Não disse “bom dia”, “boa tarde” ou “boa noite” para não permitir que, do outro lado, fizessem contas ao fuso horário e chegassem a algum ponto do globo que permitisse identificar a sua localização. O antigo banqueiro João Rendeiro deu esta segunda-feira uma entrevista ao mais recente canal de informação, a CNN Portugal, para esclarecer o que tem sido escrito sobre ele desde que se declarou foragido à Justiça.
Disse que não pretendia voltar ao País, emocionou-se a falar da mulher — sobre quem diz não haver “uma única prova” que a relacione com o desaparecimento de obras arrestadas no âmbito do processo Banco Privado Português — e anunciou que ia processar o Estado e pedir uma indemnização de 30 milhões de euros pelo tempo excessivo dos seus processos e pela alegada falta de equidade na decisão.
Quanto à família de Florêncio Almeida, desvalorizou os negócios que estão agora na mira do Ministério Público e continua a insistir que o processo em que foi condenado a cinco anos e oito meses de cadeia nem devia, em tese, ter transitado em julgado. Veja aqui quatro fact checks à entrevista do antigo líder do BPP.
Compra e venda de imóveis de motorista de Rendeiro não teve nada de “extraordinário”?
“O meu motorista, que pelos vistos não tem direito a ser uma pessoa normal, tinha vendido um prédio por um milhão e meio de euros e depois comprou um apartamento por 1 milhão e cinquenta. E o meu amigo acha isso extraordinário?”, disse o antigo banqueiro. Para João Rendeiro, pode não ser extraordinário, mas para o Ministério Público é. É que o seu motorista, que o acompanha desde os tempos do BPP, comprou de facto um apartamento por 1.050.000 euros, mas esse apartamento foi comprado precisamente no condomínio de luxo onde o casal Rendeiro vivia na Quinta Patiño, em Alcabideche (Cascais).
Mais tarde, em dezembro de 2020, o motorista — que é filho do presidente da Antral e que tem o mesmo nome que o pai, Florêncio de Almeida — vendia o direito de usufruto desse apartamento à mulher do ex-banqueiro, Maria de Jesus Rendeiro, por um período de 15 anos a um valor de 200.976 euros.
Rendeiro afirmou aquilo que o Ministério Público já tinha percebido: o dinheiro que pagou esse apartamento resultou da venda de um prédio que o pai doou ao filho em 2018. Um prédio que, por sua vez, tinha sido comprado por Florêncio Almeida (pai) ao próprio João Rendeiro, juntamente com um outro, também em Campo de Ourique, além de dois terrenos rústicos na Murtosa. Todos eles propriedade dos pais do antigo banqueiro, entretanto falecidos.
O prédio de 330m2 da família de Rendeiro, com os números 37 e 39 na Rua Silva Carvalho, em Campo de Ourique, foi vendido a Florêncio de Almeida (pai) por 350 mil euros. E o outro prédio urbano na mesma rua de Campo de Ourique, com os números 41 e 41A, foi vendido por 150 mil euros.
João Rendeiro afirmou esta segunda-feira que Florêncio conseguirá explicar como adquiriu aqueles bens ao preço do mercado à época, em 2015. Já o que se passou a seguir, diz, referindo-se ao usufruto vendido à sua mulher (que há anos deixou de trabalhar e vivia na sua dependência), não lhe compete a ele explicar. “A sequência das operações feitas posteriormente, com toda a franqueza, não me compete a mim explicar, nem devo explicar, porque alguns detalhes nem eu sei”, disse. “Tudo é estranho quando se quer fazer estranho”, afirmou.
Uma estranheza que aparentemente não ficou resolvida perante o juiz de instrução criminal que ouviu os arguidos e que decidiu manter Maria Rendeiro em prisão domiciliária pelos crimes de descaminho e branqueamento, assim como seis outros arguidos: Florêncio e a mulher, o filho e a nora e ainda um artista que terá participado na falsificação das obras de arte. Ou seja, todos os que assinaram os negócios que não terão sido totalmente esclarecidos no dia em que o Ministério Público ordenou dezenas de buscas às casas dos suspeitos.
Aliás, as operações feitas entre compras e vendas de casas são por si só características de “circuitos da lavagem de dinheiro”, como defendeu à CNN Portugal o advogado Magalhães e Silva. “Não consigo imaginar [uma explicação] para este circuito”, disse. “Os valores são de tal maneira discrepantes que não é fácil de explicar”, concluiu.
Errado
“Em termos jurídicos, tenho apenas uma condenação simples. Apenas uma. E essa condenação, ainda assim, está em apelo por um co-réu no Tribunal Constitucional. O que poderia significar, quase por absurdo, que se esse apelo do co-réu tivesse êxito, eu na verdade não teria neste momento qualquer condenação transitada em julgado.”
João Rendeiro afirmou na mesma entrevista à CNN que nenhuma das suas três condenações a prisão efetiva transitou em julgado. O ex-líder do Banco Privado Português (BPP) referiu-se concretamente ao seu processo mais antigo — relativo à falsificação da contabilidade do BPP — para afirmar que o mesmo ainda tem pendente um recurso de um segundo arguido, Paulo Guichard.
João Rendeiro foi condenado a uma pena suspensa de cinco anos pelos crimes de falsificação informática e falsificação de documento a 15 de outubro de 2018. No início de julho de 2020, a Relação de Lisboa deu razão ao recurso do Ministério Público e converteu a pena suspensa em prisão efetiva e aumentou-a ligeiramente para cinco anos e oito meses pelos mesmos crimes.
Após a rejeição do seu recurso por parte do Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal Constitucional indeferiu liminarmente um novo recurso de João Rendeiro e considerou a sentença transitada em julgado a 16 de setembro de 2021.
Paulo Guichard, o co-réu a que o ex-líder do BPP se refere nas suas declarações e que também foi condenado no mesmo processo a quatro anos e oito meses, apresentou a 28 de julho (durante as férias judiciais) um segundo recurso da sua condenação para o Tribunal Constitucional. Em setembro, tal recurso não foi admitido por decisão da Relação de Lisboa e Guichard reclamou para o Tribunal Constitucional.
A defesa de João Rendeiro tentou juntar-se a esse segundo recurso de Guichard, mas tal pretensão também foi rejeitada pelos tribunais superiores e tornou-se definitiva após cumprimento dos prazos legais.
O Supremo Tribunal de Justiça ordenou a libertação de Paulo Guichard no dia 14 de outubro por estar pendente a já referida reclamação para o Tribunal Constitucional, o que levou a defesa de João Rendeiro a alegar que o facto de o Supremo ter assegurado que os autos ainda não tinham transitado em julgado para Guichard deveria ter efeitos para a situação processual de Rendeiro.
O Ministério Público suscitou esta questão e o juiz Nuno Dias Costa, titular dos autos de falsificação da contabilidade do BPP na primeira instância, garantiu num despacho datado de 25 de outubro que “a decisão final proferida nestes autos, no que ao arguido João Manuel Oliveira Rendeiro concerne, transitou em julgado”. “Nestes termos, mantém a certificação do trânsito em julgado da decisão final (…) e consequentemente a emissão do mandado de detenção”, lê-se no documento emitido já com Rendeiro em fuga para fora da União Europeia.
Numa certidão extraída a 15 de novembro, o Juízo Central Criminal de Lisboa certificou por ordem do mesmo magistrado que “o referido acórdão [condenatório da Relação de Lisboa] transitou em julgado, relativamente ao arguido João Manuel Oliveira Rendeiro, em 16 de setembro de 2021”.
Mais: a certidão foi extraída por ordem do juiz Nuno Dias Costa para ser enviada ao Tribunal de Execução de Penas, “a fim de, se assim for entendido, o arguido João Manuel de Oliveira Rendeiro ser declarado contumaz”.
É, por isso, falso que a pena de prisão de cinco anos e oito meses decidida pelo Tribunal da Relação de Lisboa a 15 de outubro de 2018 não tenha transitado em julgado. Como o Juízo Central Criminal de Lisboa certificou, a condenação tornou-se definitiva a 16 de setembro de 2021. Acresce que, por conta de tal trânsito em julgado e por estar em fuga, João Rendeiro tem pendente um mandado de captura internacional expedido pela Justiça portuguesa para a Europol e a Interpol.
Errado
“Em termos internacionais, processos que durem mais de sete anos são processos em falha”
A primeira acusação contra João Rendeiro é de 25 de junho de 2014, quatro anos depois de a polícia ter estado na sua casa na Quinta Patiño, em Alcabideche, e quando arrestou mais de uma centena de obras de arte que ali se encontravam. Neste processo, que já transitou em julgado e pelo qual Rendeiro é procurado internacionalmente para cumprir uma pena de cadeia de cinco anos e oito meses, foram também acusados Paulo Guichard, Salvador Fezas Vital, Fernando Lima e Paulo Lopes, por terem falsificado documentação do BPP.
Rendeiro e Guichard foram primeiro condenados a uma pena suspensa. Esta decisão foi depois alterada pela Relação, motivando o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça — que, em janeiro deste ano, decidiu que a pena única de prisão por cinco anos e oito meses aplicada a Rendeiro, por falsidade informática e falsificação de documentos, se mostrava “justa, adequada e proporcional, sendo, por isso, de manter”. Já quanto a Guichard, condenado a quatro anos e oito meses pela Relação, os juízes do Supremo entenderam que esta pena não lhe permitia recorrer para um tribunal superior. Em julho, a defesa de Guichard recorria então para o Tribunal Constitucional, alegando que o seu cliente tinha sido condenado duplamente pelo mesmo crime: uma vez por via do processo contraordenacional, outra pelo penal.
Quase dois meses depois, a 13 de setembro, a defesa de Rendeiro entregou no Tribunal Constitucional um requerimento a lembrar que um recurso interposto por um interessado aproveita aos restantes e tem efeito suspensivo, “pedindo a extensão do mesmo efeito ao ora requerente”. Mas, a 16 de setembro, era certificado o trânsito em julgado da decisão do Supremo.
Numa outra tentativa, e depois de ver o coarguido no processo, Guichard, ser libertado com um habeas corpus — depois de ter sido detido no aeroporto Francisco Sá Carneiro (Porto) quando regressava a Portugal, e de o tribunal ter considerado que o caso contra ele não transitara me julgado —, Rendeiro tentou usar essa bitola num requerimento ao juiz. Mas, em novembro, o juiz do processo acabava por considerar que o caso estava, sim, transitado, ou seja era definitivo quanto a ele.
O antigo banqueiro é ainda alvo de dois outros processos que nasceram deste. Num deles foi condenado a dez anos de cadeia em maio, no outro processo foi condenado a mais três anos de prisão. Na entrevista à CNN Portugal, transmitida esta segunda-feira, o antigo banqueiro revelou que tenciona pedir uma indemnização de 30 milhões de euros ao Estado português numa ação movida junta do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem porque, sustenta, “em termos internacionais, processos que durem mais de sete anos são processos em falha”.
De facto, já houve processos no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em que Portugal foi condenado a pagar indemnizações aos arguidos pelo tempo que o sistema judicial demorou a resolvê-los. Num acórdão cuja decisão foi conhecida em 2015, lê-se mesmo que os danos causados nestes casos, “mesmo quando não se prova que a vítima sofreu um grande sofrimento ou uma mudança sensível de vida ou de comportamento”, têm de ser compensados.
“Incumbe ao Estado organizar o seu sistema judicial de modo a evitar que os processos se eternizem nos tribunais, por meio dos incidentes e dos sucessivos recursos permitidos pela lei interna”, lê-se, imputando às instâncias públicas a responsabilidade de não atuarem para minimizar o impacto de eventuais estratégias dilatórias nos processos judiciais, como terá acontecido no caso de Rendeiro. “A duração global de um processo por mais de oito anos traduz-se, em si, numa disfunção da justiça”, acrescentam os decisores, referindo que o excesso deste período de tempo viola a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a própria Constituição.
Este tribunal reconhece, no entanto, que a própria jurisprudência portuguesa do Supremo Tribunal Administrativo “evoluiu muito no decurso dos últimos anos”, acabando por se aproximar daquilo que considera ser o “prazo razoável” estipulado no artigo 6.º 1) da Convenção. Há mais um ponto importante: muitas das decisões consultadas pelo Observador fazem a ressalva de que o prazo razoável de um processo depende muito da sua complexidade. Na entrevista, Rendeiro anunciou a sua intenção de levar o seu caso à apreciação dos tribunais internacionais — mas o facto é que essa intenção ainda não foi concretizada e, por isso, não é ainda possível apurar se o TEDH considera que o caso do ex-banqueiro se enquadra naquilo que noutros casos já foi definido como o resultado de uma “disfunção da justiça” ou se a complexidade do processo justifica os prazos atuais.
Quanto aos 30 milhões, um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça português faz menção aos valores que as instâncias judiciais nacionais praticam nestes casos. Na CNN Portugal, o advogado Magalhães e Silva explicou que a indemnização de 30 milhões de euros que Rendeiro quer exigir ao Estado é excessiva, pelo menos quando comparada com as decisões de outros casos.
O atraso na decisão de processos judiciais, quando viola o direito a uma decisão em prazo razoável, é um facto ilícito, gerador de responsabilidade civil do Estado. “Segundo a jurisprudência do TEDH, os danos não patrimoniais que, segundo o conhecimento comum, sempre ocorrem em praticamente todos os casos de atraso excessivo na atuação da justiça — correspondentes ao dano psicológico e moral comum que sofrem todas as pessoas que se dirigem aos tribunais e não vêem as suas pretensões resolvidas num prazo razoável — merecem, em princípio, a tutela do direito, não sendo de minimizar na respetiva relevância, sem prejuízo de prova em contrário ou de diferente causalidade”, lê-se. E os padrões de valores fixados por este tribunal europeu, lê-se, rondam os mil e os 1500 euros. Se o atraso for considerado excessivo, poderá chegar aos 2100 euros. Não é, para já, claro que o processo de Rendeiro se enquadre nos casos já analisados pelo TEDH.
Inconclusivo
“O Ministério Público não tem uma única prova que ligue a Maria ao descaminho”
Ainda na entrevista à CNN Portugal, João Rendeiro defendeu que o Ministério Público “não tem uma única prova” que relacione a sua mulher com o crime de descaminho das obras de arte de que era fiel depositária. Existem alguns erros nesta ideia apresentada por Rendeiro.
Desde logo, erros de terminologia. O processo instaurado pelo Ministério Público para investigar eventuais crimes de descaminho e de branqueamento está, ainda, na fase de inquérito. O que significa que não é possível falar ainda em “provas”, mas antes em “indícios” ou, quando muito, em “provas indiciárias” da eventual prática de crimes.
Maria de Jesus Rendeiro condenada a pagar multa por deixar escapar obras de arte do marido
Mas há também erros de substância. Maria Rendeiro foi constituída há sensivelmente 11 anos (a 11 de novembro de 2010) como “fiel depositária de mais de uma centena de objetos” apreendidos ao seu marido, como garantia para o pagamento de indemnizações aos lesados do Banco Privado Português. Essa informação consta, entre outros, do processo em que a mulher do ex-banqueiro foi condenada a pagar uma multa de mil euros precisamente por incumprimento dos seus deveres como fiel depositária.
Paralelamente, o Ministério Público abriu um segundo inquérito para apurar responsabilidades nos crimes de descaminho e desobediência que suspeitava terem sido cometidos relativamente a essas obras arrestadas. “Havia indícios claros de que tinham sido praticados crimes e foi aberto um novo inquérito”, recorda o advogado Paulo Sá e Cunha ao Observador.
É no âmbito desse segundo processo que Maria Rendeiro acaba por ser “detida e interrogada”, acrescenta o especialista em Direito Penal. “As circunstâncias apontam para que [a mulher do ex-banqueiro] terá responsabilidades” relativamente a esses crimes, continua Sá e Cunha. Porquê? Porque as obras “não estavam num armazém fechado, que não estivesse 24 horas por dia ao dispor” de Maria Rendeiro. Pelo contrário, essas obras “estavam em casa” da própria mulher de Rendeiro.
E os indícios existentes mostram que “as obras em casa foram retiradas do local e [não foram] substituídas sem que ela soubesse” desses acontecimentos. “São provas indiciárias que têm alguma solidez e que apontam para que [Maria Rendeiro] ou é autora ou sabia [destes factos] ou teve alguma intervenção” nos mesmos. No mínimo, poder-se-á considerar uma “cumplicidade” na prática desses crimes, conclui o advogado ao Observador.
Portanto, a alegação de que o Ministério Público não tem “uma única prova” de que Maria Rendeiro está relacionada com o desaparecimento de obras arrestadas pela Justiça portuguesa, e de que era fiel depositária, carece de sustentação. Os quadros e outros objetos de arte estavam à guarda da mulher de João Rendeiro desde 2010, na sua própria casa, e o facto de terem desaparecido, nalguns casos, e poderem ter sido falsificadas, noutros casos, sustentam a constituição de Maria Rendeiro como arguida e a aplicação da medida de coação de prisão domiciliária.
Errado