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É só o começo e dura uma vida. Nem sempre é um céu, ou um mar de rosas, e seja qual for o lugar comum eleito, é verdade que a maternidade encerra os seus espinhos e angustiantes descidas ao inferno. Mas serão os aspetos mais desafiantes de um longo e complexo processo capazes de comprometer a magia de quem recebe a chegada de um filho? “Surgem, cada vez mais, artigos de opinião sobre as experiências da maternidade como se ela fosse, sobretudo, negativa”, rebate o psicólogo Eduardo Sá, que no mais recente livro promete guiar os leitores, decifrando mistérios e desfazendo medos e dramas, dos meandros da gravidez até à vida do bebé quando nasce. “Quando Eu Estava na Tua Barriga” é para a futura mãe, jovem ou menos jovem, casada ou solteira, a viver com outra mulher ou com outro homem, a ter o primeiro filho ou os seguintes, e para as famílias em geral.
Antes da chegada às livrarias a 23 de junho, o Observador pré-publica três capítulos desta obra com a chancela da Lua de Papel.
Nenhuma gravidez é “só” normal
É verdade que não há maternidades perfeitas. Que toda a gravidez tem um “lado B”. Que ninguém está preparado para ser mãe. Que os desafios que um bebé coloca e tudo o mais que ele exige não dão descanso a uma mãe. Que a maternidade tem momentos muito semelhantes a uma montanha russa de emoções em que, tão depressa, se é Deus, diante de tudo aquilo que um bebé oferece, como se desce a muitos períodos de uma imensa solidão.
Que, durante meses e meses, se deixa de saber o que é dormir uma noite de seguida. Que o cansaço da maternidade vai para além de tudo aquilo que se podia imaginar. E que, às vezes, quando se está perto do colapso, ele se agiganta e não pára de aumentar. Que o isolamento, durante a semana, e a falta de privacidade, ao fim de semana, criam um sentimento permanente de se estar bem com quem se não está. Que uma relação conjugal se constipa toda com um bebé. E que, muitas vezes, aquilo que era uma ligação amorosa se vai fraternizando. Que, ao mesmo tempo que se ganha um bebé, se podem “perder” os pais ou deixar de se ter uma família, tais são as decepções que se acumulam que, na maior parte dos casos, começam pela “falta de apoio”, e se aprofundam com leves omissões e com pequenos-nada. Que a sexualidade de um casal passa a ter, durante muito tempo, uma agenda tão extraordinária que, quando se dá por isso, a espontaneidade parece ter-se extraviado dos gestos mais elementares do desejo e da paixão, a ponto de parecer que há uma sexualidade antes do bebé e outra depois do bebé. Que se desencontram, na maior parte das vezes. Que conciliar a maternidade, uma relação, a família e o trabalho desarruma a vida, as relações e as finanças. E que um bebé é, de tal forma, a obra-prima de uma vida, que ele precede, em grau de importância, tudo o mais. O que põe questões, acentua escolhas e aviva conflitos. Dentro e fora da mãe. E que — sim! — que é muito difícil ser-se mãe. E que isso não se resolve só com instinto maternal e sexto sentido. E que, para mais, tudo se acompanha com erros e com dúvidas. E com (imensos!) momentos em que se deseja muito estar o tempo todo com o bebé e muitos outros em que se anseia ter férias dele, por vários bocadinhos.
E, no entanto, nada disto tira a um bebé a capacidade — mágica! — de arrebatar a mãe. E de a pôr, sem tempo, contemplativa, a perder-se, passeando-se pelo olhar dele. E a comover-se, de cada vez que o observa, e lhe chovem, em cascata, memórias, sonhos, ânsias, e desejos. E de reaprender, por causa dele, a falar sem necessidade das palavras. E de se sentir, em comunhão com ele, ao mesmo tempo, à margem do mundo e no centro do Universo. E a inventar-se para o amor. Só por causa do bem que ele lhe faz.
É verdade que a maternidade nem sempre é um céu. Mas surgem, cada vez mais, artigos de opinião sobre as experiências da maternidade como se ela fosse, sobretudo, negativa. Outros — com base nas incidências pessoais das mães que os escrevem, e sempre à boleia da forma como evocam “estudos científicos” que tentam demonstrar que a maternidade moderna é mais racional, mais desprendida e mais funcional — acabam por afirmar que o aleitamento não contribui para os laços entre a mãe e o bebé. Ou insistem em reivindicar que o colo da mãe não é tão indispensável e tão insubstituível como as mães insistem em considerar. Como se a maternidade moderna fosse diferente. Menos “animal”, menos intuitiva e mais calculada. E, quando não é só beatitude, e traz sobressaltos e contradições — continuando, apesar disso, a ser um laço de exaltação, singular e mágico — ela “só” pudesse ser uma experiência má. Como se a relação da mãe com o bebé ou fosse ou “branco” ou “preto”. E não comportasse sentimentos muito diferentes uns dos outros, que viram a mãe do avesso e a tornam mais bondosa, mais comovente e mais apta para ligar, ligar e ligar (em vez de separar). E, no final, não a revolvesse e não a trouxesse para uma experiência superlativa de bem-querer a que, todos nós, talvez com preguiça, vamos chamando, simplesmente, maternidade.
Eduardo Sá. “Contentamo-nos nas relações, com medo que não venha mais ninguém”
É verdade que vivemos um tempo que confunde ciência e ideologia com uma promiscuidade fora do vulgar. Um tempo em que, a pretexto de uma ideia batoteira de mais “um estudo”, parece querer-nos “linhas rectas”, “curvas normais” ou “desvios-padrão” e, muito pouco, animais cheios de contradições que, todavia, pensam.
Parece que, para estas pessoas muito “modernas”, é difícil aceitar a maternidade como tudo aquilo que nos liga a tudo o que há de mais animal e mais humano. E que continuará a ser — apesar desta visão, por vezes, sombria e má — a experiência que mais nos faz sentir frágeis e imortais. Pessoas de fé. E um mar de dúvidas. Imensos. E mínimos.
O primeiro dia do princípio da vida
E, depois, a agitação, pára. De repente! Já não se tem uma sala de partos cheia de pessoas e agitada. E o “Respire fundo”. Ou o “Aguente só mais um bocadinho”. E mais uma contração e mais outra. E outra. “Vá… Tenha calma!” E uma pessoa respira pela boca, ofegante. E geme. E, então, a anestesia não devia ter feita já efeito? E mais uma contração. “Eu não aguento”. “Está quase! Agora só puxa quando eu disser!” “Acho que fiz xixi…”. “Não se preocupe, minha querida. Quando eu disser, puxe. Por favor.” Já lá vem. “Vá!! Agora, sim…”. “Aiiiiiii!”. “Vá… Só mais um bocadinho… Vem aí!” E, depois, o bebé nasce. Mal o mostram. Tudo passa a correr. Para onde e que foi?“ “Vá, agora vamos ter que lhe fazer uma maldade…”. E alguém pressiona, com muita força, a nossa barriga. E expulsa-se a placenta. Depois, tudo mais calmo. E mais silencioso. E onde está o bebé?… E cosem-nos. E tratam de nós com delicadeza. Mais uns comentários, de circunstância, cheios de ternura sobre o bebé. Mas onde é que ele está?… E o tempo passa e ele não aparece. E, depois, de súbito, ele chega.
De olhos bem abertos. As mãos, fechadas. Todo ele contraído. Com uma cara um bocadinho zangada. E juntam-no a nós. E levam-nos para o quarto. No caminho, o pai e os nossos pais riem. Outros choram. E nós muito agarradas a ele. E deitam-nos, finalmente. E ele ao pé de nós. E, de repente, o mundo parece ter parado. De um minuto para o outro. E estou eu e ele. E tudo o que tinha imaginado não serve de nada porque ele é mais bonito, mais mágico, mais tudo o que a imaginação nunca foi capaz de nos dizer que ele seria. E respiramos, fundo. E choramos. E passamos um dedo, muito ao de leve, pelo seu rosto. E todo ele parece ser de seda. E delicado. E não queremos mais dormir. Só ficar a olhá-lo. O tempo todo nós. E por mais que se estivesse à espera dele, um bebé chega sempre de surpresa. E, de repente, há um antes e um depois de Cristo. E o tempo começa só aí a contar. E hoje, contra tudo o que tínhamos previsto, é o primeiro dia do princípio da vida.
O curriculum dos pais
Percebe‑se o dilema dos pais: ao contrário de tudo aquilo que fazem, profissionalmente, falta‑lhes curriculum. Têm poucos irmãos. Poucos filhos. São pouco tios. E são pais cada vez mais tarde. Logo, não têm nem uma certificação de qualidade nem experiência para serem pais. Sobretudo, perante a arte milenar de cuidar das crianças: qualquer coisa entre serem artesãos de sentimentos, costureiros do sexto sentido e aprendizes da arte de marear com a ajuda de simples sinais. Diante da qual lhes sobram blogues a resumirem a vida mental às neurociências, em que ninguém lhes parece recordar que a intuição humana é o topo de gama do “equipamento de base” que têm dentro de si e onde não lhes recordam que não há GPS que substitua o sentir dos pais quando dizem: “vou por aqui!” Ou seja, num mundo de curvas normais, tabelas e certificações, há qualquer coisa de “jurássico” nisto de educarmos. Em função do que os pais – que, por vezes, se sentem com demasiadas qualificações para determinadas funções – acham que a sua formação parece não acompanhar todos os desafios que uma criança sempre lhes coloca.
Para complicar tudo um pouco mais, os avós – sendo, aos olhos dos pais, muitos menos “qualificados” – têm uma experiência no desempenho da função de pais que lhes dá uma sabedoria (não certificada, é certo), que é de uma utilidade sem fim quando se trata de se sintonizarem com os netos. E, para agravar, ainda mais um bocadinho, tudo isto, os pais estão demasiado habituados a estruturar um curriculum, onde citam, sobretudo, as coisas boas que já fizeram. E, a par, quase sem darem por isso, vão acumulando um outro “curriculum”, feito de fotografias do Instagram e de posts do Facebook, onde em todos os momentos parecem ser seguros das suas opiniões, felizes e sorridentes. E onde tudo (até as sopas!) é muito bonito.
Um dia, passaremos a exigir, associado a tudo o que já fizemos de bom, um curriculum de falhanços. As coisas que ansiámos ser capazes de realizar e que acabaram num enormíssimo fracasso. As vezes em que fomos a jogo e perdemos, sem apelo. Aquilo que tentámos concretizar e que, por preguiça ou por medo, ficou só pelas intenções. Mas que, mais do que tudo o resto que realizámos com boas notas, ajudam a perceber que fomos tenazes e perseverantes, e tivemos a garra de não deixarmos de aprender com os erros. Até conseguirmos tudo o que fizemos bem feito. E que, mais do que todas as vitórias, nos formataram para a sabedoria.
Ora, quando os pais confidenciam que não há nada de mais difícil do que sermos pais, eles têm razão. Mas é, sobretudo, mais difícil quando os pais se imaginam sem qualificações certificadas e sem “técnica” para o serem. E, ao contrário dos “tutoriais” que acabam por ter acerca de quase tudo, acabam a fazê‑lo da mesma forma – empírica e intuitiva (e, às vezes, muito assustada) – que os seus antepassados mais remotos já utilizavam.
Sermos pais não é uma carreira; é um estado de espírito. Que não se atinge à margem dos erros. Bem vistas as coisas, fazemos curriculum, como pais, sobretudo com erros e falhanços. Por outras palavras, nunca estamos preparados para sermos pais! Nunca somos pais da mesma forma duas vezes. Nunca somos pais à margem dos erros, dos enganos e das dúvidas. Nunca somos pais se andarmos sempre à procura de nos certificarmos daquilo que somos capazes de fazer de cada vez que somos pais. Ou se transformarmos os filhos numa outra “carreira” onde os sucessos das crianças pareçam servir – quando não deviam! – como acrescentos ao curriculum dos pais.
Num mundo em que os nossos filhos nos pedem “Pai, vê aí, no Google, se Deus existe!”, reconhecer que sermos pais é aquilo que mais nos torna “reserva natural da vida selvagem”, faz com que seja muito difícil, para todos, sermos pais. (É tudo muito sentido. Muito “olhos nos olhos”. Muito conversado. Muito intenso. Com muitos conflitos. E muito comovente!) Não, os filhos não são difíceis; difícil é a exigência de sermos pais, no século xxi, sem as dificuldades “jurássicas” de todos os pais. E, no entanto, técnica à parte, não há mais nada como termos um filho ao nosso colo e falarmos com ele à margem da necessidade das palavras para nos sentirmos mais próximos de ser Deus! Há coisas – como isto de nos faltar sempre algum curriculum para sermos pais – em que as “tradições” ainda são como eram. Que bom! Não é?…