A inauguração da nova embaixada dos Estados Unidos em Jerusalém foi um dos momentos mais mediáticos do mandato presidencial de Donald Trump. A concretização da decisão tomada em 1995 pelo Congresso norte-americano tinha vindo a ser sucessivamente adiada por todos os presidentes, para não desestabilizar o difícil processo de negociação da paz entre israelitas e palestinianos. Mas Trump “decidiu que não queria saber” disso e, em maio deste ano, abriu a nova embaixada norte-americana em Jerusalém (apesar de, entretanto, a transferência ter sido suspensa novamente).
A mudança foi amplamente elogiada pelos judeus norte-americanos, para quem o Estado de Israel é de particular importância. “O lugar da embaixada é em Jerusalém. É a capital de Israel”, defende o rabino norte-americano Andrew Baker, diretor de assuntos judaicos internacionais do Comité Judaico Americano e representante da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) para a área do combate ao anti-semitismo. Ainda assim, nem a transferência da embaixada nem a “atitude mais robusta nas Nações Unidas em defesa de Israel” são suficientes para convencer a maioria dos judeus norte-americanos, que “estão mais perturbados com este presidente do que estão tranquilizados pelo que ele fez relativamente a Israel”.
Numa entrevista ao Observador, durante uma passagem por Portugal para participar numa conferência organizada pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) dedicada ao problema do anti-semitismo, e num período em que o populismo e os movimentos nacionalistas ganham força, o rabino defende que “Donald Trump está certamente a contribuir para um endurecimento do debate público na América, onde declarações xenófobas, racistas, intolerantes e anti-semíticas se tornaram mais aceitáveis”.
Andrew Baker caracteriza o anti-semitismo como um ódio para o qual não há “explicações racionais”, já que para os anti-semitas os judeus são um “camaleão” que pode encarnar qualquer inimigo. É possível procurar pistas na história desde os tempos bíblicos, mas nem sempre se chegará a respostas concretas. Para Baker, que tem trabalhado na busca de soluções para combater o anti-semitismo na Europa, os judeus enfrentam discriminação quer por parte dos movimentos de extrema-direita quer por partes da população muçulmana (com uma atitude historicamente anti-judaica) que migram para o continente europeu. Setenta anos depois da criação do Estado de Israel, o rabino garante que o país é um “refúgio” e “um farol, uma luz de promessa”, para muitos judeus. E acredita numa solução de dois estados que permita, a longo prazo, a reconciliação entre muçulmanos e judeus naquela região do mundo.
Quero começar com uma pergunta conceptual, porque não sei até que ponto é que todos sabemos de que estamos a falar quando falamos de anti-semitismo. O que é o anti-semitismo e de onde vem?
É justo fazer essa pergunta aqui em Portugal. Como muito do meu trabalho se foca em comunidades judaicas em lugares onde o anti-semitismo é um problema grave, talvez não perceba isso o suficiente. Há 14 milhões de judeus no mundo e há muitos lugares onde as comunidades judaicas são pequenas ou nem existem. Aí, frequentemente pensa-se que o anti-semitismo não existe ou, pelo menos, não representa um problema como representa numa comunidade judaica viva. Diz-se que o anti-semitismo é o ódio mais antigo do mundo, que se pode encontrar ainda nos tempos bíblicos, quando os israelitas são atacados na sua viagem do Egipto para a Terra Prometida. Poderá dizer-se que esse é o início de tudo isto. Mas a realidade — e não quero demorar-me nas origens bíblicas — é que, apesar de o povo judeu não ter tido uma nação como casa até 1948, durante praticamente dois milénios, houve um sentimento de identidade baseado na religião e na língua. Os judeus estavam dispersos por todo o mundo, em números certamente menores quando comparados com as sociedades onde viviam, e frequentemente destacavam-se.
A dispersão por todo o mundo, a diáspora, é também resultado de um sentimento do anti-semitismo?
Foi resultado da destruição do Templo de Jerusalém, quando o Império Romano destruiu a Judeia, o estado judeu. Apesar de muitos terem continuado a viver até em Jerusalém e no Médio Oriente, os judeus partiram para todo o mundo. Muitas vezes, eram bem-sucedidos nos locais onde viviam e para onde viajavam. Aqui na Península Ibérica existiram em proporções significativas, em Portugal e em Espanha, até ao século XV, antes de terem sido expulsos. Como os judeus tinham a tendência de viver separados, foram muitas vezes transformados num alvo, talvez culpados por terem sucesso, culpados porque a sociedade precisa de um bode expiatório. Ao longo dos séculos, os judeus andaram de lugar em lugar. Às vezes porque eram convidados, quando se pensava que podiam ajudar a economia, a cultura, os negócios da comunidade; outras vezes porque eram empurrados. Ou, como aconteceu aqui em Portugal, com as conversões forçadas ou a expulsão, ou expulsos de cidade em cidade por causa da discriminação.
Foi esse sucesso que tinham nas sociedades para onde se mudaram em tempos antigos que esteve na origem do ódio aos judeus que se manteve a longo dos séculos?
Um dos desafios é encontrar uma explicação racional para algo que é verdadeiramente irracional. Pode dizer-se isto também sobre outros ódios: quando tentamos encontrar a razão pela qual as pessoas odeiam, muitas vezes essa razão tem menos a ver com o objeto do ódio e mais com as pessoas que nutrem esses sentimentos. Seria um perigo dizer que a causa do anti-semitismo está nos judeus em vez de estar nos anti-semitas. Mas a verdade é que os judeus se destacaram, mesmo sendo menos numerosos, e dependendo de quando e onde se destacaram, podem ter-se tornado alvos para o ódio das pessoas.
Diria que as razões para o anti-semitismo na altura, por exemplo, em que os judeus foram expulsos de Portugal podem ser comparadas às razões que levaram ao Holocausto?
Penso que vemos que o anti-semitismo, o ódio contra os judeus, pode resultar num ataque assassino, até num genocídio. Não havia termo de comparação durante séculos, até à perseguição dos judeus em Portugal e em Espanha. Antes disso, era difícil encontrar algum exemplo que chegasse ao nível de forçar comunidades inteiras a abandonar um país ou a converter-se, de as atacar e de as assassinar se a conversão não fosse considerada sincera. Antes do Holocausto, tínhamos visto pogroms na Europa de leste, ataques perversos que resultaram na morte de judeus em números significativos. Mas nada que pudesse fazer imaginar o assassínio em massa que aconteceu no Holocausto.
Este ódio aos judeus ainda existe hoje, mas de outras formas e noutras circunstâncias? Qual é a situação do anti-semitismo hoje?
Se a nossa referência for a década de 30 na Alemanha e o Holocausto na Europa, obviamente que os judeus estão muito mais seguros e protegidos hoje. Mas esse é um termo de comparação terrivelmente baixo. Às vezes, quase como uma piada triste, diz-se que Hitler manchou o nome do anti-semitismo. Ou seja, o anti-semitismo, antes de Hitler e dos nazis, estava relativamente disseminado. E era preocupante por si só: os judeus eram visados pelos políticos, enfrentavam discriminações no que dizia respeito aos locais onde podiam trabalhar e viver e eram frequentemente sujeitos a indignidades, mesmo que não resultassem em homicídio. Depois do Holocausto, de repente, a ideia de que o anti-semitismo podia levar ao genocídio tornou-se numa realidade. Hoje ainda temos o Holocausto como referência. Claro que ainda temos, entre nós, sobreviventes do Holocausto.
Ainda está muito fresco na nossa memória coletiva.
Ainda é muito real. E, ao mesmo tempo, até nos próprios países onde o Holocausto aconteceu, há pessoas que não se lembram, pessoas que negam e que distorcem a realidade. Isso, em si, é quase uma forma de anti-semitismo. Claro que em alguns países ainda há ataques físicos e as comunidades judaicas não se sentem seguras no seu dia-a-dia, mas aquilo que combatemos hoje é um certo discurso anti-semítico no debate político e na discussão pública. Há pessoas que ainda têm atitudes negativas contra os judeus, mesmo que essas atitudes nem sempre levem a um ataque contra a população judaica.
Ainda no mês passado, 11 pessoas morreram num ataque a uma sinagoga em Pittsburgh, nos Estados Unidos. Parece-lhe que o surgimento de políticos como Donald Trump nos EUA ou de líderes populistas na Europa pode contribuir para um aprofundamento destes sentimentos de ódio contra os judeus?
Diria que muito antes do ataque horrível em Pittsburgh já estávamos perturbados por grupos e partidos políticos de extrema-direita, populistas e xenófobos, que defendem uma ideologia, às vezes, neo-nazi. Até muito recentemente, essa era a principal preocupação para a segurança física dos judeus. Nem todos os movimentos populistas que crescem na Europa estão focados em primeiro lugar numa ideologia anti-judaica, mas o anti-semitismo é um traço comum a todos eles.
Autor do massacre em sinagoga de Pittsburgh acusado de 29 crimes federais
Penso por exemplo na Alemanha, onde este assunto é particularmente sensível, com a AfD [Alternativa para a Alemanha].
A AfD é um partido muito problemático. Dentro do espectro alemão, se passassem certas linhas seriam banidos, por isso estão a tentar ser cuidadosos com este assunto, mas poucos duvidam de que se trata de um partido no qual as pessoas que cultivam visões negativas sobre os judeus e os migrantes encontram uma casa. Vemos isso também na Frente Nacional, na França, no Partido da Liberdade, na Áustria. São partidos que podem não ser em primeiro lugar anti-semíticos, mas penso que o sentimento é o de que eles não olham carinhosamente para os judeus.
Mas refletem a vontade das pessoas, ou não? Na Alemanha, a AfD, um partido de extrema-direita, chegou ao Parlamento pela primeira vez nas últimas eleições, com 92 deputados. As pessoas, na Europa, estão mais intolerantes, mais anti-semíticas, menos abertas ao que é diferente da matriz cristã europeia?
Penso que a Europa enfrenta um problema grave, tal como também o enfrentamos nos Estados Unidos. Não vou estabelecer uma linha direta entre Donald Trump e o assassínio em Pittsburgh, mas penso que Donald Trump está certamente a contribuir para um endurecimento do debate público na América, onde declarações xenófobas, racistas, intolerantes e anti-semíticas se tornaram mais aceitáveis. As palavras importam e essas palavras podem levar a ações. Temos um ambiente mais problemático nos Estados Unidos tal como vocês têm na maioria na Europa. Não é que as pessoas que votam no Partido da Liberdade, ou na Aurora Dourada, na Grécia, ou no Jobbik, na Hungria, o façam porque são anti-semitas. Mas também penso que muitos desses partidos ou líderes políticos podem aclarar os seus pontos de vista e as pessoas não terão problemas em votar neles na mesma.
Quando as pessoas votam nestes partidos, não sabem que estão a votar nestas ideias? Na intolerância, na xenofobia, no anti-semitismo?
Bom, quero acreditar que se hoje temos números tão significativos de votos nestes partidos não é porque todos esses eleitores sejam racistas ou anti-semitas, embora possa dizer que todos os anti-semitas e racistas vão naturalmente votar nesses partidos. Mas isto pode também refletir o facto de as pessoas estarem insatisfeitas com os partidos mainstream e quererem manifestar o seu descontentamento. Muitos desses votos podem ser votos de protesto. Mas os líderes políticos que os recebem recebem-nos da mesma forma, e esses votos não ajudam se a nossa preocupação for um discurso público respeitador e uma abertura à diversidade na sociedade.
Donald Trump é um bom presidente para os judeus? Por um lado é um forte defensor do Estado de Israel — podemos falar, por exemplo, da transferência da embaixada para Jerusalém —, mas ao mesmo tempo o discurso dele contribui, como dizia, para um aumento da violência, do discurso de ódio. Onde é que ele fica no meio deste problema?
Uma maioria muito substancial dos judeus norte-americanos não apoiam Donald Trump. A minha organização, o Comité Judaico Americano, faz sondagens anuais à população judaica norte-americana. Cerca de três quartos da população judaica nos EUA opõem-se ao Presidente Trump, ou opor-se-iam a ele numa eleição, e não votaram nele há três anos. Dito isto, há certamente algumas ações do Presidente que, penso eu, muitos judeus americanos — mas não apenas judeus — apoiam. Falou da deslocação da embaixada norte-americana para Jerusalém. Na verdade, esta decisão foi tomada pelo Congresso há 20 anos.
Mas tem vindo a ser adiada sucessivamente.
Foi adiada porque o Presidente tem a autoridade para o fazer devido à preocupação com a possibilidade de essa mudança pudesse pôr em causa as negociações de paz ou destabilizar a situação na região. O Presidente Trump decidiu que não queria saber. Em maio, mudaram efetivamente a embaixada.
E o que é que lhe pareceu essa opção?
Penso que o lugar da embaixada é em Jerusalém. É a capital de Israel.
Mas este foi o momento indicado para a transferência?
Os momentos vão e vêm. Foi feito em maio, agora estamos em novembro e não penso que alguma coisa terrível tenha acontecido como resultado dessa opção. Talvez outros países sigam o mesmo caminho.
O presidente do Brasil já falou disso.
Sim, ouvimos falar. Vários países europeus vão estabelecendo uma espécie de centro cultural em Jerusalém que funciona como embaixadas de facto. Penso que foi dada demasiada atenção à mudança da embaixada. Acho que nada de terrível aconteceu como resultado. Também não sei se se ganhou algo de significativo, exceto o facto de Jerusalém ser a capital de Israel. É ali que está a sede do governo, o Knesset [Parlamento israelita], o gabinete do primeiro-ministro, a maioria dos ministérios. Por isso, faria sentido que um país tenha a embaixada na capital. Mas, como disse, acho que a maioria dos judeus norte-americanos concordam que é em Jerusalém que a embaixada deve estar, e suspeito de que a maioria do público norte-americano, no geral, concorda que faz sentido.
E como é que a população judaica dos EUA olha para Donald Trump se, por um lado, ele toma essa atitude claramente positiva para os judeus, mas, por outro, tem o discurso que tem?
O Estado de Israel significa muito para os judeus nos EUA e em todo o mundo. Dito isto, se olharmos para a população judaica nos EUA, podemos dividi-la. Provavelmente, para os judeus americanos para quem Israel importa mais do que tudo, estas coisas ressoam muito alto — tanto a mudança da embaixada como a atitude mais robusta nas Nações Unidas em defesa de Israel face às resoluções frequentemente tendenciosas que são votadas. A maioria dos judeus norte-americanos apreciam isto. Mas os judeus americanos também são americanos e têm votado sobretudo nos Democratas. Tendem a ser, se usarmos termos genéricos, liberais e progressistas, fortes defensores da igualdade racial e de uma política de abertura face à imigração. Podia dizer uma série de coisas a que esta administração se tem oposto. Mas, no final de contas, a maioria dos judeus americanos estão mais perturbados com este presidente do que estão tranquilizados pelo que ele fez relativamente a Israel. Nós, que trabalhamos profissionalmente no mundo judaico, temos de estar atentos aos dois grupos.
Tem trabalhado muito em formas de combater o anti-semitismo em vários lugares do mundo. Sente que as comunidades judaicas, tanto nos EUA como na Europa, têm medo do que lhes possa acontecer devido ao crescimento do nacionalismo e do populismo?
Há situações diferentes em países diferentes. Muito do meu trabalho tem sido na Europa e podemos olhar para este assunto de forma diferente dependendo das regiões. Ao longo dos últimos dez, quinze anos, assistimos a um aumento significativo do número de ataques anti-semíticos, incluindo ataques físicos, assédio físico e verbal, pelo menos na Europa ocidental, em países como a França, a Bélgica, os Países Baixos. A maioria destes incidentes têm origem nas populações árabes e muçulmanas e não nos tradicionais grupos populistas de extrema-direita. Isso não desapareceu e se olharmos para países como a França ou o Reino Unido podemos ver que as pessoas que cultivam visões nacionalistas e populistas têm um maior nível de anti-semitismo do que a generalidade da população. Mas onde há dados — e em alguns países há — sobre a população árabe muçulmana, eles mostram que essas comunidades também têm um grau mais elevado de atitudes anti-judaicas, e é mais provável que essas tenham ações concretas. Por isso, as comunidades judaicas têm preocupações significativas com a sua segurança física e vimos isso refletido numa sondagem feita pela Agência dos Direitos Fundamentais (FRA) da União Europeia em 2012. Já fizeram outra sondagem este ano, que vão divulgar dentro de algumas semanas, e o resultado não é melhor.
Em países como a França ou a Bélgica, há percentagens significativas de judeus que dizem que por causa do anti-semitismo já pelo menos consideraram emigrar, deixar o país. Não penso que seja por causa de medos causados por ataques de extrema-direita, penso que é sobretudo por causa destes outros ataques que os governos tiveram dificuldade em reconhecer e em combater. A verdade é que mesmo que houvesse uma preocupação crescente com os movimentos de extrema-direita e com o anti-semitismo que eles têm, há também um sentimento de solidariedade da maioria dos países, das sociedades. Se olharmos por exemplo para o que aconteceu em Pittsburgh e para a reação do público, houve um forte sentimento na maioria da população americana, que quis demonstrar preocupação e solidariedade para com aquela comunidade judaica após o ataque.
Acha que essa solidariedade foi particularmente dirigida à comunidade judaica ou de respeito pelo Judaísmo? Ou foi mesma reação que a maioria do público teria perante um ataque a outra comunidade, um tiroteio numa universidade ou outros que têm acontecido no país?
Infelizmente, temos tido uma terrível onda de violência com armas. Muitos de nós, americanos, não entendemos porque é que os EUA têm este caso amoroso com as armas e, ao contrário de qualquer outra sociedade ocidental, não controlamos ou limitamos a posse de armas de fogo, que são muito mais adequadas para a guerra do que para proteger as casas de cada um. Isso certamente levou a todos estes ataques, que parecem acontecer quase semanalmente ou mensalmente. Por isso, sim, há um fator que nos pode fazer olhar para Pittsburgh como olharíamos para o tiroteio que aconteceu na semana seguinte numa discoteca na Califórnia, ou para os tiroteios que aconteceram em muitas das nossas escolas, ou mais diretamente para o tiroteio na igreja de uma comunidade negra em Charleston. Penso que para todos nós este foi, pelo menos, o primeiro ataque de alguém com uma arma e com visões anti-semíticas — ele queria matar judeus, era apenas alguém que ficou maluco e decidiu matar quem lhe aparecesse à frente. A maioria dos americanos perceberam isto. Perceberam que havia algo particularmente hediondo no facto de entrar numa sinagoga, onde as pessoas estão a rezar e serem essas as vítimas. Nos EUA há um sentimento muito instintivo, os judeus são bem vistos, e isto foi algo de terrível. Ouvimo-lo também dos nossos amigos não judeus, que estavam revoltados com o que aconteceu e queriam que as pessoas soubessem.
Na Europa há um fenómeno interessante, já que a maioria destes partidos nacionalistas e populistas estão a crescer sobretudo em resposta a uma ideia motivada também pela chegada de refugiados, migrantes, que vêm de países muçulmanos habitualmente associados ao anti-semitismo e à difícil convivência com os judeus. Isto significa, na sua opinião, que os judeus têm uma sensação de medo duplo? Tanto da extrema-direita como das comunidades muçulmanas?
Tenho de ser cauteloso a falar. Não estamos a falar de todos os muçulmanos nem estamos a tentar lutar com a questão da onda de migrantes do Médio Oriente e do norte de África, em 2015, para países como a Alemanha ou a Suécia. Sabemos que eles vêm de países onde existem atitudes anti-judeus e anti-Israel muito profundamente enraizadas. Não sabemos necessariamente o que é que isso significa para esta população hoje em dia, ainda estamos a começar a ter dados empíricos, temos feito alguns estudos sobre as atitudes. A maioria das pessoas sugere, incluindo a chanceler da Alemanha, que temos de ter cuidado com isto. Algo tem de ser feito. As pessoas precisam de ser educadas. Uma das dificuldades é que as pessoas não conhecem os judeus, não conhecem o Judaísmo, e neste caso cresceram com estereótipos muito fortes e negativos sobre os judeus. Não é um bom ponto de partida se quisermos ter uma comunidade harmoniosa. Temos de investir em educação. A curto prazo, temos de nos preocupar com a segurança, temos de encorajar os governos a ter o papel que devem ter e a garantir a segurança necessária para as comunidades judaicas.
Ou seja, a forma como pelo menos parte da Europa está a reagir à chegada dos migrantes, com o crescimento do nacionalismo, está também a contribuir para um crescimento do anti-semitismo?
Se olharmos para trás, para antes desta onda de migrantes, já tínhamos um crescimento do número de muçulmanos na Europa, e o grau de integração deles na sociedade certamente variava de país para país. Ou seja, não são apenas as chegadas recentes. Voltando a 2002, 2003, quando víamos um crescimento do número de incidentes em países da Europa ocidental, eles vinham, na sua maioria, desta parte da população. E os governos não o viam, ou não o queriam reconhecer. Tive encontros com responsáveis políticos na Suécia ou na França, por exemplo. Na França ouvia dizer: “Bom, nós temos leis. A tradição da laïcité significa que não identificamos as pessoas pela religião”. Por isso, quando falava com pessoas no Ministério da Educação e lhes perguntava o que estavam a fazer relativamente a tantas crianças judias que estavam a abandonar as escolas públicas — algo que sabemos pelas organizações judaicas —, eles respondiam: “Não sabemos disso”. Tecnicamente não sabem, porque não perguntam às pessoas pela sua religião. Mas têm noção disso.
Na Suécia também víamos problemas. Percebi que os responsáveis políticos suecos não queriam lidar com o problema. Têm instituições que fazem um trabalho abrangente para identificar crimes de ódio, e que podem dizer com precisão o número de incidentes com motivações anti-semíticas que têm ocorrido, mas quando eu lhes perguntava sobre os perpetradores e o que podiam dizer sobre eles, diziam-me: “Podemos dizer alguma coisa, mas o governo tem de nos perguntar”. E o governo não lhes perguntava. Isso agora mudou, pelo menos no sentido em que lhes foi pedido que preparassem um relatório sobre as origens do anti-semitismo. Penso que, como eles têm uma grande população de imigrantes na Suécia, muitos deles oriundos de países árabes, o governo está nervoso com o facto de, se der muita atenção a esse assunto, poder contribuir para apoiar os partidos de extrema-direita, que ganharam apoio com a onda de migrantes.
É um assunto muito particular para as comunidades judaicas, porque, por um lado, eles veem-no como uma causa para os incidentes e para a sua insegurança. Mas quando o governo não o reconhece, isso soma-se à sensação de insegurança e às questões sobre como o governo vai lidar com o problema se não o reconhece.
É pela educação, de que falava antes, que passa o combate ao anti-semitismo hoje?
Penso que é importante começar por perceber o que é o anti-semitismo e de onde vem. Falámos muito sobre o anti-semitismo da direita e sobre o anti-semitismo de partes da população árabe e muçulmana. Mas também há um anti-semitismo na esquerda. Vemos como o antagonismo face a Israel se pode tornar em algo mais do que apenas críticas. Vemos como as comunidades judaicas são confundidas com Israel e, de certa forma, têm de suportar o fardo de todo o mal que as pessoas possam acreditar que Israel comete. São situações em que o anti-sionismo é uma máscara para o anti-semitismo. É importante perceber isto, se queremos educar as pessoas para o problema e encontrar formas de o resolver.
O apoio à causa palestiniana é uma forma de anti-semitismo?
Não. As pessoas têm o direito de apoiar. Já agora, eu apoiaria uma Palestina enquanto estado independente no Médio Oriente, nos territórios da Cisjordânia e de Gaza, onde a maioria dos palestinianos vivem. Podemos discordar nas dinâmicas políticas ou na forma de lá chegar. Mas não acho que apoiar os direitos políticos dos palestinianos, o seu direito a ter um estado, seja anti-semitismo. Penso, porém, que há formas de manifestar antagonismo contra Israel, nomeadamente quando se fala de Israel da mesma forma que se falaria dos nazis, que não são apenas críticas. Quando se nega a Israel o seu direito de existir enquanto estado judeu, isso é algo mais do que apenas criticar. Aí, pode ser uma forma de anti-semitismo.
Defendia a importância de se perceber efetivamente o que é o anti-semitismo para se poder lidar eficazmente com o problema. Por isso mesmo comecei a entrevista por aí, mas deixe-me voltar ao assunto: como é que este ódio, este sentimento contra os judeus que já vem de tempos antigos por causa do sucesso das comunidades judaicas, se cristalizou nas sociedades e perdurou até hoje?
Estranhamente, para os anti-semitas, os judeus podem ser aquilo que eles queiram que sejam. Pode não haver uma explicação racional. Por algum motivo, os judeus podem ser tanto o motor do capitalismo mundial como podem ser quem está por trás do comunismo. No século XX, os judeus eram responsáveis pelos dois. Para aqueles para quem o comunismo era o inimigo? os judeus estavam por trás dele. O capitalismo era o inimigo? Os judeus por trás. Bom, não podem estar por trás dos dois, são movimentos políticos contraditórios. Os judeus podiam ser os responsáveis se a peste negra arrasasse a Europa medieval, os judeus podiam ser responsáveis pela derrota alemã depois da I Guerra Mundial e pelo fardo oneroso do Tratado de Versalhes. De certa forma, para os olhos dos anti-semitas, os judeus tornam-se numa espécie de camaleão que pode representar qualquer inimigo. Porquê? Talvez seja um grande mistério.
As pessoas podem odiar os migrantes porque são diferentes, porque não falam a língua, porque têm medo de que lhes tirem os empregos. Novamente, estamos à procura de explicações racionais. Os judeus na Europa tendem a estar enraizados e leais às suas sociedades como quaisquer outros. Por isso, se pensarmos numa minoria enquanto um grupo que tem a pele de outra cor, fala uma língua diferente e se coloca de parte, os judeus não se encaixam nesse modelo. E, ainda assim, podem tornar-se num alvo. Há aqui algo que não há em mais nenhuma forma de racismo ou de intolerância. Há anti-semitismo em lugares onde não há judeus. Aqui em Portugal há uma comunidade judaica minúscula, mas foram feitos alguns estudos sobre as atitudes face aos judeus na Europa e os portugueses têm uma visão negativa dos judeus significativamente mais alta do quase toda a restante Europa. Em alguns dos estudos recentes feitos pelo Pew Research Center sugerem que provavelmente um terço ou mais da população de Portugal, Espanha, Itália, acredita que os judeus se preocupam mais com eles próprios do que com a sociedade em que vivem. Há alguns estereótipos negativos. E, ainda assim, se perguntar às pessoas aqui o que sabem sobre o Judaísmo, provavelmente 85% dizem que não sabem nada.
A forma como muitas vezes se usa a palavra “judeu” como um insulto para designar alguém muito agarrado ao dinheiro mostra que o anti-semitismo, de certa forma, está muito enraizado até na língua.
Esse é um bom exemplo da existência de anti-semitismo num lugar onde os judeus praticamente não aparecem. Pode tentar argumentar-se que nos Estados Unidos os judeus são proeminentes. Vemo-los no jornalismo, em Hollywood, na economia. Isso pode explicar o anti-semitismo lá, mas não o explica noutros locais. Fizemos estudos sobre as atitudes em lugares como a Áustria ou a Polónia, na Europa central e ocidental, onde existem níveis altos de atitudes anti-judeus, mesmo havendo naqueles países populações judaicas muito pequenas.
Houve uma escalada na violência do conflito entre Israel e a Palestina nas últimas semanas, que foi seguido de um cessar-fogo em Gaza alcançado na semana passada. Parece-lhe que vai durar?
Deixe-me começar por relacionar isto com o tópico anterior. Desde o colapso do processo de paz, em 2000, com a Segunda Intifada, quando o conflito escala no Médio Oriente entre os israelitas e os palestinianos, assistimos a um pico nos incidentes motivados por anti-semitismo na Europa. Há uma certa ligação. Não diria que é necessariamente causa e efeito, mas há uma ligação. Agora se me pergunta o que vai acontecer em Israel…
Milícias palestinianas anunciam acordo de cessar-fogo na Faixa de Gaza
Porque o estado de Israel está num momento de especial instabilidade, com o ministro da Defesa a demitir-se em oposição ao cessar-fogo.
E agora parece que, pelo menos para já, o governo de Netanyahu se mantém em funções. Mas em condições precárias. Não acredito que haja uma solução óbvia para Gaza. Acho que entrar numa nova guerra em Gaza seria terrível para todas as partes. Não acredito que as famílias israelitas queiram que os seus filhos soldados tenham de ir para Gaza. Há uma guerra em curso entre o Hamas e a Autoridade Palestiniana relativamente a Gaza. Foi Mahmoud Abbas que quis impor o embargo económico e aumentou as dificuldades para as pessoas lá e é difícil pensar que o Hamas se preocupa com a população. Por isso, é difícil ver algo de bom que pudesse emergir de um novo conflito. Ainda assim, se olharmos para trás, quando se estava a encorajar as pessoas a construir um muro na fronteira e quando havia mísseis a vir de Gaza, não se podia esperar que o governo de Israel não fizesse nada. Netanyahu sempre foi um primeiro-ministro focado na segurança, mas foi criticado por não se focar o suficiente na segurança. Talvez muitos eleitores, no que toca à dinâmica política em Israel, concordem com isso e é por isso que o ministro da Defesa se demitiu.
Perguntava-lhe isto porque, como falávamos antes, a estabilidade do Estado de Israel é de grande importância para o povo judeu em todo o mundo. Israel ainda é a Terra Prometida para onde os judeus voltarão um dia?
Eu vivo nos EUA, eu e a minha família não nos vamos mudar para Israel. Para muitos judeus em todo o mundo, nós sentimos uma verdadeira ligação ao Estado de Israel, mas isso não significa que queiramos, nós próprios, viver lá. Mas sem dúvida que tem sido um refúgio para os judeus em necessidade e um farol, uma luz de promessa, para muitos judeus e não judeus. O que se passa agora é um bom exemplo. É uma sociedade democrática. Vive há décadas num estado de guerra com tantos vizinhos e ainda assim manter uma democracia vibrante, uma verdadeira justiça e uma imprensa livre, com todas as lutas internas. E todos nós, judeus, por todo o mundo, seguimos com atenção a política em Israel e, à sua própria maneira, é muito esperançosa. Dito isto, os judeus nem sempre concordam entre si. Às vezes, como muito do meu trabalho se foca na Europa central e de leste, onde depois da queda do comunismo houve um renascer da vida judaica, brinco que um sinal do renascimento do Judaísmo é que não há apenas uma comunidade judaica, mas duas ou três, e às vezes elas discordam uma da outra. Há desentendimentos, mas isso faz parte da natureza do que somos enquanto povo judeu.
Se os judeus têm os olhos no que se passa em Israel, como analisa agora a situação de agora? Com o governo fragilizado, o que pode acontecer?
O governo, certamente, está mais precário, porque um dos parceiros da coligação saiu e só é preciso sair mais um para o governo efetivamente cair. A maioria das pessoas prevê que haja eleições antecipadas, mas a questão é o que é que elas vão trazer e quando vão acontecer. Com eleições, haveria um novo governo, novos líderes, certamente estabilidade política. Mas o que significa isso, quem iria liderar, com que políticas? Isso não sei. Penso que as pessoas dentro e fora de Israel têm os seus próprios pontos de vista sobre quão ativo deverá ser um governo na promoção de uma solução de dois estados e nas negociações com a Palestina, por mais difícil que isso possa ser. Há outros que sentem que a segurança é primordial e, se olharmos para o que aconteceu quando Israel deixou o sul do Líbano ou no que o Hamas se tornou… Israel deixou Gaza voluntariamente e olhemos para aquilo em que se transformou. Por isso, muitas pessoas questionam como é que poderíamos deixar o controlo da Cisjordânia [onde Israel mantêm territórios ocupados] sem que isso resultasse em algo semelhante. Quando se ouvem estas coisas, há um argumento para advertir contra um avanço rápido para uma solução de dois estados.
Setenta anos depois da criação do Estado de Israel, qual a avaliação da existência do país para a população judaica em todo o mundo?
É uma das sociedades mais diversas — recebeu imigrantes judeus de todo o mundo, que são muito diferentes entre si, dependendo de se são do Iémen, do Iraque, da União Soviética… — e criou um verdadeiro Estado. Estive em Israel pela primeira vez enquanto estudante, na década de 70, quase há cinquenta anos, e sob vários pontos de vista era um país muito rudimentar. Não havia muitas infraestruturas. Estava longe de ser uma sociedade avançada, estava a receber muitos imigrantes, era um lugar muito pobre, mas tinha uma determinação. Visita-se Israel hoje e é uma das sociedades mais avançadas tecnologicamente no mundo. As infraestruturas, hoje, são seguramente equivalentes ao que se encontra na Europa ocidental ou nos EUA. No que toca a empresas de tecnologia de ponta, mas também no que toca a vinhos de marca, por exemplo… É extraordinário. Por isso, a ideia de que no meio de tudo o resto se pôde desenvolver como desenvolveu é uma razão para orgulho.
É possível a reconciliação, ou a paz, entre judeus e muçulmanos naquela parte do globo?
A minha resposta simples é: sim. Passei muito do meu tempo e do meu trabalho a voltar aos anos 80 com colegas alemães, em vários projetos que levámos a cabo com fundações alemãs e que incluíam programas com estudantes alemães, por exemplo. O nosso primeiro escritório na Europa foi fundado em Berlim há vinte anos. Se olharmos para a relação que existe hoje entre judeus e alemães, é uma relação muito profunda, construtiva, de cooperação. Se fala em reconciliação, as pessoas talvez digam que ainda não se chegou lá. Repare: Emmanuel Macron foi falar ao Bundestag, falou do amor da França pela Alemanha. E nós sabemos que as duas guerras mundiais tiveram a sua raiz no conflito entre a França e a Alemanha. Olhando para isto, quero acreditar que é possível. No meu trabalho, é frequente estar no Egipto. É complicado, porque as sociedades se desenvolveram de tal forma que a partir de 1948 Israel é visto como um elemento estrangeiro no Médio Oriente. Ainda assim, acredito cada vez mais, pelo menos falando com pessoas lá, que os árabes na região estão a aceitar e a ver coisas positivas em Israel. Vimo-lo com alguns dos países do Golfo. Ouço de alguns embaixadores árabes em Washington pontos de vista positivos sobre Israel, lamentando até o facto de os seus países não terem relações com Israel. Penso que a direção em que estamos a caminhar é positiva.