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Durante quase dez anos, o arcebispo alemão Georg Gänswein esteve na sombra de uma relação inédita entre dois papas — e agora revela os detalhes da tensão entre Francisco e Bento XVI

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Durante quase dez anos, o arcebispo alemão Georg Gänswein esteve na sombra de uma relação inédita entre dois papas — e agora revela os detalhes da tensão entre Francisco e Bento XVI

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Os erros de Francisco e a falta de confiança em Ratzinger. Lemos o livro do secretário de Bento XVI, que revela a tensão entre os dois papas

Georg Gänswein, o secretário particular de Bento XVI, publica esta quinta-feira um livro que revela uma relação tensa com o Papa Francisco. O Observador já leu o livro e conta os principais detalhes.

Georg Gänswein esteve ao lado de Joseph Ratzinger quase três décadas. O padre alemão que agora está no olho do furacão na Igreja Católica conheceu o cardeal Ratzinger, à época prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em 1995, durante uma conversa de circunstância no Colégio Alemão em Roma, onde Gänswein já vivia havia dois anos, desde que se mudara para o Vaticano para trabalhar na Cúria Romana — o governo mundial da Igreja Católica.

No ano seguinte, Gänswein juntou-se à equipa de Ratzinger na Doutrina da Fé, onde se destacou entre os funcionários da pesada instituição que, como herdeira da antiga Inquisição, é responsável pela manutenção dos preceitos da fé católica. Em 2003, Ratzinger convidou-o para ser o seu secretário particular, um cargo que manteria até ao dia 31 de dezembro de 2022, o dia em que o Papa emérito Bento XVI morreu no Vaticano após quase uma década na sombra.

Secretário de Bento XVI vai revelar calúnias e manobras que o quiseram denegrir

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Apenas dois anos depois de se tornar secretário particular de Joseph Ratzinger, em 2005, Gänswein viu o seu chefe ser eleito Papa e suceder a João Paulo II. O novo pontífice, Bento XVI, levou Gänswein consigo para o palácio apostólico e, quando o Papa alemão fez história ao renunciar ao pontificado, em 2013, por considerar que não tinha forças para continuar a conduzir a Igreja Católica num tempo especialmente complexo, foi Gänswein quem, em lágrimas, apagou as luzes do gabinete papal pela última vez antes de Bento XVI deixar o Vaticano de helicóptero.

Bento XVI voltaria ao Vaticano para viver a última década da sua vida, já como emérito, no mosteiro Mater Ecclesiae, nos jardins vaticanos, a poucos metros dos aposentos do novo pontífice. Durante a última década, Gänswein manteve-se ao lado de Bento XVI como seu secretário particular, mas acumulando as funções com o cargo de prefeito da Casa Pontifícia de Francisco. Por este motivo, Gänswein foi visto como uma peça instrumental nos esforços do Vaticano para garantir que os dois papas não eram oponentes ideológicos, mas antes colaboradores.

Mas já há bastante tempo que se sabia que Gänswein estava a preparar um livro de memórias que só veria a luz do dia após a morte de Bento XVI.

Assim que o Papa emérito morreu, no último dia do ano de 2022, começou a circular nos meios eclesiásticos a informação de que o prometido livro de Gänswein estava prestes a ser publicado — e, segundo as primeiras informações adiantadas pelos jornais italianos, chamar polémica à obra seria subestimar a relevância do livro. Entre acusações de falta de confiança entre os dois papas e críticas ao modo como Francisco geriu a relação com Bento XVI, o livro de Gänswein, intitulado Nient’altro Che La Verità: La mia vita al fianco di Benedetto XVI (em português, “Nada Mais do Que a Verdade: A minha vida ao lado de Bento XVI”) abriu as portas a muitas especulações.

O livro de Georg Gänswein, escrito com o apoio do jornalista Saverio Gaeta, é publicado esta quinta-feira em Itália pela editora Piemme

Aliás, Gänswein assume abertamente no livro que, provavelmente, o Papa Francisco só o manteve no cargo de prefeito da Casa Pontifícia durante tanto tempo por respeito a Bento XVI, a quem chamava com frequência um “avô sábio”. Depois da morte, reina a incerteza sobre o futuro de Gänswein. Uma coisa é certa: esta segunda-feira, Georg Gänswein reuniu-se em privado com o Papa Francisco no Vaticano e, embora a Santa Sé não tenha revelado qualquer detalhe sobre o conteúdo do encontro, a sua realização parece querer dizer que haverá novidades sobre o destino de Gänswein em breve.

O controverso livro, sobre o qual o Vaticano tem recusado fazer qualquer comentário, tem provocado forte contestação entre os aliados de Francisco e alimentado a especulação de que Gänswein não ficará muito tempo no Vaticano — até porque, depois da morte de Bento XVI, o arcebispo alemão poderá transformar-se no centro de gravidade da ala mais conservadora da Igreja Católica. É nele que muitos dos cardeais mais conservadores depositam confiança e é ele quem, a partir dos bastidores, poderá liderar um lóbi para angariar votos destinados a eleger um Papa conservador no próximo conclave, após uma eventual renúncia de Francisco.

O livro sai para as livrarias nesta quinta-feira, dia 12 de janeiro, apenas em italiano, editado pela Piemme — e, até esta quarta-feira, ainda não havia notícias sobre uma eventual publicação em Portugal. O Observador teve acesso ao livro antes da publicação e revela agora alguns dos pormenores mais relevantes da obra do antigo secretário particular de Bento XVI, que dá conta de uma relação mais tensa do que o que se supunha entre os dois papas e que poderá mostrar-se decisiva para os próximos anos da Igreja Católica.

“Um farol de competência teológica, de clareza doutrinal e de sabedoria profética”

Gänswein começa o livro com um curto prólogo em que conta o episódio da sua escolha como secretário particular de Bento XVI, em 2003. “Quando, em fevereiro de 2003, o cardeal Joseph Ratzinger me pediu para ser seu secretário particular, apresentando-me o meu novo papel na Congregação para a Doutrina da Fé, fez notar que ambos éramos apenas ‘provisórios’. Perante o espanto dos funcionários com esta descrição um tanto estranha, explicou-nos que pretendia abandonar o mais rapidamente possível a responsabilidade da Congregação, depois de ter carregado este pesado fardo durante duas décadas”, escreve Gänswein.

Para o padre alemão, aquele “provisório” significava uma única coisa: “Ele seria prefeito por um breve período e, por conseguinte, eu, pelo mesmo tempo, o seu secretário.” Porém, a “natureza provisória tornou-se uma presença estável durante muitos anos, até à sua morte”.

“Desde o dia 1 de março de 2003, fui o seu secretário particular nos dois anos seguintes, enquanto ele ainda era prefeito do antigo Santo Ofício, até à morte do Papa João Paulo II, em abril de 2005. Assim permaneci durante os seus oito anos de pontificado, até à sua renúncia em 2013, e também depois disso, durante os restantes anos da sua vida como ‘Papa emérito’”, lembra Gänswein.

"Nos primeiros meses de 2005, quando as condições de saúde de João Paulo II se agravavam constantemente, o cardeal Ratzinger viu-se projetado para o primeiro plano em alguns eventos públicos muito significativos."
Georg Gänswein

O antigo secretário particular de Ratzinger lembra estas duas décadas como experiências que lhe “permitiram conhecer a verdadeira face de um dos maiores protagonistas da história do século passado, muitas vezes denegrido pela narrativa dos meios de comunicação social e dos detratores, que lhe chamavam ‘Panzerkardinal’ ou ‘Rottweiler de Deus’, para criticar convicções que, na realidade, não faziam mais do que expressar a sua profunda fidelidade à tradição e ao Magistério da Igreja e a defesa da fé católica”.

Durante os últimos dez anos, Gänswein acumulou as funções de secretário particular de Bento XVI com as de prefeito da Casa Pontifícia, o que lhe deu, como conta no prólogo do livro, “a oportunidade de participar em todos os mais importantes e históricos acontecimentos eclesiais das últimas duas décadas”. Foram, diz Gänswein, “momentos de alegria e desilusão, entusiasmo e fadiga”, que se foram alternando. “Não faltaram, certamente, problemas”, conta o alemão. “Basta pensar no drama dos abusos sexuais no clero ou nas dificuldades com as finanças do Vaticano.”

Segundo Gänswein, as páginas do seu livro “contêm um testemunho pessoal da grandeza de um homem gentil, de um grande estudioso, de um cardeal e de um Papa que fez a história do nosso tempo e que deve ser lembrado como um farol de competência teológica, de clareza doutrinal e de sabedoria profética”. Mas, acrescenta o alemão, o livro é também “um relato em primeira mão que procura iluminar alguns aspetos incompreendidos do seu pontificado e descrever, a partir de dentro, o verdadeiro ‘mundo do Vaticano’”.

A morte de João Paulo II, o conclave e a camisola de malha preta

Ao longo de 331 páginas, organizadas em nove capítulos, o arcebispo Georg Gänswein apresenta um pormenorizado relato da vida e do pontificado de Bento XVI. Durante os primeiros capítulos do livro, Gänswein procura dar luzes sobre a vida do cardeal Ratzinger antes da eleição pontifícia, classificando-o como “filósofo e teólogo” e descrevendo a vida de Ratzinger como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, num exercício que o apresenta como uma figura de profunda densidade teológica e com uma grande preparação para o pontificado.

No quarto capítulo, Gänswein descreve os dias de Ratzinger no agitado período da doença e morte de João Paulo II e do conclave de 2005. Como explica o antigo secretário de Bento XVI, “nos primeiros meses de 2005, quando as condições de saúde de João Paulo II se agravavam constantemente, o cardeal Ratzinger viu-se projetado para o primeiro plano em alguns eventos públicos muito significativos”. Isto porque Ratzinger, além de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, era também o decano do Colégio dos Cardeais, pelo que era a ele quem competia a execução de um conjunto de tarefas na ausência física do Papa.

Um dos eventos mais notáveis foi a celebração da tradicional Via Sacra no Coliseu de Roma, um acontecimento anualmente presidido pelo Papa que, em 2005, aconteceu sem a presença física de João Paulo II — que acompanhou a celebração pela televisão, já num estado de saúde muito debilitado.

Coube a Ratzinger presidir a essa celebração e escrever as meditações, de acordo com a vontade do Papa polaco. “Ratzinger aceitou o seu desejo com grande disponibilidade, dedicando-se intensamente à elaboração das meditações e orações”, lembra Gänswein no livro, assinalando também que aqueles discursos de Ratzinger foram um retrato perfeito do pensamento do cardeal alemão para a Igreja Católica e contribuíram decisivamente para a escolha que seria feita pelos cardeais poucos meses depois.

Gänswein também esteve presente no interior do Vaticano durante o conclave de abril de 2005, que resultou na eleição de Ratzinger como Papa, acompanhando-o nos momentos fora das votações, e lembra no livro o momento em que ouviu o aplauso no interior da Capela Sistina. Naquele momento, só lhe veio uma coisa à cabeça: que, nessa manhã, Ratzinger tinha tido frio e decidira vestir uma camisola de malha preta por baixo das vestes cardinalícias. Gänswein foi de imediato ter com o decano dos mestres de cerimónias e disse-lhe: se o novo Papa for o cardeal Ratzinger, peçam-lhe para tirar a camisola de malha. Mas o decano, no meio da emoção, esqueceu-se do pedido — e as mangas da camisola preta por baixo da batina branca tornaram-se numa imagem inesquecível do momento em que Bento XVI apareceu pela primeira vez na varanda da Basílica de São Pedro.

Cardinal Joseph Ratzinger is Named as Pope Benedict XVI - April 19, 2005

O Papa Bento XVI, no momento em que apareceu pela primeira vez na varanda da Basílica de São Pedro, ainda com a camisola de malha preta vestida

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Ao longo dos capítulos seguintes, Gänswein descreve a vida do Papa Bento XVI, os obstáculos que sentiu no governo da Igreja, os vários escândalos que marcaram o seu pontificado, a renúncia histórica, a convivência entre os dois papas e os últimos anos de vida de Bento XVI no mosteiro Mater Ecclesiae. Muito daquilo que Gänswein conta no livro sobre assuntos como a renúncia de Bento XVI em 2013, a crise dos abusos sexuais de menores, os escândalos financeiros no Banco do Vaticano e até sobre o misterioso desaparecimento da jovem Emanuela Orlandi, em 1983 no Vaticano, não é novidade e corresponde àquilo que já era conhecido sobre a atuação de Bento XVI nestes assuntos. As grandes novidades do livro de Gänswein encontram-se, essencialmente, nos segmentos em que relata a vida de Bento XVI como Papa emérito e, sobretudo, a relação de Bento XVI com o seu sucessor — onde são deixadas duras críticas ao Papa Francisco.

Bento XVI: “Parece que o Papa Francisco já não confia em mim”

Uma das mais contundentes críticas incide sobre o período em que os dois papas coexistiram no Vaticano. Depois da renúncia de Bento XVI, Georg Gänswein passou a ter dois empregos dentro da cidade do Vaticano: além de se manter como secretário particular do emérito Bento XVI, ficaria também como prefeito da Casa Pontifícia do Papa Francisco, uma espécie de chefe da casa civil, responsável por manter em funcionamento os compromissos oficiais do Papa. Nesse papel, Gänswein tornou-se testemunha privilegiada da inédita convivência civilizada entre dois papas — um tema que seria imortalizado no cinema com o filme da Netflix “Dois Papas” (2019).

Gänswein foi também considerado, durante muito tempo, como um símbolo dessa convivência, funcionando como elo de ligação entre os dois homens de branco. Porém, ficamos agora saber que não foi bem assim.

“A esperança de Bento XVI de que eu fosse o elo entre ele e o seu sucessor era um pouco ingénua, porque, ao fim de apenas alguns meses, tive a impressão de que entre mim e o novo pontífice não era possível criar o oportuno clima de confiança, necessário para poder cumprir tal compromisso de modo adequado”, escreve Gänswein, que diz acreditar que foi mantido no cargo “essencialmente por respeito à nomeação feita por Bento XVI”. E mais: durante o exercício das suas funções, Gänswein diz ter sido várias vezes colocado em segundo plano. O Papa Francisco terá mesmo dito a Gänswein que podia tirar “o dia de folga” e que a sua companhia não era necessária durante uma visita a uma comunidade religiosa em Roma, em 2014.

Gänswein revela que disse a Francisco que se tinha sentido humilhado e que o Papa lhe pediu desculpa, mas não sem acrescentar “que as humilhações fazem muito bem”.

Pope Francis Holds His Weekly Audience

O arcebispo Georg Gänswein, depois da renúncia de Bento XVI, manteve-se como prefeito da Casa Pontifícia do Papa Francisco — mas diz que nunca teve com ele uma relação de confiança

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Outro exemplo dado por Gänswein diz respeito ao apartamento a que, como prefeito da Casa Pontifícia, teria direito dentro do Palácio Apostólico. Segundo Gänswein, o Papa Francisco — que vive com outros religiosos na Casa de Santa Marta — nunca o deixou ocupar esse apartamento, atribuindo-o ao arcebispo Paul Gallagher, da Secretaria de Estado. Para Gänswein, aquele afastamento físico do Palácio Apostólico, que o deixou a residir no mosteiro Mater Ecclesiae com Bento XVI, foi apenas a preparação para um conjunto de “desenvolvimentos posteriores” que ditaram o seu afastamento total da esfera de confiança do Papa Francisco.

O grande desentendimento entre Gänswein e o Papa Francisco deu-se em janeiro de 2020, quando eclodiu no Vaticano uma enorme polémica em torno de um livro supostamente assinado por Bento XVI. O contexto era delicado: em outubro de 2019, o Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia tinha aberto a porta, no documento com recomendações ao Papa, à possibilidade de ordenar homens casados como padres para fazer frente à falta de sacerdotes naquela região do mundo, o que abria uma espinhosa discussão sobre o celibato dos padres; ainda na primeira metade de 2020, era esperado um documento do Papa Francisco sobre o assunto.

Polémica no Vaticano. Cardeal assegura que escreveu livro com Bento XVI, mas muda assinatura em futuras edições

Pelo meio, o cardeal conservador Robert Sarah fez sair um livro, supostamente assinado por ele e pelo Papa emérito Bento XVI, com uma defesa do celibato sacerdotal como indispensável e inegociável. A assinatura de Bento XVI foi, naquela altura, percebida como uma ingerência inaceitável de Ratzinger no processo de decisão do seu sucessor. Porém, poucos dias depois, veio a perceber-se que tudo não tinha passado de uma manipulação orquestrada por Sarah: o cardeal tinha, de facto, trocado correspondência com Bento XVI sobre o assunto na preparação do livro, mas Ratzinger não lhe tinha dado autorização para usar o texto na íntegra e para colocar a sua assinatura na capa. Foi a Gänswein que coube a tarefa de vir a público esclarecer o caso, mas a polémica já tinha aberto uma ferida difícil de sarar entre os dois papas.

Agora, com o livro de Georg Gänswein, ficamos a saber que aquele caso foi, de facto, a gota de água numa relação cada vez mais tensa. “Depois daqueles dias tórridos de polémica em torno do livro do cardeal Sarah, na segunda-feira, dia 20 [de janeiro], pedi ao Papa Francisco para falar com ele e ele agendou para o final da manhã, no fim das audiências. Forneci-lhe os detalhes do que tinha acontecido e pedi-lhe conselhos sobre o que fazer no futuro, porque nem sempre era fácil para mim evitar problemas como o que acabara de acontecer”, lembra Gänswein. “Ele olhou para mim com uma expressão séria e disse, surpreendentemente: ‘A partir de agora, fica em casa. Acompanha Bento XVI, que precisa de ti, e faz de escudo.’”

Gänswein diz que ficou “chocado e sem palavras” quando ouviu o Papa, mas Francisco não lhe deu hipótese de retorquir: “Continuas prefeito, mas a partir de amanhã não voltas ao trabalho.” Gänswein respondeu-lhe: “Não consigo entender, não aceito humanamente, mas adapto-me em obediência.” Ao que o Papa devolveu: “Essa é uma bela palavra. Sei disso porque a minha experiência pessoal é a de que ‘aceitar em obediência’ é uma coisa boa.”

Archbishop Georg Gänswein prays in front of the body of

O arcebispo Georg Gänswein no velório do Papa emérito Bento XVI, na semana passada em Roma

SOPA Images/LightRocket via Gett

Segundo o relato de Gänswein, o Papa Francisco levantou-se e saiu, garantindo que não era preciso fazer nada: ele continuaria no cargo, mas já não era necessário no Palácio Apostólico. Gänswein voltou ao mosteiro e contou o que tinha acontecido a Bento XVI durante o almoço. Segundo o antigo secretário particular do Papa alemão, a resposta de Bento XVI terá sido, num misto de ironia e seriedade: “Parece que o Papa Francisco já não confia em mim e quer que sejas o meu guardião!” Gänswein terá então respondido: “É verdade. Mas devo ser porteiro ou carcereiro?”

A ausência de Gänswein foi notada publicamente e a imprensa italiana começou a especular que algo de errado se passava. Gänswein escreveu ao Papa Francisco a pedir para voltar ao trabalho, mas o pedido foi sempre negado. A dada altura, até o próprio Bento XVI escreveu a Francisco, dizendo-lhe: “O arcebispo Gänswein sofre profundamente e cada vez mais sob o peso do seu estado, sem perspetiva de resolução. Atrevo-me, portanto, a pedir a Vossa Santidade que esclareça a situação com uma conversa paterna. Da minha parte, só posso dizer que o arcebispo Gänswein não participou da elaboração do meu contributo no livro do cardeal Sarah. Tendo visto o projeto do cardeal, que parecia fazer de mim um coautor do livro, de uma perspetiva que podia insinuar uma possível oposição entre mim e o seu ensinamento pontifício, Gänswein entendeu imediatamente a gravidade dessa hipótese e esclareceu com forte insistência que essa apresentação era inaceitável. Agora, sente-se atacado por todos os lados e precisa de uma palavra paterna.”

No entanto, Gänswein manteve-se sempre afastado das funções — e o Papa Francisco terá até justificado esta opção com a sua própria experiência na Argentina. Segundo Gänswein, Francisco disse-lhe que, na Argentina, “as vezes em que foi parado ajudaram-no a amadurecer”. Já em 2022, quando publicou a constituição com que colocou em vigor a nova organização da Cúria Romana, o Papa Francisco reduziu significativamente as funções do prefeito da Casa Pontifícia, o que, segundo Gänswein, permitiu manter o alemão afastado sem que ficassem tarefas por cumprir.

"Parece que o Papa Francisco já não confia em mim e quer que sejas o meu guardião!"
Papa emérito Bento XVI, segundo Georg Gänswein

Reunião com Anthony Hopkins, do filme “Dois Papas”, não era “apropriada”

Num dos segmentos do livro em que descreve a vida de Bento XVI como Papa emérito no mosteiro Mater Ecclesiae, Gänswein conta que procurou manter Ratzinger a par daquilo que o mundo cultural produzia sobre a realidade do papado. Gänswein informou o Papa emérito das séries de televisão The Young Pope e The New Pope (em que Jude Law e John Malkovich fazem de Papa), bem como do filme “Dois Papas”, da Netflix, mas diz que Bento XVI não deu “atenção particular” ao assunto.

Gänswein conta também que, quando o filme “Dois Papas” foi rodado em Roma, o ator Anthony Hopkins, que interpretou o papel de Bento XVI no filme, quis conhecer o Papa emérito. “Mas isso não foi considerado apropriado, pois esse encontro seria certamente divulgado, talvez citado como uma aprovação implícita do argumento, que propõe como verdadeiros acontecimentos que nunca aconteceram”, diz Gänswein.

“Espanto”, “perplexidade” e “surpresa”. Bento XVI discordou de Francisco no caso dos divorciados

Mas logo no início do pontificado surgiram divergências entre as duas figuras da Igreja. “Bento XVI lia com atenta curiosidade no Osservatore Romano tudo o que seu sucessor fazia e dizia”, escreve Gänswein num capítulo dedicado à vida de Bento XVI como papa emérito. “Recordo que ele ficou imediatamente impressionado com as palavras do seu primeiro Angelus, a 17 de março de 2013, quando o Papa Bergoglio citou um livro sobre a misericórdia escrito pelo cardeal Walter Kasper, também porque ele próprio, por exemplo no Regina Caeli de 30 de março de 2008, tinha afirmado com determinação que ‘a misericórdia é o núcleo central da mensagem evangélica, é o próprio nome de Deus’”.

Porém, esta admiração de Bento XVI pelo seu sucessor começou gradualmente a desvanecer-se com alguns episódios.

Uma das primeiras “crises” citadas por Gänswein prende-se com o polémico Sínodo dos Bispos sobre a família, em 2015, do qual resultaria a ainda mais polémica exortação apostólica Amoris Laetitia, documento publicado em 2016 pelo Papa Francisco e que abriu a porta à possibilidade de os divorciados que voltaram a casar poderem comungar. (Toda esta questão daria origem a uma grande controvérsia na Igreja Católica, incluindo na Igreja portuguesa com a intervenção do cardeal-patriarca de Lisboa, que o Observador resumiu, na altura, em oito perguntas e respostas que pode recordar aqui.)

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“Entre 2014 e 2015, o Papa emérito acompanhou com interesse as duas fases do Sínodo sobre a família e, com certa clarividência, percebeu, muito antes da abertura da Assembleia (…), que as linhas teológico-pastorais já tinham sido amplamente indicadas no relatório apresentado em fevereiro de 2014 pelo cardeal Walter Kasper ao Consistório Extraordinário dos Cardeais”, escreve Gänswein.

“Bento XVI conhecia o cardeal alemão há décadas e às vezes até tinha disputas teológicas com ele, de modo que avaliava com alguma preocupação o que Kasper havia dito”, acrescenta Gänswein. Francisco tinha convidado Kasper, um cardeal que defendia que os divorciados que voltaram a casar não devem ser excluídos dos sacramentos (ao contrário do que a doutrina católica rigidamente prescreve), para falar aos cardeais e para apresentar um conjunto de tópicos de reflexão para os homens que iriam participar no sínodo onde essa possibilidade seria discutida. Bento XVI olhou para este convite feito pelo seu sucessor com “espanto”.

“De facto, aquele texto apresentava-se como um farol para o debate subsequente da assembleia e o espanto de Bento XVI deveu-se à escolha do Papa Francisco de fazer pronunciar um discurso daqueles, o que teria, obviamente, condicionado de alguma maneira os padres sinodais”, escreve Gänswein. “A atenção do Papa emérito deveu-se também ao facto de o cardeal Kasper o ter questionado diretamente, tanto como prefeito quanto como Papa”, acrescenta Gänswein, referindo-se a uma passagem do discurso de Kasper em que o cardeal alemão fez uma interpretação mais liberal das palavras de Bento XVI, assinalando que os divorciados que voltaram a casar poderiam ter acesso a algum tipo de regresso aos sacramentos.

"Ao acompanhar o debate que se desenvolveu nos meses seguintes, [Bento XVI] ainda não compreendia porque é que se tinha deixado pairar sobre aquele documento uma certa ambiguidade, permitindo interpretações não unívocas."
Georg Gänswein

Estava lançado o problema de discutir o legado de Bento XVI com o Papa emérito ainda vivo e lúcido, a assistir a tudo pela televisão e pelos jornais. “Ratzinger nunca recuou diante de tais questões”, afirma agora Gänswein, lembrando as palavras de Bento XVI, que considerava que a tradução da linguagem eclesial em linguagem acessível ao “homem secularizado” não poderia admitir “compromissos com a verdade”.

Do Sínodo da Família de 2015 viria a sair a exortação apostólica Amoris Laetitia, um dos documentos mais controversos do pontificado do Papa Francisco. No documento, Francisco recorda a doutrina católica sobre a família, incluindo a indissolubilidade do matrimónio, mas sublinha, a dada altura, que “um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas”.

“Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio de uma situação objetiva de pecado — mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente —, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja”, continuava Francisco. O Papa referia-se naquele ponto, entre outros, às situações dos católicos casados pela Igreja que, tendo-se divorciado, tornaram a casar sem que lhes tenha sido declarado nulo o matrimónio.

Naquele ponto, o Papa Francisco colocou uma chamada para uma nota de rodapé, onde se lia: “Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos.” Francisco acrescentava mais, lembrando as suas próprias declarações na exortação apostólica Evangelii gaudium, de 2013: “Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor” e a Eucaristia “não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos”.

Estava aberta a polémica. Para os mais progressistas, estava ali plasmada a vontade do Papa Francisco de mostrar uma inédita abertura ao mundo contemporâneo, reconhecendo que as pessoas divorciadas que voltaram a casar podiam continuar a ser fiéis católicos de pleno direito, acedendo aos sacramentos; para os tradicionalismos, Francisco tinha lançado uma afronta sem precedentes à sacralidade da comunhão e estava, possivelmente, a incorrer numa heresia.

Agora, com o livro de Gänswein, ficamos a saber que Bento XVI também não gostou de ler aquele documento. “Depois da publicação, em março de 2016, da exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, amadureceu nele alguma perplexidade ao ler o texto, pois, apreciando muitas passagens, interrogou-se sobre o significado de algumas notas, que geralmente indicam a citação de uma fonte, ao passo que neste caso exprimiam conteúdos significativos”, escreve o seu antigo secretário particular.

Pope Attends Holy Mass  For The Closing Of Extraordinary Synod

O arcebispo Georg Gänswein foi o secretário particular de Bento XVI até à morte do Papa emérito

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“Ao acompanhar o debate que se desenvolveu nos meses seguintes, [Bento XVI] ainda não compreendia porque é que se tinha deixado pairar sobre aquele documento uma certa ambiguidade, permitindo interpretações não unívocas”, acrescenta Gänswein, referindo-se à grande confusão teológica que emergiu nos meses seguintes à publicação da Amoris Laetitia — documento no qual não eram dadas indicações explícitas sobre como deveria ser operacionalizada esta aproximação entre a Igreja e os divorciados recasados. Para Francisco, era imperioso acabar com a ideia de que a Igreja fechava radicalmente as portas a estas pessoas, que segundo a doutrina católica não estão em estado de graça — mas a inclusão daquela pequena nota de rodapé com a admissão do acesso aos sacramentos gerou nos setores mais conservadores uma inquietação: era o fim da doutrina? Nos meses depois da publicação do texto, chegaram perguntas de bispos de todo o mundo sobre o que deviam fazer perante estes casos, numa altura em que os padres confessores se viam aos papéis com o surgimento de múltiplos casos de pessoas divorciadas que queriam comungar.

Durante este debate, os bispos de Buenos Aires escreveram uma carta pública aos padres da região, instruindo-os sobre como proceder neste tipo de casos e explicando que o documento do Papa Francisco abria a porta à possibilidade de os divorciados recasados comungarem, desde que o padre confessor entendesse que isso seria positivo para a integração desses fiéis na Igreja.

A carta dos bispos argentinos foi bem recebida pelo Papa Francisco, que disse sobre aquele texto: “O escrito é muito bom e explicita cabalmente o sentido do capítulo VIII de Amoris laetitia. Não há outras interpretações. Estou seguro de que fará muito muito bem. Que o Senhor lhes retribua este esforço de caridade pastoral.” Além disso, o Papa mandou que aquela carta dos bispos argentinos fosse publicada das atas oficiais da Santa Sé, dando um caráter normativo àquele documento para todo o mundo. De todas as interpretações que tinham surgido, aquela — manifestamente mais progressista — tinha sido a única aprovada pelo Papa.

“Há uma campanha organizada pelos ultraconservadores para ferirem de morte o Papa Francisco”

Para Bento XVI, esta atitude de Francisco também não foi correta, de acordo com o livro do seu secretário particular. “Certamente, Bento XVI nunca escreveu nada a propósito do assunto, nem respondeu às perguntas que lhe foram feitas, por isso teria sido uma intromissão ilícita”, escreve Gänswein. “No entanto, tendo em conta algumas observações fugazes, entendo que a sua sensibilidade não partilhou da estratégia de abrir mão de várias interpretações para depois favorecer uma, como foi evidenciado com a publicação na Acta Apostolicae Sedis, órgão oficial da Santa Sé, da carta enviada pelo Papa Bergoglio aos bispos argentinos, na qual se afirmava que o seu comentário sobre a exortação ‘é muito bom e explica plenamente o capítulo oitavo da Amoris laetitia. Nenhuma outra interpretação é possível.’”

A polémica em torno daquele documento do Papa Francisco aprofundou-se em setembro de 2016, seis meses depois da publicação da exortação apostólica Amoris Laetitia, quando um grupo de quatro cardeais ultraconservadores (o célebre norte-americano Raymond Burke, considerado frequentemente o líder da oposição ao Papa Francisco, os alemães Walter Brandmüller e Joachim Meisner e o italiano Carlo Caffarra) escreveram uma carta ao Papa Francisco pedindo-lhe que clarificasse a confusão criada pelo seu documento.

O caso das dubia — processo formal em que um bispo pede ao Vaticano um esclarecimento sobre um ponto da doutrina — aprofundou a já latente divisão entre conservadores e progressistas na Igreja Católica, com os mais tradicionalistas a acantonar-se em torno de Burke e os progressistas em torno de Francisco. O facto de o Papa Francisco ter deixado os cardeais sem resposta enfureceu ainda mais o setor conservador e os cardeais divulgaram a carta à imprensa conservadora católica. Ainda sem resposta, o cardeal Burke ameaçou lançar um procedimento de correção formal ao Papa, algo que já não acontecia há vários séculos, e no ano seguinte um conjunto de teólogos conservadores acusou formalmente o Papa Francisco de heresia — o que acabou com todas as dúvidas de que o Vaticano estava, definitivamente, em clima de guerra aberta por motivos doutrinais.

Teólogos conservadores acusam papa Francisco de espalhar a heresia

Segundo conta agora o arcebispo Georg Gänswein, o Papa emérito Bento XVI acompanhou toda esta polémica em silêncio, mas com grande desgosto em relação à atitude do seu sucessor.

“O seu silêncio relativamente a este caso tornou-se ainda mais rigoroso quando foi tornada pública a carta das dubia, que os quatro cardeais Walter Brandmüller, Raymond L. Burke, Carlo Caffarra e Joachim Meisner enviaram ao Papa Francisco em setembro de 2016, difundindo-a depois de alguns meses sem terem recebido resposta”, escreve Gänswein. “Nenhum deles teve a oportunidade de falar com o Papa emérito sobre isso, nem naquele período nem depois, quando na primavera de 2017 os cardeais voltaram à carga pedindo ao Papa Francisco uma audiência de esclarecimento. Bento XVI ficou apenas humanamente surpreendido com a ausência de qualquer indício de resposta do pontífice, não obstante de Francisco normalmente se mostrar disponível para se encontrar e falar com qualquer pessoa.”

“Lettergate”. Bento XVI não gostou que o Vaticano divulgasse uma carta sua truncada

Outro caso que marcou a convivência entre o Papa emérito Bento XVI e o Papa em funções Francisco ficaria conhecido como “lettergate”, por envolver, justamente, a divulgação de uma carta escrita por Bento XVI. O caso, como detalhou o Observador em março de 2018, resultaria na demissão do mais alto responsável do departamento de comunicação do Vaticano, Dario Viganò, e resume-se em poucas linhas: a editora do Vaticano decidiu editar uma compilação de textos sobre a formação filosófica e teológica do Papa Francisco, por ocasião do quinto aniversário do pontificado, e pediu ao Papa emérito Bento XVI que escrevesse um breve comentário para a introdução da coletânea. Contudo, Bento XVI recusou escrever o texto, numa carta enviada a Dario Viganò, responsável pelo projeto.

A carta foi tornada pública em 13 de março de 2018 pelo próprio Vaticano, mas truncada e descrita apenas como uma carta assinada por Bento XVI por ocasião da publicação da coleção de livros. Nessa carta, lia-se que Bento XVI lamentava os “preconceitos tontos” quanto a uma eventual falta de profundidade teológica em Francisco e aplaudia a iniciativa, que demonstrava “cabalmente que o Papa Francisco é um homem com uma profunda formação filosófica e teológica”, ao mesmo tempo que evidenciava “a continuidade interna entre os dois pontificados, não obstante todas as diferenças de estilo e de temperamento”.

Responsável da comunicação do Vaticano demite-se depois da polémica com carta de Bento XVI sobre Papa Francisco

O que não foi dito pelo Vaticano foi que aquela carta de Bento XVI tinha mais elementos, nomeadamente os parágrafos em que Ratzinger recusava escrever a introdução do livro devido ao facto de o Vaticano ter decidido incluir o teólogo contestatário Peter Hunermann, que tinha levado a cabo iniciativas “antipapais”, no grupo de autores convidados. “Estou certo de que podem compreender porque declinei”, escreveu Bento XVI, lembrando que Hunermann atacou “de forma virulenta” a encíclica Veratis Splendor, de João Paulo II, e a “autoridade magistral do Papa em particular sobre a teologia moral”.

Quando a controvérsia se tornou pública, o Vaticano decidiu publicar a carta na íntegra e o responsável da comunicação, Dario Viganò, apresentou a demissão.

No livro agora publicado, Georg Gänswein explica como aqueles dias foram vividos no mosteiro onde Bento XVI vivia em recolhimento. Gänswein lembra como, no final de 2017, recebeu um contacto da parte de Viganò a informá-lo de que a editora do Vaticano pretendia publicar os livros em breve e a perguntar-lhe se seria possível obter um texto da parte do Papa emérito. Quando Bento XVI recebeu a encomenda com os livros, percebeu que não poderia corresponder ao pedido, por dois motivos. “Pelo amor ao Papa Francisco, gostaria de atender ao pedido de monsenhor Viganò, mas não consigo ler adequadamente os livros, porque são muitos. Além disso, não poderia ficar calado sobre Hunermann”, terá dito Bento XVI, citado por Gänswein.

Em frente às câmaras, a relação entre o Papa emérito Bento XVI e o Papa Francisco foi sempre cordial — mas havia tensão nos bastidores

Gamma-Rapho via Getty Images

O secretário particular disse a Bento XVI que poderia então responder a Viganò, mas o Papa emérito disse-lhe que ele próprio trataria da resposta. “Pôs-se a trabalhar na redação da carta, que foi enviada a 7 de fevereiro com as palavras ‘pessoal-confidencial’ no envelope, pois Bento XVI sabia da delicadeza da questão e exigia cuidado”, escreve Gänswein. “Viganò telefonou-me a pedir a autorização para citar publicamente a carta e Bento XVI deu a sua autorização.”

Foi só no dia 12 de março que Bento XVI percebeu, ao ver o telejornal da Rai, que a carta tinha sido truncada: fotografada junto à pilha de livros, com os volumes a esconderem os parágrafos em que Bento XVI falava de Hunermann. No dia seguinte, conta ainda Gänswein, o jornalista italiano Sandro Magister divulgou o resto do texto do Papa, incluindo a passagem “menos agradável”.

“Não faço ideia de como Magister soube do texto original e não valeria a pena negar, mas infelizmente é necessário que tenha sido eu a divulgá-lo: uma mentira difamatória contra mim, que também foi espalhada por um responsável da língua alemã na Rádio Vaticana. Essa narrativa também chegou a Santa Marta [residência do Papa Francisco], alegando que eu o teria feito não apenas para prejudicar Viganò, mas também para prejudicar a reforma da Cúria iniciada pelo Papa Francisco, da qual a reestruturação da comunicação do Vaticano era uma grande parte. Assim, a partir daquele momento, foi procurada a oportunidade mais adequada para se vingarem de mim”, escreve Gänswein.

Contudo, como continua Gänswein, aqueles que conheciam Bento XVI sabiam que o antigo Papa não faria o frete de colocar a sua opinião de lado para agradar ao seu sucessor ou aos colaboradores. “Bento XVI tomou nota desta polémica, mas sem particular interesse, manifestando o seu descontentamento e incompreensão pelo engano que tinha sido perpetrado com a exibição parcial da sua carta”, escreve o antigo secretário de Bento XVI.

Gänswein revela ainda que o próprio Viganò lhe telefonou para o telemóvel, ainda em março de 2018, para tentar justificar o que tinha acontecido com a autorização concedida por Bento XVI. “Mas, obviamente, eu reagi rebatendo que tinha sido imprudentemente criada uma fake news, e desde essa altura não nos falamos”, conta Gänswein. “Francisco nunca me disse nada sobre o assunto”, acrescenta o alemão, sublinhando que a demissão de Viganò foi dolorosa para o Papa argentino.

Bento XVI considerou restrições à missa em latim um “erro” que ameaçou “tentativa de pacificação”

No dia 16 de julho de 2021, o Papa Francisco publicou um dos documentos mais marcantes do seu pontificado: um curto decreto intitulado Traditiones Custodes com o qual introduziu grandes restrições na possibilidade da realização da missa segundo o rito anterior ao Concílio Vaticano II, caracterizada pelo latim e pela colocação do sacerdote de costas para o povo. Com essa decisão, Francisco reverteu diretamente uma norma publicada em 2007 por Bento XVI, que decidiu liberalizar o recurso ao ritual antigo (que havia sido afastado na década de 1960) com o objetivo de permitir uma reaproximação entre a Igreja Católica e alguns movimentos ultraconservadores que começavam a dar sinais de radicalização.

Com os conservadores na mira, Papa Francisco restringe celebração da missa em latim

A decisão de Francisco foi vista como um ataque direto aos movimentos mais conservadores. Na altura, numa entrevista ao Observador, o bispo D. José Cordeiro, responsável pelo setor da liturgia na Igreja em Portugal, explicava que o uso do rito antigo tinha sido “instrumentalizado e transformado em bandeira por grupos que não aceitaram o Concílio Vaticano II” — daí que o Papa Francisco tenha sentido necessidade de controlar de modo mais apertado o uso daquele rito. Mas a medida esteve longe da unanimidade dentro da Igreja: entre os mais conservadores, houve duras críticas; mas, mesmo entre os mais progressistas, houve o medo de que a medida radical pudesse causar um cisma interno, devido a um crescente afastamento entre fações internas na Igreja.

A missa não é “uma peça de museu”. Como a instrumentalização da missa em latim levou o Papa a abrir guerra aos tradicionalistas

Também esta controvérsia foi acompanhada em silêncio por Bento XVI a partir do recolhimento do mosteiro Mater Ecclesiae — mas, a partir do livro de Georg Gänswein, é possível perceber agora que o Papa emérito não gostou nada do que leu naquela tarde de 16 de julho de 2021, quando abriu o jornal do Vaticano.

“Em 16 de julho de 2021, ao folhear o L’Osservatore Romano daquela tarde, Bento XVI descobriu que o papa Francisco havia dado a conhecer o motu proprio Traditiones Custodes sobre o uso da liturgia romana anterior à reforma de 1970”, recorda Gänswein. “O Papa emérito leu o documento com atenção, para entender a motivação e os detalhes das mudanças.”

“Quando lhe pedi uma opinião, ele reiterou que o pontífice reinante tem responsabilidade por decisões como esta e que deve agir de acordo com o que considera ser o bem da Igreja. Mas, a nível pessoal, encontrou uma decisiva mudança de rumo e considerou-a um erro, porque punha em causa a tentativa de pacificação feita 14 anos antes”, lembra o antigo secretário particular de Bento XVI. “Em particular, Bento XVI considerou errado proibir a celebração da missa no antigo rito nas igrejas paroquiais, porque é sempre perigoso colocar um grupo de fiéis a um canto, para os fazer sentirem-se perseguidos e inspirar neles o sentimento de ter de salvaguardar, a todo o custo, a própria identidade perante o ‘inimigo’.”

Bento XVI também não gostou de ouvir o Papa Francisco à conversa com os jesuítas eslovacos, durante uma breve visita a Bratislava, sobre o assunto. Na altura, Francisco disse: “Agora espero que, com a decisão de parar o automatismo do rito antigo, possamos remontar às verdadeiras intenções de Bento XVI e João Paulo II. A minha decisão resulta de uma consulta a todos os bispos do mundo feita no ano passado.” Mas, segundo Gänswein, Bento XVI “franziu a testa” ao ouvir aquelas declarações.

"Em 16 de julho de 2021, ao folhear o L’Osservatore Romano daquela tarde, Bento XVI descobriu que o papa Francisco havia dado a conhecer o motu proprio Traditiones Custodes sobre o uso da liturgia romana anterior à reforma de 1970. (...) A nível pessoal, encontrou uma decisiva mudança de rumo e considerou-a um erro, porque punha em causa a tentativa de pacificação feita 14 anos antes."
Georg Gänswein

Escreve o antigo secretário de Bento XVI: “E ainda menos apreço recebeu dele a anedota contada logo a seguir pelo pontífice: ‘Um cardeal disse-me que dois sacerdotes recém-ordenados vieram ter com ele e pediram-lhe para estudar latim, para celebrar adequadamente. Ele, que tem sentido de humor, respondeu: ‘Mas há muitos hispânicos na diocese! Estudem espanhol para poderem pregar. Então, quando tiverem estudado espanhol, voltem a vir ter comigo e eu digo-vos quantos vietnamitas existem na diocese pedir-vos-ei que estudem vietnamita. Então, quando aprenderem vietnamita, eu dou-vos permissão para estudar latim também.’”

No livro, Gänswein faz uma defesa da honra de Bento XVI, destacando que o Papa emérito lutou sempre pela reconciliação entre fações afastadas dentro da Igreja Católica, enquanto se mantinha fiel ao espírito do Concílio Vaticano II: o de que há um único rito, mas duas formas, igualmente legítimas, e que a forma antiga pode ter utilidade espiritual para muitos grupos. Para Gänswein, a atitude de Francisco representou justamente um modo de pensar que caracteriza a Igreja atual, com fações entrincheiradas em dois campos oponentes, que vêem na celebração em latim “o baluarte a ser defendido ou o baluarte a ser demolido”.

A referência a Fátima no livro de Gänswein

O livro de Gänswein inclui uma breve referência a Portugal, já no último capítulo, em que se debruça sobre a visão de Bento XVI sobre um conjunto de questões contemporâneas. Nesse capítulo, Gänswein fala sobre a relação de Bento XVI com Fátima e explica que Joseph Ratzinger se começou a interessar pelo tema das profecias relacionadas com Nossa Senhora devido às controversas questões que surgiram na segunda metade do século XX em torno do culto da Natureza, da Mãe Terra e do feminino em Deus.

“O elemento cósmico desta renovação da antiga religião encontra-se, então, com as tendências da New Age, que visa a fusão de todas as religiões e uma nova unidade do homem do cosmos”, escreve Gänswein, citando palavras do próprio Ratzinger. “Estes vislumbres do futuro levaram-no gradualmente a prestar mais atenção à área das profecias marianas, que, na verdade, nunca o intrigaram particularmente na sua juventude. Pelo contrário, em tudo o que dizia respeito às revelações privadas, o cardeal Ratzinger mostrou-se cauteloso.”

“Mais articulado foi o seu envolvimento no que diz respeito às aparições de Fátima, que tratou com profundidade devido a João Paulo II, que lhe pediu pessoalmente que explicasse o texto da terceira parte do Segredo”, lembra Gänswein. Efetivamente, foi o cardeal Ratzinger quem redigiu o comentário teológico à terceira parte do Segredo de Fátima, um manuscrito da Irmã Lúcia que continha um conjunto de visões (incluindo o ataque ao Papa) e que estava guardado nos arquivos do Vaticano desde os anos 50 — e que só foi revelado em 2000.

The pope Benedict XVI

O Papa Bento XVI em Fátima em 2010

Mondadori via Getty Images

“Com o passar do tempo, Bento XVI amadureceu a consciência de que as predições de Nossa Senhora devem ser consideradas com diligência, prestando atenção às suas palavras precisas”, diz Gänswein, referindo-se concretamente à passagem das visões da Irmã Lúcia em que é dito que o Papa “atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dor e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de joelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas”.

Esta passagem das visões de Fátima foi frequentemente associada ao atentado que João Paulo II sofreu em maio de 1981, na Praça de São Pedro, pelas mãos do terrorista turco Ali Agca — tanto que o próprio João Paulo II ofereceu a bala ao Santuário de Fátima, onde se encontra na coroa de Nossa Senhora de Fátima.

“No entanto, é verdade que o Papa não foi morto”, assinala Gänswein, salientando que esta profecia de Fátima poderá referir-se, não a um ataque ao Papa, mas a um ataque contra a Igreja por parte do mundo contemporâneo. “Foi nesta reflexão, fundada na hipótese de uma profecia que ainda não estava realizada e, portanto, aberta a um futuro mais ou menos próximo que, no dia 13 de maio de 2010, na homilia da missa em Fátima, pronunciou palavras que ressoaram: ‘Iludir-se-ia quem pensasse que a missão profética de Fátima esteja concluída’.”

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