No arranque de 2022, Pedro Passos Coelho foi desafiado a candidatar-se à liderança do PSD para suceder a Rui Rio. O Observador sabe que era esse o desejo de muitas figuras influentes da família social-democrata e algumas delas fazem hoje parte da linha oficial do partido, próximas de Luís Montenegro. O antigo primeiro-ministro, no entanto, resistiu ao canto de sereia, com os argumentos que vai repetindo aos que lhe são mais próximos: o regresso à política ativa não estava fechado, como não poderia estar, mas aquele não era o seu tempo. Como este também não o é. Ainda não, pelo menos.
A sombra de Passos tem sido um fardo pesado para Montenegro. Tão pesado que é anterior à sua ascensão ao poder. Os primeiros meses do pós-Rio foram de grande agitação no PSD. O resultado desastroso nas legislativas de janeiro confirmou o fim de linha de Rui Rio, que tinha apostado todas as fichas naquelas eleições desde o minuto zero da sua liderança. Era preciso encontrar um sucessor, mas o ciclo político era tudo menos entusiasmante: António Costa acabara de conquistar uma maioria absoluta, que se julgava à prova de bala, qualquer novo líder social-democrata teria uma travessia de quase cinco anos no deserto da oposição, com umas europeias previsivelmente complicadas pelo meio, e com uma bancada parlamentar feita à imagem e semelhança de Rui Rio.
Em cima de tudo isto, cerca de dois meses antes, o partido foi chamado a escolher entre Rui Rio e Paulo Rangel, dando a vitória ao primeiro e tornando improvável uma terceira corrida do eurodeputado à liderança social-democrata. Carlos Moedas, que muitos tentaram empurrar para a presidência do PSD, tinha (e tem) um calendário político adverso – as autárquicas são em 2025, as legislativas um ano depois, em 2026, o que significa que teria de abdicar das primeiras para abraçar, com seriedade, as segundas. Sobrava um candidato com hipóteses reais de disputar as eleições diretas: Luís Montenegro. Mas o antigo líder parlamentar não era um nome unânime, ao contrário do que hoje pode parecer. Bem pelo contrário.
Foi neste contexto que surgiram as tentativas de convencer Pedro Passos Coelho a retomar as rédeas do partido — convite que o antigo primeiro-ministro declinou. Tentativas protagonizadas por elementos que hoje fazem parte ou orbitam em torno da atual direção. Aliás, o debate sobre a possibilidade de ter Passos a suceder a Rio nasceu muito antes, antes até de Rangel desafiar o então líder social-democrata. Em maio de 2021, quando roubou todos os holofotes do congresso do Movimento Europa e Liberdade (MEL), ainda antes da antecipação das eleições legislativas, o antigo primeiro-ministro foi apontado com insistência à presidência do partido. E também aí Pedro Passos Coelho fez questão de avisar: não estava disponível.
Como revelava aqui o Observador, a vontade do ex-presidente social-democrata era manter-se fora dos palcos principais e toda e qualquer conversa sobre um eventual regresso à liderança do partido era extemporânea. Também se notava que se um dia Passos decidisse avançar para a liderança do PSD, e esse cenário não estava excluído, como não está hoje, só o faria se entendesse que tinha condições objetivas de chegar a primeiro-ministro. De maio de 2021 para cá, nada mudou.
Mesmo com muitos a suspirar por Pedro Passos Coelho, alguns a insistir na hipótese “Moedas”, uns a tentar convencer Rangel a voltar a tentar e outros a piscar o olho a figuras como Miguel Pinto Luz ou Miguel Poiares Maduro (que seria sempre um candidato de nicho), Montenegro acabou por avançar e vencer o partido sem grande dificuldade contra Jorge Moreira da Silva.
Com essa vitória, acredita o núcleo duro da direção social-democrata, Montenegro conquistou também o direito de ser candidato a primeiro-ministro nas legislativas de 2026 – ou antes. A menos que, e este é um cenário que ninguém na direção de Montenegro quer considerar, o PSD perca as próximas eleições europeias, em maio de 2024. Aí, tudo estará em cima da mesa – incluindo, o regresso de Pedro Passos Coelho.
Entre o encolher de ombros e a construção de um trunfo
Os sucessivos rumores sobre um eventual regresso de Passos não ajudam a atual direção social-democrata, que tem oscilado entre tentar marcar a agenda política e mediática (com assumidas dificuldades), críticas ao Governo, propostas alternativas, e a necessidade de apagar fogos internos (vejam-se os casos de José Pinto Moreira ou a tensão com a bancada parlamentar), resolver a relação com Marcelo Rebelo de Sousa e conter os avanços de André Ventura e um embaraço chamado Chega.
No meio deste caldo, a sombra “Passos” incomoda, cria ruído, atrapalha. Mas elementos próximos de Montenegro vão resumindo a coisa da seguinte forma: não há nada que possam fazer a não ser trabalhar para continuar a conquistar a confiança dos militantes e dos eleitores. A popularidade de Passos não se apaga, nem se combate, porque de alguma forma se transformou num mito em muitos setores do partido e da direita. Enquanto não tiver resultados nas urnas para mostrar — as sondagens prestam-se a muitas leituras, nenhuma delas antecipa um caminho fácil ao PSD para ganhar e, mais importante, governar –, nenhum líder social-democrata estará à altura da sombra.
Existe no PSD, aliás, quem costume lembrar Durão Barroso e o seu processo de afirmação como líder. Na altura, ninguém apostava um centavo na sua sobrevivência. Diziam que não tinha ideias, que não estava à altura do cargo, que era de transição; e, mesmo apesar de todos os vaticínios, sobreviveu a uma derrota nas europeias, acabou primeiro-ministro mesmo contra as piores sondagens, e, mais tarde, presidente da Comissão Europeia. Montenegro pode seguir-lhe o exemplo e vingar, aposta-se na atual direção do PSD.
Ainda assim, nos últimos tempos, alguns destacados dirigentes sociais-democratas começaram a tentar lançar uma eventual candidatura de Passos às europeias de 2024. A escolha cumpriria uma dupla função: dava um trunfo objetivo a Montenegro, que redobrava as suas hipóteses de ter um resultado positivo numas eleições teoricamente difíceis; ou, em contrapartida, afastava o fantasma que vai pairando sobre a atual direção – imaginando que Passos perderia essa corrida às urnas, ninguém no PSD e à direita poderia dizer com seriedade que faria melhor que Montenegro.
A questão é que essa hipótese esbarra em dois grandes obstáculos: em primeiro lugar, é, neste momento, muito improvável (para não dizer impossível) que Passos esteja interessado sequer nesse desafio – ele que continua achar que o seu projeto para o país ficou inacabado. Basta, aliás, recuperar as palavras que usou quando decidiu recandidatar-se à liderança do PSD em 2016, já depois de António Costa ter formado a ‘geringonça’ e assumido o cargo de primeiro-ministro. “Não posso deixar de afirmar que o projeto que tenho ficou a meio da sua realização, e a necessidade da sua execução no nosso país torna-se ainda mais relevante e premente. Sempre disse que o projeto político que tinha era para duas legislaturas“, notou então o na altura líder da oposição.
Este ideia de projeto inacabado, o facto de ter assumidamente um perfil mais executivo (que também não joga com o cargo de Presidente da República) e a ideia de que sair para a Europa seria sair da primeira liga da política (tornando ainda mais difícil o regresso) são fatores que indiciam que Passos dificilmente aceitaria ser cabeça de lista do PSD nas eleições de maio de 2024. Além disso, e de acordo com perfis recentes traçados pelas revistas “Sábado” e “Visão”, o antigo primeiro-ministro tudo tem feito para se manter próximo da família, algo que não combina com um aventura de cinco ou mais anos em Bruxelas.
Tentativa de exílio irrita passistas
De resto, a insistência nessa ideia já começou a irritar alguns dos mais próximos de Passos, o que nota algum desconforto com aquilo que vem sendo percecionada como “manobra da diversão” com origem na própria sede nacional do partido. “Passos não vai servir de lebre a Montenegro”, avisou Miguel Relvas, citado pelo semanário SOL. “Espero que a direção do PSD não esteja a tentar tirar Passos Coelho do caminho de Luís Montenegro. Acho que Passos Coelho traz apoio e prestígio ao PSD. Soma, não diminui. Não vejo necessidade de afastar seja quem for”, deixou claro Vasco Rato, em entrevista ao Observador.
Ou seja, as sucessivas notícias sobre alegada vontade da direção social-democrata em fazer de Pedro Passos Coelho o poster boy do partido nas próximas europeias estão a ser interpretadas por alguns elementos próximos do antigo primeiro-ministro não como um desejo genuíno e convicto de contar com Passos, mas como uma tentativa encartada de criar um facto político para o afastar, sacudir a sombra e de o exilar politicamente. O incómodo é palpável, portanto, e este não é sequer o primeiro irritante.
No passado, Passos não gostou quando Montenegro ensaiou uma aproximação a Rui Rio, com as manifestações de apoio no congresso que o entronizou pela terceira vez e depois na campanha para as legislativas, com direito a passeata de braço dado. Passos considerou esses gestos um erro estratégico e uma cedência taticista, sabe o Observador. A relação entre ambos normalizou-se depois disso, sendo a Festa do Pontal, durante o verão de 2022, o momento de celebração, com os dois a aparecerem lado a lado na rentrée social-democrata, a primeira de Montenegro.
As coisas azedaram novamente quando Passos decidiu tomar posição no debate sobre a eutanásia, criticando a implicitamente a estratégia de Montenegro e tentando amarrar o partido e uma futura maioria de direita a uma futura reversão da lei. O atual líder social-democrata não gostou e tentou consumar a emancipação, com elementos do núcleo duro de Montenegro a assumir que o objetivo era mesmo marcar uma posição e passar uma mensagem para dentro e para fora: quem manda no PSD é Montenegro, não Passos. Nos bastidores, passistas e senadores do partido falaram de “birra”, “infantilidade” e “tentativa de matar o pai político“.
Já nessa altura, Pedro Santana Lopes, que conhece como poucos a psique social-democrata, escrevia nas estrelas: “Pedro Passos Coelho foi muito veemente e Luís Montenegro não achou graça nenhuma. Passos Coelho está a marcar espaço. Pode ser para as presidenciais ou pode ser [para a liderança do PSD], se isto correr muito mal a Luís Montenegro…”. E esta é a chave para se entender a verdadeira dimensão da sombra de Passos: ou existe um redondo ‘não’ do próprio que sirva para diminuir as expectativas dos que esperam por ele e não acreditam em Montenegro; ou resultado nas eleições de maio de 2024 é de tal forma convincente que vai diluir com naturalidade o mito.
Europeias são vacina anti-Passos
É neste contexto que os suspiros por Passos se tornam o maior grão de areia na engrenagem Montenegro – é altamente desgastante para uma liderança que se quer afirmar ter jornais e televisões ocupados a discutir o sebastianismo social-democrata. A grande aposta do núcleo duro de Montenegro é, por isso, uma: se o líder do PSD vencer as europeias, essa conversa nem sequer se colocará – a legitimação do atual presidente ficará completa com uma vitória nas urnas. E mesmo perdendo, tudo dependerá dos números registados e das alternativas que existirem. Em caso de hecatombe, o caminho ficará estreito; se for por números dignos, Montenegro terá de medir o pulso ao partido e perceber que condições tem para continuar.
A esta distância, acredita-se na equipa do líder social-democrata, mesmo num cenário de derrota, não há, à exceção de Passos, candidatos sérios à presidência do partido. Paulo Rangel e Miguel Pinto Luz são ambos vice-presidentes do partido e serão sempre corresponsabilizados pelos resultados que o PSD venha a ter. Jorge Moreira da Silva, que foi a jogo nas últimas diretas, voltou a estar mais ativo, mas não assusta os homens de Montenegro; alguém vindo da linha de Rui Rio (André Coelho Lima ou Paulo Mota Pinto, por exemplo) é encarado como tendo poucas hipóteses reais; e outras figuras, como Miguel Poiares Maduro ou Pedro Rodrigues, idem.
Apenas Carlos Moedas, que vai mantendo o tabu sobre o que pretende fazer no futuro, faria alguma mossa. Mas, além do calendário político ingrato que o autarca tem pela frente, vai crescendo a convicção junto de alguns elementos da direção do PSD de que o presidente da Câmara Municipal de Lisboa está a esgotar o seu capital político depois de uma vitória surpreendente nas últimas eleições autárquicas. As promessas por cumprir, as contradições, as polémicas e as gafes de Moedas são assinaladas por alguns dos mais próximos de Montenegro sempre que o assunto é uma possível entrada do autarca na corrida pela liderança do PSD.
Tudo somado, mesmo que tenham a profunda convicção de que a vitória nas próximas europeias é perfeitamente alcançável, os homens de Montenegro também acreditam ter conforto para segurar o partido perante uma eventual derrota nas eleições de maio de 2024. A popularidade de Passos assusta, sim, e quanto a isso não há nada que possam fazer. Em contrapartida, alguns dos mais destacados dirigentes do PSD têm a certeza de que o antigo primeiro-ministro nunca será candidato contra Montenegro. Um teria de sair para que outro tivesse caminho livre — e é muito pouco provável que o atual presidente do PSD o queira fazer em circunstâncias minimamente favoráveis.
Já os outros fantasmas, julga-se na São Caetano à Lapa, estão perfeitamente exorcizados: Rangel e Pinto Luz estão amarrados ao mastro da nau, Moedas tem o seu próprio navio a meter água, Moreira da Silva e todos os demais candidatos a candidatos são pequenas ilhotas, sem o peso político necessário para desafiar um líder que tem dedicado parte do seu tempo a cortejar as bases e o aparelho social-democrata. A menos que exista uma escorregadela monumental nas europeias, a alternativa à direita vai ser feita com e por Luís Montenegro, sem a ajuda de Marcelo Rebelo de Sousa. Ou apesar de Marcelo.
A irritação com Marcelo
Se há algo em que passistas e indefetíveis de Montenegro estão de acordo é em condenar a forma como Marcelo Rebelo de Sousa tem insistido num eventual regresso de Pedro Passos Coelho à vida política ativa – sobretudo porque muitos no PSD entendem este endosso precoce de Marcelo a Passos como artificial e taticista dada a histórica e conturbada relação entre os dois — muito mais antiga do que o episódio do “catavento de opiniões erráticas” poderia fazer pensar.
Aliás, a recente evocação que Marcelo fez de Pedro Passos Coelho é vista como mais um momento embaraçoso do Presidente da República. À boleia da intervenção que o antigo primeiro-ministro fez no Grémio Literário, quase inteiramente dedicada à Europa e com uma referência ao seu “horizonte político” — a frase completa de Passos foi “não teremos [união orçamental e de dívida] nos anos mais próximos e não o antecipo no horizonte da minha vida política e pessoal” –, Marcelo precipitou-se em declarações públicas a sugerir um possível regresso do messias e a desafiar todos a “fixarem o dia”.
Menos de um dia depois, o Expresso atribuía a Marcelo Rebelo de Sousa uma análise muito menos positiva sobre Passos, apontando-lhe fragilidades, um tom grave e pessimista, pouco mobilizador, excessivamente colado à ideia de austeridade, despido de esperança. “É uma enorme maldade. Mais uma”, comenta com o Observador um destacado dirigente social-democrata. Num dia, Marcelo adensou a sombra de Passos, fragilizando Montenegro; menos de 24 horas depois, os ecos das suas reservas em relação ao antigo primeiro-ministro ocupavam uma página de jornal, prejudicando gratuitamente Passos, que se tem mantido longe das conspirações e cálculos que fazem sobre si. Principal vítima atingida por Marcelo: o PSD.
“O Professor Marcelo Rebelo de Sousa não vê de facto o PSD como alternativa. Se calhar, a menos que fosse ele a liderar o partido, não vê ninguém capaz de o fazer. Tem contribuído para enfraquecer todas as lideranças do PSD desde que assumiu a Presidência da República. Parece-me evidente”, lamentava o mesmo Vasco Rato em entrevista ao Observador, engrossando o coro de críticos que existe no PSD em relação a Marcelo. Para estes, o atual Presidente da República não está verdadeiramente preocupado com a existência de uma alternativa à direita, muito menos com a sua família social-democrata; está centrado no seu legado e popularidade, secando tudo à volta.
De resto, a evocação constante de Passos e a crítica à liderança em funções nem sequer é uma novidade deste ciclo político. Já em maio de 2021, Marcelo Rebelo de Sousa sugeria que Rui Rio poderia estar de saída e alguns dos seus mais próximos transmitiam que o verdadeiro desejado de Belém era, na verdade, Pedro Passos Coelho. Rui Rio estava na antecâmara das autárquicas e as declarações de Marcelo sobre a sua eventual saída deixaram os homens do antigo presidente da Câmara do Porto de cabelo em pé. Nessa altura, aos olhos presidenciais, o antigo primeiro-ministro era o único capaz de federar a direita. Nada de novo, portanto.
É à luz deste prisma que o quartel-general social-democrata analisa as críticas frequentes de Marcelo ao caminho seguido por Luís Montenegro e as sucessivas referências a Passos. Marcelo, que nunca esteve verdadeiramente alinhado com o antigo primeiro-ministro, que teve uma relação distante com Rui Rio (para dizer o mínimo), que não hesita em puxar publicamente as orelhas a Luís Montenegro, nunca será um aliado do PSD — pelo contrário. E as referências a Passos são apenas a extensão do lado lúdico com que Marcelo olha para a política. Um e outro, Montenegro e Passos, estarão bem cientes disso. Mas atrapalha mais a afirmação do líder de carne e osso do que da sombra.