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SHAHZAIB AKBER/EPA

SHAHZAIB AKBER/EPA

Que cicatrizes vai a pandemia deixar na nossa economia?

Recuperação deixará cicatrizes. Endividamento e programas de compra de dívida resultam em baixo crescimento e inflação. Portugal está na linha da frente da vulnerabilidade. Ensaio de Abel Mateus.

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Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

O lockdown associado ao Covid-19 provocou um forte endividamento de todas as economias dos países desenvolvidos, sobretudo do setor público, o que fez subir os riscos de crise financeira nas economias que já estavam altamente endividadas.

A análise desta importante questão tem de ser feita a dois níveis: quais os cenários macro em termos de crescimento do PIB e inflação para os EUA e Zona do Euro (destrinçando os efeitos de curto prazo da recuperação do lockdown e os de médio e longo prazo)? E quais as respostas de política monetária da Reserva Federal norte-americana (FED) e do Banco Central Europeu (BCE) e das respetivas políticas orçamentais? De facto, está em movimento a recuperação rápida destas economias, mais rápida nos EUA do que na UE, mas continua a existir uma grande incerteza sobre as cicatrizes que a crise e recuperação vão deixar nas nossas economias.

"Na zona Euro, com uma política de Quantitative Easing ainda mais agressiva, e depois dos enormes pacotes orçamentais nacionais, vai agora estimular-se mais a procura com cerca de 1 bilião de euros dos programas de New Generation EU."

Os elevados níveis de endividamento, o Quantitative Easing (programa de compra de dívida pública) dos bancos centrais e o choque fiscal podem levar a inflação ou, mais provavelmente, a um período prolongado de estagflação. Tanto nos EUA como na Zona Euro começam a levantar-se conflitos sérios entre a política monetária e orçamental.

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Nos EUA, alguns economistas reputados, como Larry Summers e Olivier Blanchard levantam o espectro de uma crise provocada pelo sobreaquecimento dos pacotes de despesa pública propostos por Biden que já ultrapassam os 6 biliões de dólares. Na zona Euro, com uma política de Quantitative Easing ainda mais agressiva, e depois dos enormes pacotes orçamentais nacionais, vai agora estimular-se mais a procura com cerca de 1 bilião de euros dos programas de New Generation EU. E não nos esqueçamos que estas grandes economias estão bastante integradas: uma crise nos EUA terá efeitos importantes na Europa e vice-versa.

No segundo nível temos que avaliar, dentro destes cenários, quais os riscos que a maior fragilidade económica e financeira de alguns países do Euro, nomeadamente a Itália, Espanha, Portugal e Grécia, poderão representar para a zona do Euro. É que dentro das crises financeiras existem várias variedades: pode haver uma crise da dívida pública, como aconteceu com Portugal e Grécia, acompanhada ou não por uma subsequente crise bancária, ou apenas uma crise bancária como aconteceu na Espanha, que pode estar associada à crise do imobiliário ou de outros setores de atividade económica.

A previsível tendência decrescente dos preços dos imóveis em Portugal poderá criar pressão sobre o sistema financeiro, alertou o Banco de Portugal este mês.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

E não se pode descartar outro tipo de reação das economias, que tem sido negligenciada em muitas das análises, e que é uma “doença prolongada” em vez da crise aguda. Neste caso, temos por exemplo, um prolongado processo de desendividamento acompanhado por baixo crescimento, que pode assumir a forma de “long slump”, como o caso português é muitas vezes classificado.

A economia portuguesa fez um enorme esforço de desendividamento desde os níveis record de 2013, apesar de continuar a ser o país com maiores níveis de leverage (endividamento) na UE, nas vésperas da crise pandémica. A crise do Covid-19 tem representado um enorme choque económico e financeiro sobre os agentes económicos portugueses, fazendo regredir os níveis de endividamento para 2008, nas vésperas da crise financeira global. Qual o significado desta regressão?

A fragilidade financeira da economia portuguesa, por contágio das economias vulneráveis da Europa do Sul, levanta o espectro de uma nova crise da dívida depois de terminarem as enormes bombagens de liquidez do BCE e do FED nas economias do Euro e dos EUA. Como veremos neste ensaio, Portugal está na linha da frente na vulnerabilidade a uma crise, na medida em que a Grécia continua em grande parte fora do mercado, e Chipre também é um caso especial como offshore financeiro.

Embora os bancos centrais afirmem que estão a controlar a situação, e que até agora os riscos da recessão ultrapassam os da inflação, não há dúvida que estes últimos começam a acentuar-se rapidamente. Terão os bancos centrais capacidade para fazer o fine-tuning da política monetária de estimular a atividade económica sem provocar o recrudescimento da subida generalizada de preços, sobretudo quando os níveis de endividamento estão a níveis record, e estão na calha enormes pacotes orçamentais adicionais? Os riscos de sobreaquecimento acentuam-se no dia a dia.

"São várias as vulnerabilidades e riscos da economia do Euro e de Portugal, em particular. Em primeiro lugar, porque com os elevados níveis de endividamento, e uma deterioração das condições de financiamento devida, por exemplo, à subida das taxas de juro pelos bancos centrais para combater a inflação, poderá originar a inversão das expectativas dos investidores sobre a capacidade de serviço da dívida soberana destes países altamente endividados."

Como veremos, as economias mais frágeis, do ponto de vista financeiro e económico, são as pequenas economias de Portugal e Grécia, mas também as grandes: Itália e Espanha. A Itália não conseguiu inverter a posição de quase-estagnação económica e de elevado e crescente endividamento público. E, como se viu durante a crise do Euro, os recursos necessários para um bailout da Itália são enormes, e se se juntar a Espanha, então serão ainda mais difíceis de suster numa UE enfraquecida pelo Covid-19.

De facto, são várias as vulnerabilidades e riscos da economia do Euro e de Portugal, em particular. Em primeiro lugar, porque com os elevados níveis de endividamento, e uma deterioração das condições de financiamento, devida por exemplo, à subida das taxas de juro pelos bancos centrais para combater a inflação, poderá originar a inversão das expectativas dos investidores sobre a capacidade de serviço da dívida soberana destes países altamente endividados. Segundo, porque os elevados envelopes financeiros necessários para um bailout da Itália e Espanha podem pôr em causa a solidariedade entre os países do Euro. E o risco de contágio para países mais pequenos como Portugal é um perigo ainda bem fresco na memória dos mercados.

Endividamento de todos os agentes económicos

A pandemia teve um impacto significativo no endividamento das empresas e famílias, para além do Estado, o que é geralmente ignorado pelas análises económicas. De facto, os sistemas bancários de todos os países disponibilizaram linhas de crédito para as empresas, com garantias públicas, o que fez aumentar a taxa de endividamento do setor empresarial. Porém, estes acréscimos de endividamento divergiram significativamente entre países.

O governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, durante a apresentação do Relatório de Estabilidade Financeira, no Banco de Portugal, em Lisboa, 17 de dezembro de 2020. JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Os bancos centrais, como o Banco de Portugal, afirmam que estão a controlar a situação. Mas os riscos de inflação estão a crescer..

JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Por outro lado, este choque de endividamento aconteceu sobre níveis de endividamento bem diferenciados, conforme os países. Vejamos, primeiro, o caso português. O gráfico 1 mostra os rácios de endividamento sobre o PIB dos três agentes não financeiros da economia para o período 2007 a 2020. No caminho para a crise financeira de 2011 a 2013, a taxa de endividamento destes três agentes subiu de 315% em 2007 para o record de 427% em meados de 2013, e depois para um mínimo de 339% nos finais de 2019. Este notável processo de desendividamento (deleveraging) de 88 pontos percentuais do PIB foi devido a todos os agentes, mas em primeiro lugar às empresas (-42 pontos percentuais), depois às famílias (-26 pontos percentuais) e finalmente ao Estado (-20 pontos percentuais).

O deleveraging das empresas e famílias é um dos principais fatores que explica o baixo investimento do setor privado. É fácil de entender que se uma empresa utiliza as suas receitas para amortizar a dívida, deixa de ter esses fundos disponíveis para o investimento. De facto, como podemos observar pelo gráfico 2, o investimento líquido em capital fixo pelo setor privado em Portugal ainda não atingiu um valor positivo se somarmos todos os investimentos realizados entre 2009 e 2021.

"Grécia, Itália e Portugal têm o mais alto nível da dívida pública, mas são as sociedades não financeiras de Portugal, Itália e Espanha que causam os níveis record destes países. O endividamento das famílias em crédito hipotecário atinge o mínimo na Itália (31% do PIB) e o mais elevado em Espanha e Portugal, com cerca de 60% do PIB."

O lockdown associado à pandemia inverteu o processo de desendividamento, e só num ano, em 2020, a taxa de endividamento subiu 31 pontos percentuais do PIB, sendo 21 pontos atribuíveis ao setor público, 6 às empresas e 4 às famílias. Foi, pois, o setor público que entre nós aguentou com o maior custo da crise pandémica, para apoiar as empresas e os seus trabalhadores que interromperam a atividade económica.

Como é que estes números se comparam com outros países da UE? O Gráfico 3 mostra as taxas de endividamento da economia real de um grupo de países da UE em finais de 2020, e que mostra dois grupos distintos: a Alemanha (221% do PIB) e Áustria (246), tradicionalmente com menores níveis de endividamento e Portugal (351), Grécia (329), Itália (307) e Espanha (293) com as taxas mais elevadas da UE. Estes elevados níveis de endividamento são devidos a diferentes agentes económicos. A Grécia, Itália e Portugal têm o mais alto nível da dívida pública, mas são as sociedades não financeiras de Portugal, Itália e Espanha que causam os níveis record destes países. O endividamento das famílias em crédito hipotecário atinge o mínimo na Itália (31% do PIB) e o mais elevado em Espanha e Portugal, com cerca de 60% do PIB.

No ano da pandemia, houve um forte agravamento destes rácios de endividamento, sobretudo devido ao setor público: entre um máximo de 31 pontos percentuais para Portugal, seguido de 28 pela Itália, 27 da Grécia, 24 da Espanha e 23 e 20 para a Áustria e Alemanha, respetivamente.

A crise dos países do Euro mostrou que foram os elevados níveis de dívida pública associados à dívida externa que desencadearam a crise. É muitas vezes referido o caso do Japão, que tem a taxa de dívida pública mais elevada do mundo, mas com um balanço de ativos e passivos largamente excedentário em relação ao Exterior (Posição do Investimento Internacional), e por isso não apresenta risco de sustentabilidade da dívida pública, embora haja um problema grave de distribuição inter-geracional das finanças públicas, e esteja em estagflação desde os anos 1990.

Ora, o Gráfico 4 mostra que, depois da Grécia, Portugal continua a ser o país com o nível de ativos líquidos mais negativo em relação ao Exterior. A posição mais desequilibrada foi atingida em 2013 com -128% do PIB (Gráfico 5), depois foi melhorando até ao primeiro trimestre de 2020, e voltou a deteriorar-se com a pandemia, situando-se em -106% do PIB em finais de 2020. Evolução semelhante verifica-se na Dívida Externa Bruta.

FRANK RUMPENHORST/EPA

Em conclusão, a crise pandémica provocou um sério agravamento dos níveis de endividamento da economia real dos países da UE, tendo Portugal registado um dos maiores agravamentos. Entre 2013 e 2019 houve um forte processo de desendividamento sobretudo das empresas e famílias portuguesas, que levou a uma melhoria substancial dos rácios, mesmo assim só passamos para a segunda posição a nível da UE, pois a Espanha sofreu uma forte deterioração sobretudo das suas empresas. Conclui-se, pois, que a Espanha, Portugal, Grécia e Itália são os países com maior vulnerabilidade financeira da UE.

Efeitos da pandemia no endividamento do Estado

As regras tradicionalmente utilizadas para avaliar a sustentabilidade da dívida pública consistem em constatar: primeiro, se o rácio da dívida sobre o PIB não ultrapassa um limiar “razoável” definido por um conjunto de critérios históricos e de capacidade de pagamento específico da economia; e segundo, se a trajetória futura da dívida é estável se não ultrapassa aquele limiar, ou tem uma trajetória decrescente que se aproxima daquele limiar num tempo “razoável”.

Esta segunda regra tem a ver com o crescimento do PIB, inflação e taxa de juro das obrigações do Estado, bem assim como com o excedente primário orçamental. Como as análises do FMI mostram na sua aplicação prática, não existem limiares nem trajetórias mecânicas, mas dependem do caso concreto em análise. No fundo, o que os investidores na dívida procuram excluir são trajetórias explosivas da dívida, em que o país não terá capacidade para satisfazer as suas obrigações financeiras, em termos de pagamento de juros e amortizações. Ou seja, é fundamental excluir os chamados “Ponzi games”.

"Parece que muitos economistas se esqueceram que uma das teorias dos anos 1980-90, em que se baseou a criação do BCE, e se alicerçou a reputação dos bancos centrais, foi a da proibição da monetarização dos défices orçamentais, para evitar a inflação."

A intervenção dos bancos centrais através do Quantitative Easing poderá “suspender” estas regras temporariamente. É que se, no limite, o banco central comprar toda a dívida pública, não há mercado para formação de preços da dívida pública, não pode haver formação de expetativas pelos agentes sobre a evolução futura da dívida e, assim, poderá concluir-se que qualquer nível ou trajetória da dívida é sustentável. Mas em economia não pode haver desequilíbrios permanentes.

O que se passa é que neste modelo falta a incorporação da inflação, a criação de moeda na restrição orçamental, e por fim, a relação que dá o aumento do stock de moeda e a geração de inflação. Parece que muitos economistas se esqueceram que uma das teorias dos anos 1980-90, em que se baseou a criação do BCE, e se alicerçou a reputação dos bancos centrais, foi a da proibição da monetarização dos défices orçamentais, para evitar a inflação.

Em termos contabilísticos, os balanços do Estado e do banco central são consolidados em termos da Autoridades de Política e, assim, pode desta forma considerar-se que a dívida pública no balanço do banco central está “anulada”, sobretudo se permanecer no balanço do banco central indefinidamente. Também sabemos que uma grande parte da liquidez criada pelo Quantitative Easing tem retornado aos balanços dos bancos centrais através dos depósitos da banca. Mas este processo sofreu uma importante inversão desde 2020, como veremos.

É evidente que os agentes económicos têm que tomar em conta o nível total da dívida, mas é no mercado que se formam os preços através da procura e oferta de obrigações. Assim, temos que estudar qual a parte da dívida negociável, colocada nos mercados, e a não negociável, que foi retirada dos mercados.

O BCE – liderado por Christine Lagarde – tem levado a cabo um Quantitative Easing que é cerca do dobro dos EUA.

ALESSANDRO DELLA VALLE/EPA

O Gráfico 6 mostra a evolução do rácio de Dívida Pública sobre o PIB, segundo a definição oficial de Maastricht. Como se vê, depois de ter atingido o pico de 131% em 2016, este caiu para 116 (-15 pontos percentuais) nas vésperas da pandemia. As intervenções do Estado durante o lockdown levaram a um salto do rácio da dívida de 17 pontos percentuais para 133% do PIB, um nível record histórico. Segundo as projeções do CFP de abril (Perspetivas orçamentais 2021-2025), este rácio deverá entrar novamente em trajetória descendente devido à conjugação da recuperação económica e das baixas taxas de juro e inflação, atingindo em 2025, 117% do PIB, ou seja, próximo do rácio da véspera da pandemia.

Como é que se comparam estas taxas na UE? O Gráfico 7 dá-nos os rácios da Dívida Pública sobre o PIB dos países da UE, segundo as últimas previsões da Comissão Europeia, que já são mais otimistas do que as do Conselho das Finanças Públicas. Como podemos observar, tanto em 2020 como em 2022, Portugal é o terceiro país com o maior endividamento do Estado (122% em 2022), só ultrapassado pela Grécia (201%) e Itália (157%). A Grécia é um caso especial, pois não só tem a maior percentagem de dívida em tomadores oficiais, como a sua dívida é a longo prazo e com taxas de juro fixas relativamente baixas.

"Os países mais endividados lançaram os pacotes orçamentais mais elevados: com acréscimos superiores a 17 pontos percentuais estão Portugal (17), França (18), Itália (21), Chipre (24), e Espanha e Grécia, com 25 pontos percentuais."

Duas observações. As taxas de endividamento dos países mais endividados da zona Euro (Grécia, Itália, Portugal e Espanha) são hoje largamente superiores às taxas aquando ocorreu a crise do Euro. Por exemplo, Portugal tinha em finais de 2010 uma taxa de 100% do PIB e a Itália 119%. Segundo, existe uma forte correlação positiva entre os acréscimos de dívida associados à crise pandémica e os níveis de endividamento (Gráfico 8).

De facto, são os países mais endividados que lançaram pacotes orçamentais mais elevados: com acréscimos superiores a 17 pontos percentuais estão Portugal (17), França (18), Itália (21), Chipre (24), e Espanha e Grécia com 25 pontos percentuais. Seria de esperar que países mais endividados fossem mais contidos nos seus pacotes orçamentais expansionistas, o que revela um comportamento típico de moral hazard (risco moral). Ao contrário, temos países como a Irlanda, Luxemburgo, Bulgária, Suécia e Holanda com pacotes orçamentais inferiores a 7 pontos percentuais.

Vejamos para o caso português como é que o acréscimo de dívida pública foi tomado pelos diferentes credores. O Quadro 1 e o Gráfico 9 mostram a evolução da Dívida Pública por tipo de detentores. Enquanto antes da crise da dívida os não residentes privados detinham 61% do total, em finais de 2020 aquela quota era apenas de 26%, que quase se mantém desde finais de 2014. E quem salvou a situação foram as entidades oficiais: detinham quase zero e em finais de 2020 passaram a deter cerca de 43% do total da dívida.

Considerando que também os bancos portugueses detêm uma carteira de obrigações do Estado sobretudo para operações de política monetária para dar garantias ao BCE na cedência de liquidez, verificamos que hoje apenas cerca de 75 a 80 mil milhões de euros de títulos (cerca de 28%) estão no mercado de negociação, sendo a grande maioria detida por privados externos, o que mostra a estreiteza do mercado português de dívida pública e a forma como hoje está controlado. É extraordinário que aquele valor é mesmo inferior, em termos absolutos, aos 116 mil milhões de euros de 2010.

Outra constatação é a redução das obrigações no mercado privado desde o início da pandemia, apesar do forte aumento da dívida emitida. Conforme o Quadro 1, o stock de títulos no mercado reduziu-se de 30,9 para 27,5% do total, e mesmo em valor absoluto caiu de 78,3 para 73,9 mil milhões de euros. Este é um fator fundamental na justificação do não aumento das taxas de juro e spreads da dívida portuguesa.

Os CEO de 4 dos cinco maiores bancos portugueses em 2020: António Ramalho (Novo Banco), Miguel Maya (BCP), Pablo Forero (BPI) e Paulo Macedo (CGD)

Álvaro Isidoro / Global Imagens

O Quadro 2 mostra que a intervenção do Banco de Portugal, no contexto do Euro, foi fundamental para absorver as emissões de dívida pública desde dezembro de 2015. Entre dezembro de 2015 e 2019 o Banco de Portugal absorveu 24,7 mil milhões de euros de títulos, bastante mais do que foi emitido (15,3 mil milhões), e o mesmo se deu durante a pandemia, com o Banco de Portugal a comprar 17,8 mil milhões de euros nos mercados secundários de dívida pública portuguesa.

Que cenários macro para os EUA e Zona Euro: estagflação ou inflação?

As últimas estimativas do PIB em Nowcast, utilizando técnicas de “big data” e explorando dados diários ou semanais, mostra uma grande dessincronia entre as economias. Os EUA, que tiveram em 2020 uma queda de apenas 3,5%, já estão a registar crescimento continuado desde o 3º trimestre de 2020. Em maio deste ano estavam a recuperar à taxa anualizada de 10%, e espera-se que na totalidade de 2021 cresçam 6,3% (dados da Comissão Europeia de maio de 2021). A Alemanha ainda estava com crescimento negativo até abril de 2021 devido ao atraso na vacinação, começando a recuperar ligeiramente em maio. Para 2021, a Comissão projeta um crescimento para a Alemanha de 3,4%, e para a UE de 4,2%.

Simulações feitas pelo staff do BCE mostram que o impacto só do primeiro pacote proposto por Biden (American Rescue Plan), já aprovado pelo Congresso e que está a ser implementado, de 1,84 biliões de dólares, equivalente a 8,8% do PIB, fará saltar a taxa de crescimento do PIB em 2021 de 4,8 para 6,4, o que corresponde a um multiplicador extremamente baixo (0,18), devido ao facto de uma parte importante do estímulo ser poupado. Mas o que surpreende nestas estimativas é que o impacto na inflação seria, no máximo, de apenas de 0,4 pontos percentuais, difícil de perceber em termos históricos. Este impacto estender-se-ia à Zona Euro, fazendo subir a inflação em 0,15 e o PIB 0,3 pontos percentuais. Veremos se estas hipóteses se confirmam.

"A teoria quantitativa da moeda, a mais antiga teoria económica que vem mesmo da Grécia antiga, diz-nos que um aumento significativo da quantidade de moeda acaba por provocar, nem que seja no médio prazo, um aumento proporcional do nível de preços."

Simultaneamente, tanto o FED como o BCE mantêm políticas monetárias fortemente expansionistas. Os Gráficos 10 e 11 mostram a extraordinária expansão de ativos do Eurosistema (BCE mais bancos centrais da zona Euro) e do FED devido à compra de obrigações do Estado e de alguns títulos privados. Em ambos os casos os ativos já se aproximam dos 8 biliões de dólares e euros. Como o PIB da zona Euro é de 12 biliões de euros e dos EUA de 22,7 biliões de dólares (dados para 2021), estes valores representam uma intervenção do BCE de quase o dobro do FED (63 contra 34% do PIB).

A situação nova que surgiu a partir do segundo trimestre de 2020 é o disparar na zona Euro da taxa de crescimento do agregado monetário M3 (Gráfico 12), que estava a crescer entre 4 e 6%. Uma taxa de crescimento de quase 13% faria “corar” Milton Friedman! E que causa certamente calafrios aos economistas alemães da escola monetarista que dominavam o Bundesbank nos anos 1990 e eram influentes na primeira década do BCE.

A teoria quantitativa da moeda, a mais antiga teoria económica que vem mesmo da Grécia antiga, diz-nos que um aumento significativo da quantidade de moeda acaba por provocar, nem que seja no médio prazo, um aumento proporcional do nível de preços. E um aumento da taxa de crescimento da moeda provoca inflação. Terão as economias do século XXI conseguido contraditar esta “lei” de séculos?

Estarão as expetativas de inflação a subir? Há sinais desta subida que nos devem preocupar. O Gráfico 13 para o mercado norte-americano mostra a inflação esperada nas obrigações públicas a 10 anos medidas pela diferença entre obrigações indexadas à inflação e não indexadas. Este gráfico mostra uma subida acentuada desde o terceiro trimestre de 2020 e que já atinge 2,5%, já acima do target definido pelo FED da inflação de 2%. As expetativas para a zona Euro coletadas pelo BCE, e que embora revelem uma subida em 2021 em relação ao ano anterior, estão ainda contidas em torno dos 1,5%, abaixo da meta dos 2% do BCE.

Esta comparação entre os EUA e a zona Euro parece levar a um paradoxo. O BCE tem levado a cabo um Quantitative Easing que é cerca do dobro dos EUA. Porque é que as expetativas de inflação no Euro ainda são inferiores aos do Dólar?

Uma das justificações vem exatamente da teoria fiscal do nível de preços. É que o rácio da dívida pública no caso dos EUA salta de 108% do PIB em 2019 para 134% em 2022, enquanto no caso da zona Euro sobe de 86 para 101%. E ainda mais extraordinário, o Congressional Budget Office previa em novembro do ano passado que o rácio da dívida atinja 202% em 2050, com as leis correntes, sobretudo devido às despesas com saúde e segurança social. O défice orçamental continuaria bastante elevado nas próximas décadas, atingindo 13% em 2050. Esta evolução ainda não inclui os pacotes propostos por Biden. É evidente que as políticas orçamentais terão que ser alteradas, como é expectável, para evitar este resultado.

epaselect epa09272636 US president Joe Biden (R) is welcomed by President of the European Commission Ursula von der Leyen (L) ahead to the EU-US summit at the European Council in Brussels, Belgium, 15 June 2021.  EPA/OLIVIER HOSLET

A presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, e o presidente norte-americano, Joe Biden, na cimeira UE-EUA.

OLIVIER HOSLET/EPA

Mas não podemos esquecer que existem também outras fontes de inflação que podem ser determinadas pelos custos. Além da subida dos preços dos metais e petróleo, um dos principais fatores que está a originar a subida dos preços em 2021 é a forte subida dos custos da energia. A política energética da UE já está a levar a uma forte subida dos preços da emissão de carbono, os preços em 2021 são 2,5 vezes superiores aos de 2020. Impacto semelhante ao da subida do preço do petróleo em 1974 ou 1980. O mercado de licenças de emissão é hoje dominado por hedge funds e bastante especulativo. E reparemos que a Comissão Europeia ainda está a rever os limites do ETS de acordo com os objetivos climáticos mais ambiciosos votados pelo Parlamento Europeu.

Também o preço de petróleo voltou ao nível de 2019, o que representou uma subida de 45% em relação a 2020. Estas subidas de preços, incluindo também a do gás natural, levou a uma subida dos preços da eletricidade em todos os mercados europeus, cujos preços se situavam antes da pandemia em 40-50, e em 2021 passaram para 60 a 80 euros por MegaWatt/hora. É evidente que estamos perante um efeito de nível, mas os anos 1980 mostraram que este se pode prolongar no tempo através do Quantitative Easing ou da espiral salário-preço.

Estes factos mostram a falta de coordenação entre as políticas monetária, orçamental e climática. É exatamente na altura em que a economia necessita de recuperar dos efeitos do lockdown que se querem subir desmesuradamente os preços do carbono, o que não só leva a uma subida dos preços de produção das empresas e perda de competitividade em relação ao Exterior.

Os pacotes orçamentais da administração Biden e da Comissão Europeia

Em finais de janeiro de 2021, como vimos neste ensaio, o novo Presidente dos EUA propôs o American Rescue Plan de 1,9 biliões de dólares, sob a forma de cheques para as famílias, reforço do subsídio de desemprego, créditos fiscais e outros.

"O que é preocupante é que este estímulo [nos EUA] vem no seguimento dos choques expansionistas de 2020-2021 e numa situação em que a economia já deve ter recuperado da crise e eliminado o hiato do produto, o que – conjugado com o Quantitative Easing do FED – poderá provocar o sobreaquecimento."

Em finais de março deste ano, o Presidente Biden apresentou um novo programa designado por American Jobs Plan (AJP), que compreende uma despesa total de 2,7 biliões de dólares em infraestruturas públicas, energias, I&D, treino de mão-de-obra, habitação social e outros programas sociais, para serem gastos ao longo de oito anos (2022-2029). No mesmo período este programa seria financiado por receitas 1,55 biliões de dólares, provenientes de uma subida da taxa de imposto sobre os lucros das sociedades de 21 para 28%, imposto mínimo sobre estas e eliminação da dedutibilidade de rendimento de intangíveis no estrangeiro e aumento do imposto sobre lucros no estrangeiro. Ficaria, assim, um défice de 1,15 biliões, que acresceria à dívida.

Segundo estimativas do Modelo Penn-Wharton, esta proposta compreende 2,1 biliões de dólares em capital social sob a forma de projetos de transportes, I&D e cadeias de produção domésticas, que iriam aumentar a produtividade do capital privado e trabalho. Os restantes 0,6 biliões são transferências sociais. Segundo as simulações feitas com o modelo, o impacto do programa de despesas seria aumentar a dívida pública em 8,2 pontos percentuais do PIB até 2032, mas o que é interessante é que apesar do efeito de produtividade já referido, o PIB cairia em 0,25, assim como o stock de capital e os salários, devido ao efeito de crowding-out do investimento privado devido ao aumento do défice público.

Por outro lado, o aumento dos impostos sobre as sociedades faz baixar a taxa de rentabilidade do investimento e desincentiva a poupança das famílias, levando a uma redução do PIB de 0,6 pontos percentuais. Na sua totalidade, o AJP reduz o PIB em 0,9 pontos percentuais, o stock de capital em 3% e aumenta a dívida pública em cerca de 2 pontos percentuais.

Em finais de abril, o Presidente Biden anunciou o American Families Plan (AFP), que segundo o Modelo Penn-Wharton corresponderia a uma despesa total de 2,3 biliões de dólares entre 2022 e 2031, compreendendo gratuitidade do pré-escolar para todas as crianças de 3 e 4 anos de idade, gratuitidade de 2 anos dos community college, aumento das bolsas escolares e prolongamento de um conjunto de créditos fiscais para as famílias introduzidos pelo American Rescue Plan. O AFP propõe o financiamento desta despesa através do aumento da taxa marginal de imposto do escalão mais alto de 37 para 39,6%, imposto sobre os ganhos de capital para as pessoas com mais de 1 milhão de dólares de rendimento, e outros impostos sobre os rendimentos mais elevados, totalizando 1,3 biliões de dólares até 2031.

epa08267226 US Federal Reserve Chairman Jerome Powell holds a news conference on an emergency interest rate cut, in Washington, DC, USA, 03 March 2020. The US Federal Reserve made an emergency interest rate cut, lowering the benchmark US interest rate by half a percentage point, in response to economic concerns surrounding the coronavirus. The rate cut is the biggest since the financial crisis in 2008.  EPA/MICHAEL REYNOLDS

Jerome Powell assumiu a presidência da Reserva Federal dos EUA 2018. Teve de lidar com as abordagens de Trump e de Biden para a pandemia.

MICHAEL REYNOLDS/EPA

O efeito combinado da despesa e receita faria baixar o PIB em 0,3 pontos percentuais até 2031 e aumentar a dívida pública em 1,8% do PIB.

Embora os efeitos a médio prazo destes pacotes representem uma subida da dívida pública de cerca de 4% do PIB, o efeito keynesiano expansionista nos próximos 3 a 4 anos é bastante mais significativo, pois as simulações mostram que as receitas fiscais só começam a subir significativamente a partir de 2025.

Não sabemos se o AJP e AFP passarão no Congresso. Aliás, para tornar a subida de impostos mais palatável para os Republicanos, a administração Biden está a propor uma taxa mínima de impostos sobre os lucros das sociedades de 15%, pelo menos entre os países da OCDE, proposta que já tem sido debatida há pelo menos uma década.

Qual o feito combinado destes planos, caso venham a ser implementados? Como vimos acima, em 2021 o ARP provocou um estímulo de cerca de 8% do PIB e aumentou a dívida em cerca de 7 % do PIB. Em 2022-2024 os AJP e AFP podem causar um estímulo adicional de 2,5-2,7% do PIB anualmente, fazendo subir a dívida pública dos EUA até cerca de 142 a 148% do PIB em 2024. O que é preocupante é que este estímulo vem no seguimento dos choques expansionistas de 2020-2021 e numa situação em que a economia já deve ter recuperado da crise e eliminado o hiato do produto, o que conjugado com o Quantitative Easing do FED poderá provocar o sobreaquecimento.

"Em ambas as regiões [UE e EUA] , na medida em que no decorrer de 2022 já se supõe uma aproximação ao PIB pré-pandémico, primeiro nos EUA e mais tarde na zona Euro, é possível que se gere uma situação de sobre-aquecimento nestas economias."

Por seu lado, na UE, é previsível que, a partir de 2022, já as economias europeias estejam em franca recuperação. O programa New Generation prevê o dispêndio de 750 mil milhões de euros em transferências e empréstimos, para o período 2021-2026. Contudo, com os atrasos verificados na sua aprovação, o horizonte reduz-se para 2022-2026. Assim, ao longo de cerca de 4 anos, durante os quais se deve concentrar o gasto, corresponde a cerca de 2,3-2,6% do PIB da zona Euro (é possível que os empréstimos do BEI venham a fazer subir o pacote global para cerca de 1 bilião de euros). A Comissão apenas estima um impacto positivo de 1,5 a 2,3 pontos percentuais sobre o PIB em 2024, o investimento público a subir entre 30 e 45% e o rácio da dívida pública baixa de cerca de 1 ponto percentual, mais nos países altamente endividados por causa de o spread da dívida baixar.

Em conclusão, depois do enorme pacote orçamental para 2021, os pacotes propostos por Biden para os próximos anos, embora de dimensão semelhante ao da zona Euro, são menos expansionistas na medida em que são acompanhados por um aumento de impostos sobre as sociedades e contribuintes de rendimentos mais elevados, enquanto os da zona Euro são financiados por empréstimos comunitários. Ambos os pacotes são introduzidos num contexto de políticas de Quantitative Easing bastante expansionistas, mais na zona Euro. Em ambas as regiões, na medida em que no decorrer de 2022 já se supõe uma aproximação ao PIB pré-pandémico, primeiro nos EUA e mais tarde na zona Euro, é possível que se gere uma situação de sobre-aquecimento nestas economias.

Conclusões

A nossa análise permite tirar algumas importantes conclusões. Primeiro, a crise pandémica veio provocar uma forte subida do endividamento público tanto da zona Euro e ainda mais intensamente dos EUA. Partindo de rácios da dívida sobre o PIB semelhantes e em trono dos 70% na véspera da crise financeira global de 2009, os EUA devem ultrapassar os 140% nos próximos anos, e a UE os 110%.

Segundo, a par desta explosão do endividamento, deu-se a explosão dos balanços dos bancos centrais que intervieram extensivamente nos mercados para adquirir títulos da dívida soberana, o que evitou a subida das taxas de juro e reduziu mesmo o stock de títulos nas carteiras dos privados. Mas o que é menos conhecido é que o sistema de bancos centrais da zona Euro já interveio em volume cerca do dobro dos EUA, quando se toma em consideração a dimensão da economia.

Terceiro, o facto novo que apareceu desde o segundo semestre de 2020 é a forte subida dos agregados monetários, que têm o potencial de fazer subir a inflação a médio prazo, sobretudo quando o hiato do produto for eliminado. Em coerência, as expetativas de inflação começaram a subir acentuadamente, sobretudo nos EUA, e já indicam valores acima do target do FED.

Quarto, as teorias económicas mostram que existe uma constelação de variáveis e parâmetros que podem originar ou inflação a médio e longo prazo, ou estagflação, situações difíceis de combater sem uma subida das taxas de juro pelos bancos centrais, o que obrigaria ao abandono do Quantitative Easing.

Quinto, a inflação é uma forma de reduzir a dívida pública à custa dos rendimentos dos agentes privados, sem necessidade de fazer reformas ou declarar moratórias. Porém, a subida das taxas de juro que são necessárias para reduzir as expetativas de inflação provocam não só recessões como uma subida do serviço da dívida.

Sexto, se a coordenação de políticas e a condução das políticas não forem apropriadas pode assim gerar-se ou uma crise financeira aguda, ou o que menos vezes é reconhecido, crises prolongadas de baixo crescimento e inflação (estagflação) associadas ao processo de desendividamento essencial para restabelecer os equilíbrios dinâmicos macroeconómicos.

Levantamos aqui inúmeros alertas e identificamos vulnerabilidades, não só ao nível dos grandes blocos económicos, mas que se podem agudizar em Estados-membros do Euro que estão particularmente expostos devidos aos seus níveis elevados de sobre-endividamento. E, em particular, o nosso país.

Professor Universitário de Economia. Doutorado pela Universidade de Pennsylvania, EUA. Foi economista sénior do Banco Mundial e administrador do Banco de Portugal. Presidiu à Autoridade da Concorrência

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