Todos os meses era o mesmo ritual. Em dia de reunião, Manuel Joaquim punha-se a caminho do edifício da Câmara Municipal do Montijo para cumprir uma missão: como porta-voz dos moradores do Afonsoeiro, não falhava uma oportunidade para exigir que uma das estradas principais da localidade fosse alcatroada. Um dia ligaram-lhe. Havia outra reunião, precisavam que voltasse à luta. Mas não podia mais. “Eu já não tenho capacidade para ir, estou desgastado”, disse a quem o escutava do outro lado da linha. “Mas o meu filho acompanhou isto tudo, ele gosta destas coisas, vai ele no meu lugar.” Para Pedro Marques, a consciência política acabava de ganhar forma. Em menos de nada seria eleito vereador, depois secretário de Estado e depois chegava a ministro, antes de ser lançado como a principal figura do PS às eleições europeias. A confirmação chegou este sábado, pela voz de António Costa. Mas parecia tudo escrito desde o primeiro momento.
Humberto Lopes já o conhecia desde miúdo. Em 1997, quando Pedro Marques tinha 21 anos, foi o antigo presidente da Junta de Freguesia de Afonsoeiro quem o chamou para integrar as listas do PS naquelas autárquicas. Queriam vencer a corrida e roubar a junta ao PCP. Na noite das eleições, quando o ex-autarca percebeu que o resultado lhe dava a vitória, a surpresa levou a melhor. O PS conseguiu uma maioria relativa, que reforçaria com um acordo pós-eleitoral com o candidato comunista. “Eu não estava mesmo à espera de ganhar”, admite ao Observador o antigo autarca, que puxou o então muito jovem socialista para a sua primeira vitória eleitoral. “Convidei-o porque ele vinha de famílias sem reparos, famílias de bem, era uma mais valia para a nossa lista”, conta Humberto Lopes.
O Afonsoeiro era uma terra de operários fabris, muito diferente daquilo em que se transformaria com a construção da Ponte Vasco da Gama. Antes desse boom que trouxe o centro comercial e os novos moradores à procura de casa a preços mais acessíveis que os da capital, os cerca de 30 mil habitantes da localidade viviam do trabalho que encontravam nas fábricas de transformação de carne, da cerâmica e da cortiça que, entretanto, fecharam, uma por uma, até não restarem mais fábricas. A família de Pedro Marques era “humilde”, como os operários fabris, mas tinha, ainda assim, um percurso diferente da maioria.
O pai era piloto de helicópteros. Passou pela Força Aérea, mas acabou por seguir para o setor privado, onde se tornou instrutor de pilotos. A mãe era funcionária da junta de freguesia, tinha um avô funcionário bancário. Os avós, da zona do Caramulo, tinham-se fixado por ali. E Pedro Marques também se manteve sempre por perto, mesmo depois de casar e de os três filhos nascerem — uma filha mais velha e um casal de gémeos. “Tenho uma filha com dez anos e duas vezes cinco”, já disse em tom de brincadeira.
Foi um “aluno brilhante”, mas nunca se escondeu nessa faceta. “Lembro-me de ele ir trabalhar com o tio, que era pedreiro, nas férias da escola”, recorda Humberto Lopes. “Era um miúdo de trabalho, não é um académico, como dizemos dos políticos, que nascem e são formados para a política. Fez calos nas mãos.” E atirou-se sempre de cabeça a cada novo desafio.
Foi o que aconteceu, por exemplo, quando foi escolhido para o primeiro lugar das listas do PS às legislativas de 2011. “Ele foi candidato por Portalegre e, agora, sabe tudo sobre o distrito, sobre a indústria local, sobre quem é quem”, comenta ao Observador um dos membros do Governo. Foi o que aconteceu, também, quando António Costa lhe pediu que organizasse o Programa Nacional de Reformas, um documento estruturante para a política de investimentos do executivo socialista a médio-prazo. Pedro Marques “foi ver todos os relatórios da União Europeia que tinham sido publicados sobre Portugal nos últimos anos”, recorda a mesma fonte.
“É uma pessoa que tem tendência para mergulhar a fundo nos assuntos, a cada tema que lhe aparece. E naqueles dias em que tem um novo tema fica absolutamente focado, quer chegar ao fundo das questões”, resume uma colega de longos anos de atividade política conjunta. E essa persistência e dedicação valeram-lhe um lugar de destaque na equipa de António Costa. É, aliás, um dos poucos contactos do célebre grupo de conversação no WhatsApp com o privilégio de discutir a estratégia política do Governo com o primeiro-ministro. Para além de António Costa, fazem parte Augusto Santos Silva, Vieira da Silva, Eduardo Cabrita. E Pedro Marques.
Um caminho escrito desde o início
A pasta que recebeu do pai para interceder pelas famílias do Afonsoeiro talvez tenha sido uma premonição, um sinal de que o caminho do futuro ministro andaria a par dos grandes projetos públicos e que estaria também ligado à faceta de Bruxelas mais apreciada nas capitais da União Europeia — os fundos europeus. Logo aos 21 anos, na altura em que é chamado para tesoureiro da junta de freguesia, o recém-licenciado Pedro Marques é convidado por um dos seus professores do Instituto Superior de Economia e Gestão para integrar a equipa que dava apoio técnico na área da “renovação urbana” no QCA II, um dos quadros comunitários precursores do atual Portugal 2020. Nas décadas seguintes, o futuro ministro nunca andaria longe desta área.
Aos 25 anos, já tinha participado na gestão de fundos comunitários para melhoria das zonas envolventes de bairros sociais (parques infantis, acessos, etc.) e já tinha sido assessor do ministro do Trabalho e da Solidariedade Paulo Pedroso (onde lidou com as questões do envelhecimento demográfico) quando é eleito vereador na Câmara Municipal do Montijo. O PS, que quatro anos antes ultrapassara o PCP no concelho, arranca a sua primeira maioria absoluta. Maria Amélia Antunes entrega-lhe os pelouros da Ação Social e Saúde, Habitação Social, Juventude, Planeamento e Desenvolvimento Económico.
Mas essa experiência teve um fim inesperado, que alguns consideram demasiado abrupto. De tal forma que, passados 17 anos, a então presidente da Câmara do Montijo prefere não falar sobre o assunto. “Passou muito tempo e posso enganar-me a recordar alguns dos momentos”, justifica-se ao Observador Maria Amélia Antunes. É Humberto Lopes quem recupera memórias, ainda que vagas, desse momento. Faltava um ano para as autárquicas seguintes, mas José Sócrates conseguia uma maioria absoluta inédita para o PS. O ministro Vieira da Silva chama Pedro Marques para a sua equipa, onde também estava Fernando Medina, atual presidente da Câmara de Lisboa. “Deixou a Amélia magoada, porque saiu sem aviso prévio”, conta o antigo autarca.
É a única nota dissonante, o ponto fora do sítio nos relatos das várias pessoas com quem o Observador falou nos últimos dias e cujos percursos se cruzaram, em algum momento, com o de Pedro Marques. O “miúdo certinho” e “aluno brilhante”, casou com a namorada da faculdade e teve os três filhos. “É um pouco como os textos da Clara Ferreira Alves: pode-se discordar radicalmente dela, mas o texto está sempre impecável”, ilustra um colaborador de longa data. Na passagem pela equipa do ministro Vieira da Silva — num salto para a política nacional —, Pedro Marques deixa a sua primeira marca, ao ajudar a concretizar uma reforma da Segurança Social que pretendia garantir a sua sustentabilidade a longo prazo. “O Vieira da Silva foi o ideólogo, o Pedro Marques foi o operacional” dessa reforma, resume o mesmo colaborador.
Além desse contributo, o secretário de Estado também trabalhou de perto com os representantes do setor social. Numa fase em que as contas públicas começavam a dar sinais de instabilidade, no final do primeiro Governo de Sócrates, Manuel Lemos sentou-se algumas vezes à mesma mesa de Pedro Marques, a discutir, por exemplo, o protocolo de preços aplicados pelas Instituições Particulares de Solidariedade Social. “O setor social, dentro do rigor que é necessário ter, não é uma matemática pura, há o lado dos afetos, e ele tinha esse lado”, recorda o presidente da União das Misericórdias Portuguesas. “Ele era um jovem recém chegado, mas tivemos empatia um pelo outro porque ele era rigoroso nas coisas, mas tinha sensibilidade”, diz. Era “um negociador duro”, mas era também “um desapaixonado”, considera Manuel Lemos.
Tal como Medina, Pedro Marques cumpriu os quatro anos da maioria absoluta. E ainda ficou na equipa nos outros dois anos de maioria relativa, já com Helena André na liderança do ministério. A forma como essa fase terminou é matéria dos livros de história da política contemporânea: esquerda e direita juntam-se numa grande e improvável frente parlamentar que chumba o PEC IV e que leva à queda do Governo socialista. Chegava a hora de ir para o terreno ganhar votos. Na noite em que o PS de José Socrates perdeu as eleições legislativas de 2011, num universo de 61.598 votantes em Portalegre, Pedro Marques ficou a 14 votos de conquistar a vitória para o PS no distrito. Perdeu para o PSD mas conseguiu, ainda assim, um dos dois lugares elegíveis.
Esteve três anos no Parlamento e chegou a vice-presidente da bancada socialista. Até que quis sair. Numa carreira em funções públicas que já somava quase 20 anos, a um ano de novas legislativas, Pedro Marques anunciava aquilo que parecia o fim da sua intervenção política, ia voltar pela segunda vez ao setor privado. Entre 1999 e 2001, tinha sido consultor da CISED (na mesma altura em que concluía o mestrado em Economia Internacional) e, em 2014, juntava-se à comissão executiva da Capgemini Portugal.
[A entrevista que Pedro Marques deu ao Observador, no último congresso do PS]
https://www.facebook.com/ObservadorOnTime/videos/pedro-benevides-entrevista-pedro-marques-novo-membro-do-secretariado-do-partido-/1068138050017535/
O corte não durou um ano. “Não estava nos meus planos” regressar, confessaria ao Público, mais tarde. António Costa precisava dele para colaborar nos encontros do Novo Impulso à Convergência, a equipa que preparou o programa de Governo do secretário-geral socialista. “Se o The New York Times te fizer um convite, tu aceitas de certeza absoluta, mesmo que vás ganhar menos”, diz uma fonte próxima do ministro sobre a forma como o desafio de Costa foi encarado. O PS chega ao Governo em 2015 e Pedro Marques dá novo salto, dessa vez para uma pasta ministerial, com responsabilidades no Planeamento e nas Infraestruturas.
Infraestruturas: o lado negro da governação
30 de outubro de 2018, um dia difícil para Pedro Marques. No Parlamento, o ministro foi alvo de uma frente de críticas que poucas vezes esteve tão unida no Parlamento. O Governo tinha apresentado o Orçamento do Estado há duas semanas e os partidos começavam a discutir o documento na generalidade. O responsável pela tradução de fundos em obra estava no centro das críticas.
Se o Bloco de Esquerda sublinhava o baixo nível de investimento público — “consistentes com notícias recentes” e que apontavam, sobretudo, ao Metro de Lisboa, à CP e à EMEF —, o PCP notava toda a opacidade à volta do investimento para este ano, o último da legislatura. “É impraticável debater o investimento numa proposta de Orçamento do Estado onde não há informação detalhada dos investimentos, nem da calendarização nem dos financiamentos”, disse Bruno Dias. “Esta discussão não é clara.”
A direita conclui o que a esquerda já tinha começado, e o tom foi sempre o mesmo. “Sempre propagandearam investimentos públicos que não concretizaram”, acusou Emídio Guerreiro (PSD). No Parlamento Europeu, a leitura dos eurodeputados portugueses não andava longe disto. Já em janeiro, quando o nome do PS para as europeias já era o pior segredo da política nacional, José Manuel Fernandes acusava o ministro de ter “aversão” ao Plano Juncker. O Governo, atirava o social-democrata, “não usou um cêntimo” do pacote de investimento da União Europeia.
Em novembro, pouco depois do ataque cerrado no Parlamento, o ministro era forçado a admitir que as reparações de comboios estavam “abaixo do previsto”. O verão tinha sido caóticao. Os atrasos e as supressões no serviço ferroviário somavam novos casos a cada dia. A situação tornara-se de tal forma crítica que a CP chegou a reduzir a oferta para tentar mascarar o número de comboios suprimidos. Nem os autocarros disponibilizados para substituir a falta de comboios resolvia o problema.
Em vários momentos da legislatura, Pedro Marques foi acusado de “estar cativo” de Mário Centeno, de ser uma vítima do objetivo das Finanças de apresentar trabalho de casa em Bruxelas. Nesses momentos, o palco que Costa tinha oferecido a Pedro Marques foi mais uma oferta envenenada e menos uma montra. As Infraestruturas eram um pólo negativo que apagava qualquer anúncio positivo do lado do Planeamento. Mas essa não é a única fragilidade com que Pedro Marques arranca para a corrida eleitoral.
Ministro Pedro… quê?
Vereador, assessor do ministro, secretário de Estado e, agora, ele próprio ministro. Pedro Marques soma mais de duas décadas em funções públicas e, só nesta legislatura, já teve de lidar com dossiers tão centrais como a renacionalização da TAP, o desenho do próximo quadro de candidaturas a fundos europeus (no âmbito do Portugal 2030), o novo aeroporto complementar de Lisboa, o metro da capital, os comboios. E ainda assim, ao fim destes anos, o ministro é provavelmente uma figura menos familiar para muitos eleitores.
Os rumores de que seria ele o escolhido por António Costa para o primeiro lugar da lista do PS às europeias arrastaram, aliás, o nome do cabeça-de-lista para a primeira polémica à sua volta. À medida que iam sendo anunciados os protagonistas do CDS, do Bloco de Esquerda, do PCP e, finalmente, do PSD, cresciam as críticas ao facto de o ainda eventual cabeça-de-lista do PS surgir, dia sim dia não, a cortar fitas pelo país fora. Sobretudo, do lado do PSD.
Rio apresentou-o e Rangel entrou ao ataque na campanha com desafios a António Costa
Num minuto, Rui Rio apresentou Paulo Rangel como cabeça-de-lista do PSD às europeias e, no minuto seguinte, o eurodeputado atirava as primeiras farpas da campanha. “Neste momento, subsiste a legítima suspeita de que houve o aproveitamento de um cargo ministerial para engendrar, lançar e promover um candidato”, disse na sede do PSD, na sua primeira conferência de imprensa. Rangel chegou mesmo a exigir explicações de António Costa sobre aquilo que definiu como um “candidato disfarçado de ministro” que andava em “campanha dissimulada”, de uma inauguração para um anúncio de obras públicas. Ficou sem resposta, mas a campanha promete ser acesa.
Nos próximos 15 dias, até apresentar a lista completa dos candidatos socialistas ao Parlamento Europeu, o PS vai ser só Pedro Marques. É preciso mostrar o ministro, dar-lhe tempo de antena e torná-lo uma figura reconhecida pelos eleitores. Mas uma coisa é certa: não havendo muitas dúvidas de que será eleito em maio, Pedro Marques ruma a Bruxelas como o mais novo eurodeputado da história do PS, com 42 anos e na sucessão de nomes como João Cravinho, Maria de Lurdes Pintassilgo, Mário Soares, António Vitorino, Vital Moreira e Francisco Assis. A prioridade vai ser instalar-se com a família. Mas, logo a seguir, o futuro eurodeputado socialista já tem planos: vai direto ao número 104 da Avenue de la Couronne. Pedro Marques quer inscrever-se na Casa do Benfica da capital belga.