Em Lisboa, junto dos militantes socialistas de base (e não só) em mais uma sessão para explicar as medidas para a habitação, a ministra Marina Gonçalves deparou-se com incómodos internos sobre a “guerra” que o plano do Governo pode trazer. Os privados são uma das preocupações do PS, com alguns socialistas a mostrarem receio que o partido pareça estar contra a propriedade privada. O Governo está a tentar pôr água nessa fervura e a ministra da Habitação saiu a jurar que terá os privados como “parceiros” nesta reforma.

Uma das vozes que se fizeram ouvir na parte da sessão que decorreu à porta fechada no Hotel Altis, em Lisboa, foi a do presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior. Miguel Coelho aconselhou o Governo a não seguir por um tom de comício quando fala nestas medidas e começou até por dizer que “o maior erro” nesta altura era fazer desta reforma “uma guerra entre esquerda e direita”, alertando para a necessidade de se ter “muitos aliados para ganhar esta batalha”.

O cuidado na comunicação das medidas  — ou a falta dele, como já tinham apontado alguns socialistas — foi abordado em algumas intervenções, com socialistas a temerem “palavras mal colocadas” por parte do Governo que possam resultar em pessoas mal informadas. Agora acrescenta-se a preocupação com a ideia de um partido “contra a propriedade privada”. Uma das medidas que tem tocado nesse nervo é precisamente o arrendamento coercivo, que a ministra Mariana Gonçalves tem tentado, nos últimos dias, reduzir a “último reduto” (voltou a fazer o mesmo perante os socialistas de Lisboa), para lhe retirar carga.

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Na sessão, não foi só Miguel Coelho a defender que o Governo tem de ter capacidade para assumir que precisa do sector privado nesta reforma, chegando até a comparar o risco atual com o alarme social criado no pós-25 de Abril quando muitos portugueses temiam a nacionalização de terrenos. Outras intervenções, de militantes “anónimos”, seguiram pela mesma via, chamando a atenção para problemas no património público, para que não se olhe só para os privados mas também para quartéis, por exemplo.

Pedro Costa, dirigente da concelhia de Lisboa e presidente da Junta de Campo de Ourique estava a presidir a esta parte da sessão, mas também interveio para lembrar a ministra que o problema de devolutos, embora seja maioritariamente com os privado, também tem alguns problemas com o que é património do Estado mal aproveitado. Em entrevista recente ao Observador, o socialista já tinha falado do quartel que existe na Rua Ferreira Borges ocupando espaço que podia ser dedicado à habitação.

Outras queixas foram ouvidas, segundo apurou o Observador, como por exemplo sobre a “diabolização” do alojamento local e dos vistos gold, as demoras nos licenciamentos para privados que querem construir ou até com o perigo de esta intervenção poder contribuir para a especulação.

Quanto a pedidos e propostas à ministra, foram desde o apoio ao nível fiscal dos privados que se disponham a investir em habitação social — vindo de um participante na sessão socialista que é empreiteiro — aos incentivos às cooperativas. No rol de propostas estava ainda o fim da isenção fiscal para não residentes ou ainda a apreensão de Miguel Coelho por o PS não ter acompanhado o PCP, na Assembleia da República, na proposta para entrega aos bancos das casas para saldar a dívida. Os comunistas propuseram que o banco não pudesse opor-se a esta “dação em cumprimento” para extinção da dívida (e que quem entregasse a casa fosse compensado caso a venda posterior da casa superasse essa mesma dívida).

No final, a ministra respondeu de forma seletiva e debruçou-se principalmente sobre estes receios de hostilizar privados. Marina Gonçalves acabou a prometer que as medidas também promovam a mobilização desses privados, repetindo a ideia de que “todos somos parceiros”. Falou em concreto da posse administrativa de devolutos, apontando para os instrumentos legais que já existem e já possibilitam isso mesmo, garantindo que esse será sempre “o último reduto” e que há outras medidas para aplicar antes dessa.

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A ministra ainda respondeu às questões com os vistos gold ou do alojamento local. rejeitando a ideia de “diabolização”. Sobre o alojamento, disse que o que o Governo está a fazer é uma “suspensão”, tendo em conta a urgência nacional neste momento.

Na intervenção inicial, essa aberta à comunicação social, Marina Gonçalves não tinha abordado as medidas mais polémicas (tal como na sessão do Porto, presidida pelo líder António Costa), garantindo ainda assim que o que o pacote traz são medidas excecionais ou temporárias; e os socialistas estão conscientes de que há uma “urgência” nacional em resolver o problema da habitação.

Temido pediu “equilíbrio”

Na mesma sessão, Marta Temido, falando publicamente pela primeira vez como líder da concelhia lisboeta do PS, ouviu aplausos entusiásticos assim que abriu a boca para dizer boa noite e, na curta intervenção que fez, lembrou a sua experiência em enfrentar crises – ou não fosse este o dia de aniversário do primeiro caso de Covid-19 em Portugal (e também o dia de aniversário da ex-ministra).

Essas crises, lembrou, exigem um “esforço conjunto”, mas também um “equilíbrio”. “Ainda bem que a consulta pública é entusiástica e aguerrida, mas não nos podemos deixar entrincheirar e deixar de fazer um esforço para nos entendermos”, avisou na mesma linha de acalmar os espíritos.

O secretário-geral adjunto do PS, João Torres, faria questão de enquadrar o assunto pela perspetiva dos socialistas: primeiro, lembrando que o PS tem “construído o edifício a partir das fundações” e tentado corrigir as políticas de habitação, “abandonadas por governos anteriores”; depois, lembrando que por causa disso há pouca oferta pública de habitação (isto é, que o PS tinha pouco com que trabalhar quando chegou ao Governo); e, por fim, que os efeitos da guerra também têm influência nas novas dificuldades das pessoas em arranjar e pagar casa.

Fossem quais fossem os motivos, a conclusão seria a mesma: é “imprescindível e fundamental” ir mais longe na habitação, mesmo sem “desconsiderar” o trabalho feito até agora pela ministra da Habitação, Marina Gonçalves, quando ainda era secretária de Estado, e “redinamizar” o debate com novas medidas – “com caráter complementar, nalguns casos até transitório”, fez questão de frisar. Medidas lançadas por um primeiro-ministro que tem sido um “agente ativo” na discussão, sublinhou, e por uma ministra “dedicada”.

Depois, a política: para o PS, garantiu, a habitação “é uma preocupação estrutural” que não se resolve fazendo de qualquer agente do setor “um adversário” – “mas não abdicamos da regulação do mercado, nossa vocação enquanto partido verdadeiramente social democrata”. Uma ponte para criticar a direita e especialmente o PSD, que vê a habitação “como objeto acessório ou lateral na vida das pessoas”, que se mostra “em dessintonia com as pessoas” e que não se lembra dos efeitos da lei Cristas ou da “liberalização pouco cuidada” do mercado. Vê-se o contraste, concluiu, entre o PSD que apresenta propostas “de que nenhum de nós se lembrará” para não mudar nada, e o PS que debate este pacote com “abertura”.

À ministra e antiga secretária de Estado caberia frisar que esta não é uma “política nova” e o PS não acordou hoje para esta prioridade” – antes um “reforço e complemento” da estratégia que começou em 2015. “Muitas vezes parece que estamos a começar do zero ou a substituir alguma política, mas é importante não perder o fio condutor. Queremos que seja uma política perene, que fique como fica o SNS ou a escola pública”, argumentou.

Mesmo assim, assumiu, o Executivo tem “perfeita noção da emergência” que se coloca agora e da “necessidade de novas medidas”. “Não olhamos para uma única ferramenta, tentamos perceber de que forma podemos intervir nas várias áreas”, explicou, frisando exemplos como a flexibilização das regras de licenciamento ou as parcerias para aproveitar habitação pública devoluta, e mencionando sem particularizar “medidas excecionais para um momento excecional” em que se “prioriza o direito à habitação” (numa altura em que muito se fala do direito à propriedade por causa da proposta sobre o arrendamento coercivo). Agora, tratar do acesso à habitação é “uma urgência nacional, uma prioridade nacional”, resumiu a ministra.