser criadas nas várias dioceses nacionais — à exceção da garantia dada pelo cardeal patriarca de que em todos os lugares estas vão incluir pessoas ligadas ao meio jurídico e policial, além do direito canónico, da comunicação e da pastoral, para que possa haver um aconselhamento o mais especializado possível nestes assuntos.

Resta, assim, o exemplo da comissão criada em Lisboa para tentar vislumbrar o que poderá ser criado nas várias dioceses nacionais nos próximos meses. No mês passado, o bispo auxiliar de Lisboa D. Américo Aguiar, coordenador desta comissão, explicou ao Observador que o objetivo do grupo de trabalho é ter “ferramentas” que permitam agir “no mais curtíssimo espaço de tempo” após a chegada de uma denúncia de abusos sexuais à diocese.

"Os Bispos comprometem-se a criar instâncias de prevenção e acompanhamento em ordem à proteção de menores nas suas Dioceses e a atualizar as diretrizes aprovadas pela Conferência Episcopal em 2012, tendo em conta as orientações da Santa Sé."
Compromisso dos bispos portugueses para lutar contra os abusos sexuais

“Esta comissão tem um antigo procurador-geral da República, um antigo diretor nacional da PSP, um antigo diretor da PJ em Lisboa, profissionais que já não estão no ativo e que nos aconselharão naquilo que são as melhores práticas em cada caso”, explicou na altura D. Américo Aguiar, acrescentando que o cardeal patriarca de Lisboa teve “duas preocupações” quando constituiu o grupo: que a comissão seja multidisciplinar, incluindo pessoas das áreas “jurídica, policial, psiquiátrica, do direito canónico, da comunicação”; e que fosse composta por “profissionais de referência no que diz respeito à cultura portuguesa e, em especial, lisboeta”.

Esta quinta-feira, os bispos deixaram mais pistas sobre quais devem ser as prioridades nas medidas práticas a ser adotadas em Portugal para combater os abusos, replicando em larga medida o que o Papa Francisco afirmou no discurso de encerramento da cimeira de fevereiro:

“A Assembleia refletiu sobre as orientações vindas do encontro sobre a proteção de menores na Igreja, que decorreu em fevereiro no Vaticano, destacando os pontos principais do discurso conclusivo do Papa Francisco. A resposta eclesial deve ter as seguintes dimensões: a tutela das crianças; a seriedade impecável; uma verdadeira purificação; a formação; o reforço e verificação das diretrizes das Conferências Episcopais; o acompanhamento das pessoas abusadas; a atenção pastoral ao fenómeno crescente dos abusos no mundo digital e no turismo sexual.”

Vão ser aprovadas novas regras internas?

A segunda parte do compromisso subscrito pelos bispos sugere que deverão surgir novas regras sobre como lidar com os abusos sexuais em Portugal: “Os Bispos comprometem-se (…) a atualizar as diretrizes aprovadas pela Conferência Episcopal em 2012, tendo em conta as orientações da Santa Sé”. Porém, não foram indicados no comunicado nem adiantados pelo cardeal patriarca os detalhes quanto à data da aprovação destas alterações nem quanto à substância das mesmas.

O documento de 2012 foi aprovado depois de o cardeal norte-americano William Levada, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF, organismo do Vaticano responsável pelos casos de abuso sexual) ter enviado uma carta a todos os presidentes das conferências episcopais do mundo sobre o assunto. Na carta, datada de 3 de maio de 2011, Levada lembrava a decisão do Papa Bento XVI de rever as normas sobre os delitos mais graves no âmbito do Código do Direito Canónico, atribuindo à CDF a jurisdição destes casos, na sequência do escândalo que surgiu em 2009 na Irlanda.

“É conveniente que cada Conferência Episcopal prepare umas linhas orientadoras com o propósito de ajudar os bispos da conferência a seguir procedimentos claros e coordenados ao lidar com os casos de abuso”, lia-se na carta, a que foi anexada uma proposta de linhas orientadoras que cada conferência episcopal deveria adaptar à sua realidade.

O cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, é o atual presidente da Conferência Episcopal Portuguesa

Getty Images

Os bispos portugueses seguiram as indicações e fizeram aprovar em 2012 um extenso documento que tem vindo a ser classificado pelos bispos como um dos mais completos em todo o mundo.

Relativamente a um dos temas mais polémicos — o da obrigatoriedade ou não de denunciar os casos às autoridades civis —, o documento de 2012 indica aos bispos o “aconselhamento da vítima ou denunciantes a promover a participação imediata dos factos às autoridades civis competentes”, e acrescenta que “cada pessoa jurídica canónica cooperará com a sociedade e com as respetivas autoridades civis; tomará em atenção todas as indicações que lhe cheguem e responderá com transparência e prontidão às autoridades competentes em qualquer situação relacionada com abuso de menores, na salvaguarda dos direitos das pessoas, incluindo o seu bom nome e o princípio da presunção de inocência”.

Porém, não refere nenhuma obrigação de os próprios bispos se dirigirem às autoridades civis para fazer a denúncia — nem legal nem moral. Vários elementos da Cúria Romana têm destacado a “obrigação moral” dos bispos em denunciarem os casos, nos países em que não existe obrigação legal. O padre alemão Hans Zollner, organizador da cimeira de fevereiro e um dos homens fortes do Papa Francisco para o combate aos abusos, disse em entrevista ao Observador que os bispos têm uma “enorme obrigação moral” de denunciar os abusos à polícia. E o cardeal norte-americano Seán O’Malley, presidente da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores, repetiu a ideia de “obrigação moral” na cimeira de fevereiro.

Porém, nesta quinta-feira, quando questionado sobre quais as alterações a ser feitas ao documento e, particularmente, se a nova formulação das normas irá incluir a denúncia obrigatória, D. Manuel Clemente disse apenas, e sem entrar em detalhes, que será feito “tudo o que vá no sentido da colaboração estrita e direta com as autoridades civis”, acrescentando, porém, que “há realidades que são do foro interno”, como “o que se passa no sacramento da confissão”. Ou seja, fica totalmente afastada a possibilidade de um padre ou bispo denunciar à polícia um caso de que tenha tido conhecimento durante a confissão.

Perante a insistência dos jornalistas sobre as novas regras, o cardeal patriarca de Lisboa não avançou muito, repetindo que se irá fazer “tudo o que for necessário, tendo em conta que o valor maior é a proteção da pessoa que foi abusada”.

Também o estudo e divulgação de dados estatísticos sobre os casos de abusos sexuais no país permanecerá, para já, uma incógnita. Na cimeira de fevereiro, o cardeal alemão Reinhard Marx, um dos oradores, apresentou aos bispos de todo o mundo quatro pontos concretos sobre como aumentar a transparência da Igreja na gestão destes casos. Além de defender limites à aplicação do segredo pontifício nas situações de abuso sexual, Marx apelou ainda ao “anúncio público das estatísticas sobre o número de casos” para evitar a “desconfiança institucional” que “conduz a teorias da conspiração”, e ainda a divulgação pública dos procedimentos judiciais da Igreja.

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Mas, questionado sobre se isto irá ser feito em Portugal, D. Manuel Clemente rejeitou para já a divulgação de detalhes estatísticos, embora tenha admitido a existência de números estudados. “Nas nossas dioceses, não chegámos lá a olho. Nós vamos sabendo o que é que aconteceu, e tudo o que precisar de ser tratado será tratado, mas não posso dizer mais do que isto”, afirmou o cardeal. A última vez que a Conferência Episcopal Portuguesa divulgou números foi em fevereiro, antes da cimeira no Vaticano, quando o porta-voz da CEP, padre Manuel Barbosa, admitiu que tinham sido investigadas “uma dezena” de denúncias entre 2001 e 2019.

Por agora, fica o compromisso dos bispos em criar “instâncias” para acompanhar os casos de abuso e em “atualizar” as regras internas. Só nos próximos meses será possível perceber como é que estes dois compromissos se materializam na prática, uma vez que, para já, ainda há mais perguntas do que respostas.

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