O cardeal Seán O’Malley, arcebispo de Boston e presidente da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores, foi o pregador convidado pela Conferência Episcopal Portuguesa para orientar o retiro de Quaresma dos bispos de Portugal este ano. Durante cinco dias, em Fátima, O’Malley — que assumiu a diocese de Boston após o escândalo de 2002 divulgado pelo Boston Globe — refletiu sobre diversos temas da responsabilidade dos bispos na Igreja Católica, incluindo na questão dos abusos sexuais.
As meditações de O’Malley estão agora publicadas em livro, num volume intitulado Procura-se amigos e lavadores de pés, editado pelas Paulinas e apresentado na última sexta-feira aos bispos, no final do retiro. O Observador publica agora um excerto do livro — o capítulo que O’Malley dedica à problemática da proteção dos menores na Igreja.
Neste capítulo, o cardeal norte-americano, que é também frade capuchinho, conta como tomou contacto pela primeira vez com o problema dos abusos sexuais quando foi nomeado bispo de Fall River, onde um escândalo de pedofilia tinha acabado de rebentar. Foi aí que começou um longo caminho de trabalho na luta contra os abusos sexuais, que continuou depois em Boston e, hoje, na Comissão Pontifícia criada em 2014 pelo Papa Francisco para erradicar os abusos da Igreja em todo o mundo.
Quando me tornei irmão capuchinho, há muitos anos, pensei que seria enviado como missionário para um dos longínquos destinos confiados à nossa Ordem. Durante os meus anos de seminário, o papa João XXIII pediu que um quinto dos sacerdotes do Canadá e dos Estados Unidos ajudassem a Igreja na América Latina. Isso inspirou-me a aprender castelhano, e, pouco depois de ser ordenado diácono, o Padre Geral escreveu ao nosso Provincial dizendo que queria que eu fosse para a Ilha da Páscoa, a seguir à minha ordenação sacerdotal, onde trabalharia com o frade alemão que estava lá sozinho há 40 anos.
A Ilha da Páscoa é uma das ilhas habitadas mais remotas no mundo. A ilha com habitantes mais próxima é a Ilha Pitcairn, que fica a quase 3000 quilómetros, e o ponto continental mais próximo fica no Chile, a 4000 quilómetros. A Ilha da Páscoa pertence ao Chile e tem cerca de 7000 habitantes, a maioria índios Rapanui. Esta terra é mais conhecida pelas mil enormes cabeças de pedra que os nativos ergueram há 1200 anos.
A par do castelhano, comecei também a estudar Rapanui, a língua falada nessas paragens. Fiquei muito animado com a perspetiva de ir para uma missão tão desafiante. No entanto, na véspera da minha ordenação sacerdotal, o cardeal-arcebispo de Washington, Patrick O’Boyle, chamou o meu Superior para lhe dizer que os imigrantes latino-americanos chegavam a Washington, todos os meses, aos milhares, fugindo das guerras na América Central. Explicou ao Provincial que, na Arquidiocese, só havia um padre a falar castelhano e, por isso, pedia que frei Seán ficasse em Washington para trabalhar com a crescente população hispânica.
Sempre digo que não fui para as missões, as missões vieram ter comigo. Trabalhei durante vinte anos na missão do Centro Católico Hispano… Foi nesses tempos que iniciei a Paróquia Portuguesa, para servir principalmente «retornados» portugueses, oriundos da África Portuguesa que, depois da Revolução, imigraram para os Estados Unidos.
Os vinte anos de trabalho com imigrantes lusos e sulamericanos, em Washington, foram a lua-de-mel do meu sacerdócio e uma alegria absoluta. Eu estava a gostar tanto da minha vida, que Deus, com o seu sentido de humor, me fez bispo. A minha primeira diocese foi as Ilhas Virgens, que, antes de 1917, eram conhecidas como Índias Ocidentais ou Antilhas dinamarquesas. Quando me disseram que ia ser enviado para lá, fiquei surpreendido e porque nunca lá tinha estado, fui ter com um padre que conhecia bem as ilhas para saber o que me esperava. Ele, maliciosamente, respondeu-me: «As Ilhas Virgens são como as Ilhas Canárias – não têm canários.» Mais uma vez, foi uma experiência pastoral extraordinária trabalhar com o povo afrocaraíba que tem uma fé tão profunda e uma bela cultura.
Até esta altura, na minha vida, eu nunca tinha ouvido a palavra pedofilia. Mas, em 1992, fui nomeado bispo de Fall River, no Estado de Massachusetts, também conhecida como a décima ilha dos Açores. Fui enviado para lá pouco depois de ter rebentado um escândalo terrível porque um sacerdote, o padre James Porter, um pedófilo «em série» tinha abusado e violado centenas de crianças.
Assim que cheguei, organizei um encontro com as vítimas e as suas famílias. Quando soube que ia enfrentar um auditório cheio de gente, pedi ao sacerdote meu secretário que deixasse o motor do carro ligado, para o caso de eu ter de escapar rapidamente. Na verdade, estou muito grato por ter tido a oportunidade de ouvir pessoalmente cada pessoa e suas famílias, cujas vidas foram devastadas pelo abuso sexual por parte do clero. Para mim era incompreensível que esse problema pudesse ter ficado oculto por tanto tempo. Por mais dolorosa e penosa que seja a atenção dos media, colocando um holofote sobre o abuso sexual clerical, isso prestou, na verdade, um grande serviço à Igreja. Obrigou-nos a reconhecer os nossos crimes e pecados que causaram tanto dano a crianças e pessoas vulneráveis.
Acredito que parte do problema prende-se com o facto de que, quer a hierarquia da Igreja quer as pessoas na sociedade em geral, não faziam ideia de quanto dano tinha sido causado às crianças abusadas sexualmente e, em particular, quando esse abuso configurava a mais horrenda traição perpetrada por um homem que para aquela criança representava Deus. Sabemos agora que muitas dessas crianças acabaram por se suicidar, outras sofreram de doença mental grave, depressão e, muitas vezes, caíram em vícios terríveis. Em muitos casos, toda a sua vida foi irremediavelmente afetada. Estou convencido de que se, nessa altura, as pessoas na Igreja, tivessem sequer suspeitado de quanto dano estava sendo causado às crianças, não teriam continuado os encobrimentos e teriam afastado do ministério os agressores.
Infelizmente, por muito tempo, os bispos e os superiores religiosos não sabiam como lidar com as acusações de abuso e a maioria das vezes improvisavam. É uma questão que afeta tantas vidas: a vida das vítimas e suas famílias, a vida dos acusados, da paróquia, do presbitério, bem como das autoridades policiais e judiciais. Como há tantos aspetos envolvidos, se alguém estiver improvisando, cometerá muitos, muitos erros. É crucial ter procedimentos claros e conhecidos. Esses princípios devem enunciar o compromisso inequívoco da Igreja com a salvaguarda das crianças como um dos nossos deveres mais sagrados.
Depois de dez anos em Fall River, onde trabalhámos muito com o nosso povo e os nossos padres para desenvolver políticas sólidas para proteção das crianças, acredito que se sararam muitas feridas. E, quando eu pensei que a crise tinha sido resolvida, fui nomeado para a minha terceira diocese, Palm Beach, na Flórida. Ia substituir dois bispos que haviam sido afastados por abuso sexual de menores. Na conferência de imprensa que se seguiu à minha nomeação como bispo, a primeira pergunta que recebi de um jornalista foi: «E você também é pedófilo?»
Depois de um curto período de menos de um ano em Palm Beach, cidade muito conhecida por causa do seu mais famoso habitante, Donald Trump, estava eu reunido com a minha família a comemorar o meu aniversário quando o telefone tocou. Era o Núncio a dizer que o Santo Padre queria que eu fosse para Boston substituir o cardeal Law. Infelizmente, eu não tinha «identificador de chamadas» no meu telemóvel: acho que teria sido tentado a não responder a essa chamada.
A situação em Boston era grave. Se ainda não viram o filme Spotlight, gostaria de os encorajar a fazê-lo. Não é uma visualização fácil: muita dor, muita vergonha; mas foi o princípio do caminho para a conversão, a penitência e o firme propósito de emenda. Pessoas que durante anos sofreram em silêncio chegaram-se à frente. Descobriu-se que os padres que tinham abusado de crianças tinham sido transferidos de uma paróquia para outra. Os nossos sacerdotes e o nosso povo estavam todos profundamente desmoralizados. Muitos viraram costas à fé e deixaram a Igreja, tão grande foi a sua dor e desilusão.
Quando cheguei a Boston, a diocese estava em queda livre, em termos financeiros. A situação ameaçava a existência das escolas católicas, paróquias e apostolados. A arquidiocese tinha um déficeoperacional anual de quinze milhões de dólares. Devíamos trinta e cinco milhões de dólares aos Cavaleiros de Colombo. Os hospitais católicos perdiam quarenta milhões por ano. O fundo de pensões para os nossos funcionários leigos estava em rutura, e o fundo de pensões para o clero estava falido. Além disso, estavam em curso mil ações judiciais contra a diocese por casos de abuso sexual. Eu expliquei ao meu Conselho Presbiteral que, na minha primeira diocese, nas Índias Ocidentais, todo o orçamento diocesano era de trinta mil dólares ano, mas eu não devia nada a ninguém.
Na altura em que fui para Boston, a crise começava a explodir por todo o país e a Conferência Episcopal Americana, sob a liderança muito competente do arcebispo Wilton Gregory, respondeu desenvolvendo políticas nacionais que dão prioridade à salvaguarda das crianças e atendimento às vítimas e que iniciaram protocolos rigorosos de denúncia dos crimes às autoridades civis, afastando abusadores do ministério, procedendo à triagem de funcionários e voluntários na Igreja, treinando líderes da Igreja e paroquianos nos princípios de salvaguarda e procedendo com cuidadosa atenção ao recrutamento de seminaristas e à formação humana.
Foram momentos tremendamente exigentes para todos na Igreja, mas o resultado dos esforços para desenvolver protocolos cuidadosamente pensados, adotados e implementados por todas as dioceses resultou numa enorme quebra no número de casos de abuso sexual de menores. Em Boston, a última denúncia foi em 2006. Algumas dioceses não tiveram um único caso desde 2003. Isso mostra que, se os bispos não improvisarem, mas tiverem uma estratégia bem pensada para a proteção das crianças, isso fará uma enorme diferença. Os britânicos têm um ditado: «Um grama de prevenção vale um quilo de cura.»
Parte da nossa tarefa, como bons pastores, é proteger os mais vulneráveis do nosso rebanho, as crianças.
Os relatos dos Evangelhos mostram que o nosso Bendito Salvador, frequentemente, faz uso de imagens muito fortes para chamar a nossa atenção e sublinhar a gravidade da sua mensagem. Ele diz-nos para arrancar o olho que provoca o pecado, para cortar a mão que nos faz pecar. E diz também que, se uma pessoa escandalizar uma criança, seria melhor que lhe pendurassem uma mó à volta do pescoço e a lançassem ao mar.
É evidente que Jesus não quer que adotemos esse tipo de castigo tão drástico e cruel, mas quer chamar a nossa atenção e fazer-nos compreender o muito mal que se faz quando se escandaliza uma criança.
O aspeto mais grave do escândalo dos abusos sexuais por parte do clero são os danos, tanto espirituais como psicológicos, que são causados não só às crianças e aos adolescentes, que são sexualmente exploradas, mas também às suas famílias, aos seus amigos e conhecidos, assim como à comunidade paroquial.
Fui batizado pelo meu tio, um pároco. Comecei a ajudar à missa quando tinha seis anos e fui para o seminário aos treze. Todos os meus professores e mentores eram padres ou religiosos. Eram pessoas boas e santas que só me deram bons exemplos e alimentaram a minha fé. Mas pergunto a mim mesmo, se tivesse sido vítima de um padre pedófilo estaria aqui hoje? Ainda seria católico? Ter-me-ia suicidado como tantos fizeram?
O facto de muitos padres terem abusado de crianças é escândalo que baste, mas nos Estados Unidos muitos milhares de católicos também deixaram a Igreja por outra razão, escandalizados não tanto pelo comportamento doentio e a fragilidade humana de padres, mas pelos erros e incompetência de bispos e superiores religiosos que falharam na sua tarefa de proteger as crianças contra estes predadores.
A nossa resposta, como Igreja, ao abuso sexual de menores deve também aderir à verdade que o número de crianças, pelo mundo fora, que está a sofrer uma forma ou outra de abuso sexual, ultrapassa o imaginável. As autoridades seculares calculam que uma em quatro raparigas, e um em sete ou oito rapazes, sofrem abusos sexuais antes dos 18 anos de idade.
É sabido que ainda há muitos membros do clero e muitos leigos na Igreja universal que estão convencidos de que a crise dos abusos sexuais é um fenómeno americano. No mundo atual de comunicações instantâneas, os católicos estão a tomar mais consciência do problema do abuso sexual, na Igreja, por todo o mundo. Não é um problema circunscrito a certas zonas: é um problema humano que nos afeta a todos.
No entanto, o escândalo dos abusos sexuais certamente que afeta a Igreja de uma maneira muito concreta. Em primeiro lugar, é uma mancha na alma dos culpados. Para além disso, contudo, aviltou e lançou suspeição sobre todas as pessoas boas e santas da Igreja, e de modo particular, as que trabalham todos os dias para melhorar a vida de crianças e jovens pelo mundo fora.
A Igreja universal deve estar unida no seu compromisso de garantir que todas as paróquias, escolas e instituições, sejam seguras para as crianças. Um valor fundamental a referir é a necessidade de seguir normas e procedimentos adequados para a proteção dos menores.
A falta de adesão a normas e procedimentos consagrados tem provocado grande sofrimento às vítimas e às suas famílias, grandes danos à reputação dos clérigos e religiosos, e muitos têm perdido a confiança na Igreja, e até começaram a questionar a própria fé.
Hoje, depois de tantos anos de dor e sofrimento, sabemos que não há desculpa para não agir, rápida e decisivamente, em face a situações de abuso sexual. O papa Francisco, continuando as iniciativas promovidas pelo papa Bento XVI e pelo papa São João Paulo II, demonstrou em muitas ocasiões o seu empenho, apontando os erros do passado e expulsando do ministério sacerdotes e religiosos que tenham perpetrado abusos.
Estou muito grato pelo facto do papa Francisco ter reunido os presidentes das Conferências Episcopais do mundo inteiro para a importantíssima reunião do mês passado [fevereiro 2019]. Tive a alegria de ficar sentado bem perto do Patriarca, D. Manuel Clemente. O objetivo da reunião foi ajudar a hierarquia da Igreja a compreender o quão verdadeiramente importante é a proteção dos menores, reconhecer que este é um problema humano gravíssimo, mas que na Igreja temos a obrigação acrescida e mais séria de promover a salvaguarda. Espero que um dos resultados deste encontro seja o exercício anual de avaliar o estado da implementação das políticas de salvaguarda de cada Conferência Episcopal. Isso tornar-se-á parte integrante da visita ad limina, na qual nós, bispos, prestamos contas do nosso ministério, nos cinco anos anteriores. Por mais difícil que seja essa área da salvaguarda, não há nada mais importante do que cuidar das nossas preciosas crianças e restaurar a fé nos corações daqueles que foram escandalizados pela forma totalmente inadequada da Igreja lidar, no passado, com o abuso sexual clerical.
Muitas pessoas ainda dizem que não concordam com as normas de transparência e tolerância zero. Mas, como responsáveis da Igreja, devemos confrontar essas atitudes. Toda a nossa ação deve ser motivada pelo Evangelho de Jesus Cristo. É necessário que nos comportemos com coragem, afastando os culpados e cuidando das vítimas, quando foi cometido abuso.
Gostaria de reafirmar que o maior desafio para a Igreja, hoje, é o de garantir transparência, responsabilização e tolerância zero. Se estes desafios não forem ganhos, se não houver firmeza no nosso compromisso com estes princípios, a Igreja não será capaz de restaurar a confiança dos católicos cuja fé foi posta à prova.
Infelizmente, sabemos que um resultado desta crise é que milhões de fiéis deixaram de ir à Missa e que muitas instituições de caridade e instituições educativas da Igreja tiveram de fechar. Recentemente, soube dum facto verdadeiramente espantoso: na Austrália, de todos os casos de abuso denunciados à Royal Commission, quarenta por cento aconteceram num contexto ligado à nossa Igreja Católica.
Esta crise mundial tem tido como consequência a anulação da voz profética da Igreja. Em grande parte, isso é resultado da perceção de que os pastores do povo de Deus não são responsabilizados.
Não podemos deixar de fazer tudo quanto está ao nosso alcance para restabelecer a voz de Igreja em defesa dos oprimidos e em defesa de vida. O povo de Deus e a sociedade têm de poder ver que estamos absolutamente empenhados em prevenir o abuso sexual de crianças e adultos vulneráveis e que respondemos prontamente a todos os casos de violência.
O abuso de crianças aparece e desenvolve-se numa atmosfera de sigilo e ocultação. A Igreja tem de ser líder na denúncia deste grave problema humano. Para isso, temos de dizer claramente que a nenhum clérigo ou religioso que tenha abusado de uma criança será permitido continuar no ministério.
A Igreja tem hoje, realmente, a oportunidade de criar um ambiente seguro para as crianças e para os adultos vulneráveis. Muitas outras igrejas cristãs e congregações de outras religiões estão interessadas em aprender com a experiência da Igreja, adotando os nossos procedimentos.
Da vergonha e dor da nossa história recente, Deus pode fazer nascer algo de bom: uma Igreja e uma sociedade que coloquem a proteção das crianças entre as mais altas prioridades. Para sair da crise dos abusos sexuais, por parte do clero, é necessário recuperar a confiança das pessoas que servimos e também dar a possibilidade de regressar a quantos se afastaram de nós.
Para conseguir estes objetivos, temos de ser reconhecidos como pessoas empenhadas, sempre e em toda parte, na segurança da criança confiada ao nosso cuidado pastoral. Só isso pode sarar a nossa Igreja e devolver confiança ao nosso múnus pastoral.