Foram meses de discussão nas ruas e no Parlamento, ameaças do Presidente da República, acusações de “comunismo” contra o Governo de António Costa e, no final, um veto de Belém. Que o pacote socialista para a habitação foi tudo menos consensual não será novidade — mas essa divisão estendeu-se mesmo ao próprio PS, onde alguns deputados até concordam com as críticas do Presidente. No grupo parlamentar e no partido, há quem sinta desconforto por estar a “dar a cara” por medidas “esvaziadas”, enquanto se gerem as expectativas sobre os reais efeitos do pacote na complexa área da habitação.
“Estas propostas simplesmente não têm eficácia. Falou-se em radicalização mas vai-se a ver e as medidas têm pouca implementação prática”, diz um dos deputados e dirigentes insatisfeitos, queixando-se dos efeitos que meses de alterações e recuos tiveram nalguns dos aspetos mais polémicos da lei: “Assim estamos a ser uma esquerda panfletária. Se queremos comprar guerras tem de ser por algum objetivo, para ter algum efeito prático”.
Curiosamente, a crítica, que vai tendo eco em vários setores do PS, acaba por ir exatamente ao encontro dos reparos feitos por Marcelo Rebelo de Sousa. Isto apesar de alguns socialistas ouvidos pelo Observador já classificarem o Presidente como o “líder da oposição” de facto, numa altura de relações tensas em que o PS comprou mais uma “guerra” (a confirmação da lei, tal como está, após o veto) mas quer a todo o custo evitar alimentar uma ideia de tensão pública com Belém.
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“O Presidente falou bem”
Se Marcelo tinha começado por criticar, há meses, as linhas mestras do pacote do Governo, falando de uma “lei cartaz” que poderia vir a revelar-se simplesmente inoperacional, o Presidente acabou por vetar o pacote voltando à ideia de que não terá efeitos suficientes no mercado da habitação para aliviar arrendatários e famílias com crédito à habitação. E se inicialmente, nos setores mais à direita, o conjunto de propostas era visto como extremista e radical — Luís Montenegro chegou a considerar que este Governo correria o risco de ser “o mais comunista em Portugal desde o 25 de Abril” — as medidas mais polémicas acabaram por recuar de tal forma que Marcelo constatou a aparente ironia, no texto que acompanhava o veto do diploma: “O arrendamento forçado fica tão limitado e moroso que aparece como emblema meramente simbólico, com custo político superior ao benefício social palpável”.
“O Presidente falou bem. Nessa medida procurou-se tanto ir ao encontro das posições da oposição, mitigou-se tanto, que já não funciona”, lamenta uma fonte do grupo parlamentar do PS. E se inicialmente os setores mais centristas do PS também se queixavam da tal excessiva radicalização das medidas, em reuniões do partido — a ministra da Habitação, Marina Gonçalves, teve de se desdobrar em encontros pelo país para explicar o polémico pacote — os recuos foram deixando os deputados mais à esquerda do PS à beira de um ataque de nervos.
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Houve, de resto, vários exemplos disso mesmo, com deputados a mostrarem-se indignados com as sucessivas descidas da taxa extraordinária que os proprietários de alojamentos locais teriam de pagar — começou por ser de 35% e acabou, por proposta do grupo parlamentar (depois de passar pelo Governo e por consulta pública) e para tentar satisfazer várias sensibilidades até dentro da bancada, por se fixar nos 15%. “Não podemos à segunda, quarta e sexta dizer que há um problema gravíssimo e que o mercado está sobreaquecido e à terça e quinta dizer que não podemos ir mais longe…”, comenta um deputado.
O mesmo no caso dos vistos Gold, cujo fim tinha sido anunciado pelo Governo e acabou por conhecer vários moldes nas propostas que passaram pelo Parlamento (acabaram para fins de investimento imobiliário, mas algumas exceções mantêm-se na lei). Também há quem considere que Marcelo teve razão ao apontar para o escasso investimento público que o programa prevê: “Não há um movimento” — além do dinheiro que virá do PRR — “no sentido de corrigir o facto de Portugal ser dos países europeus com menos habitação pública”, comenta um dos deputados já citados.
O ritmo “avassalador” e as críticas em surdina
Numa bancada de grandes dimensões — são 120 deputados — há quem se queixe de se ter sentido excluído de um processo que terá ocorrido num circuito fechado, coordenado entre Governo, direção do grupo parlamentar e a deputada que assumiu a pasta, Maria Begonha. Mas essa crítica é desvalorizada por fontes que recordam que, numa bancada deste tamanho e com um pacote que incluía “dezenas de propostas e um ritmo de propostas, contrapropostas, alterações de última hora avassalador”, seria difícil alargar muito o debate.
“O que se terá talvez passado é que é uma área muito transversal e muito visível e prioritária nesta altura, e em que diferentes deputados, sensibilidades e mesmo círculos eleitorais podem ter visões diferentes”, relativiza uma fonte do grupo parlamentar, enquanto várias outras falam em “críticas amplas” ao processo de construção de medidas como o arrendamento coercivo, e que se terão prolongado até ao fim do processo de especialidade no Parlamento.
Nesse caso, a medida, das mais criticadas do pacote, foi sendo progressivamente suavizada até ter pouco de coercivo. “Dentro do Governo e do grupo parlamentar houve a consciência de que era tão tóxico que só não se retirava da lei para não ser um recuo completo“, explica fonte socialista.
Mesmo assim, recorda fonte da bancada, “todos votaram no mesmo sentido”. Ou seja: as discordâncias ideológicas e até regionais (dado que os diferentes círculos eleitorais têm diferentes problemas no setor da habitação para resolver) entre deputados existem, mas as feridas, num dossiê importante para o Governo mostrar iniciativa e tentar resolver um problema sensível e urgente, não ficaram expostas.
O “custo político” de não ter aliados
O problema, acreditam algumas fontes do partido — mais uma vez, secundando uma crítica do Presidente da República — nasceu logo de origem, com a apresentação do programa e o foco dado às medidas mais controversas, arrendamento coercivo e restrições ao alojamento local à cabeça. “A gestão política podia ter sido feita de outra maneira. Foi um grande custo político”, lamenta um dirigente.
“Não se soube construir um processo que desse uma ideia de envolvimento. Não fomos capazes de conquistar nenhum aliado”, acrescenta, numa crítica em que Belém também insistiu: o debate à volta dessas propostas “apagou outras propostas e medidas e tornou muito difícil um desejável acordo de regime sobre habitação, fora e dentro da Assembleia da República”, lê-se no veto de Marcelo.
“Deu uma razão – justa ou injusta – para perplexidade e compasso de espera de algum investimento privado, sem o qual qualquer solução global é insuficiente (…). Radicalizou posições no Parlamento, deixando a maioria absoluta quase isolada, atacada, de um lado, de estilo proclamatório, irrealista e, porventura, inconstitucional, por recair, em excesso, sobre a iniciativa privada, e, do outro, de insuficiência e timidez na intervenção do Estado”, insiste o Presidente nesse texto.
Vem também daí a frustração de deputados que até valorizam algumas medidas menos badaladas — sobretudo no que toca ao apoio às rendas, já aprovado e em vigor, ou o tecto máximo para atualização das rendas — mas que as viram ofuscadas no debate público, além de se tornar difícil que, sendo aprovadas de forma mais isolada do que o esperado, surtam grandes efeitos, ou efeitos de fundo que alterem a dinâmica do mercado.
Será, assim, com um sentimento agridoce que parte dos deputados socialistas irá reconfirmar a lei quando os trabalhos parlamentares forem retomados. Entre os maiores defensores do pacote, que argumentam que acabou por ficar “equilibrado” — e mesmo com algumas dúvidas quanto à sua eficácia –, frisa-se que “é a maior iniciativa dos últimos 50 anos” e ironiza-se com as alternativas. “O PSD a dar lições de habitação… isso não cola nem no eleitorado deles”, atira um deputado.
O mesmo deputado e dirigente local socialista resume assim o sentimento em relação às medidas: “Não digo que seja uma gota no oceano… será uma pequena maré”. E é essa imagem que Governo e dirigentes socialistas têm estado a tentar transmitir, moderando as expectativas que pudessem existir quanto ao pacote de propostas mais discutido dos últimos meses.
PS modera expectativas. “Não há balas de prata”
“O que é que que significaria [o problema da Habitação] estar resolvido…?”, atirava, em conversa com o Observador, esta semana, um dirigente socialista. A pergunta traduz-se facilmente: num setor tão complexo e em que entram tantas variáveis, e onde as dificuldades vão das mais dramáticas — 77 mil famílias identificadas a viverem em condições indignas — às que se tornaram cada vez mais frequentes, com taxas de esforço altas e prestações a aumentar centenas de euros, quando é que o problema vai ser dado por solucionado? “Dada a gravidade do problema, este pacote não será suficiente para o resolver — mas não será este como não seria nenhum”, avisa fonte do PS.
Marcelo colocou o seu prazo: daqui a “dois ou três anos” — portanto no final do mandato do Governo, que coincide com o final do seu próprio consulado — se verá. E, admitindo que pela dificuldade do dossiê o Presidente facilmente acabará por capitalizar este veto, os socialistas empenham-se em gerir expectativas. Desde logo, lembrando a cada oportunidade que este pacote traduz uma resposta de emergência, apenas como “reforço” das políticas mais estruturais de habitação que têm sido adotadas desde 2016.
O argumento está longe de convencer a oposição, que vai recordando que o PS está no poder desde então e continua sem ser capaz de resolver o problema do acesso à habitação. Esta semana, o secretário-geral adjunto do PS, João Torres, lembrava as outras medidas que o PS já tomou nesta área — do programa 1º Direito ao Porta de Entrada, ambos para famílias carenciadas ou a precisarem de alojamento urgente –, assim como as estratégias locais de habitação aprovadas pelo país fora e o dinheiro que vem do Plano de Recuperação e Resiliência (dois mil milhões de euros, que não estão associados ao Mais Habitação), e onde os socialistas apostam quase todas as fichas.
A ideia é argumentar que o programa é apenas um “complemento” que não substitui outras políticas para a habitação e que o problema é “complexo” — “não existem balas de prata”, insistiram esta semana João Torres, Marina Gonçalves e outros dirigentes socialistas. A esses argumentos foram juntando outros: a subida dos preços de rendas e créditos à habitação não é um exclusivo português.
“Temos em consideração as dificuldades de execução de uma reforma desta natureza, mas ela está a acontecer. É complexo encontrar respostas integradas que de um momento para o outro [resolvam o problema], como noutros países da UE ou mesmo noutras geografias”, acrescentaria João Torres, aproveitando para disparar contra a oposição: “A estratégia é em boa verdade prejudicada por não haver antecedentes”. “Vamos reconfirmar a lei porque há uma urgência”, resume fonte socialista, fazendo eco do sentido de “urgência” que dirigentes do partido foram sublinhando ao longo da semana.
Mesmo que as dúvidas sobre a eficácia do programa sejam reais e estejam instaladas no PS, o argumento final é um: o partido está a mexer-se para tentar adotar soluções que já deviam vir de trás — e não vê alternativas mais moderadas nem à esquerda, nem à direita. É sobretudo a isso que o PS se agarra enquanto a sua “pequena maré” provoca um maremoto de críticas.