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Os últimos cinco anos foram de transformação radical na Igreja Católica em Portugal, confrontada finalmente com a crise dos abusos sexuais cometidos pelo clero — que, ao longo das últimas quatro décadas, tinha alastrado por vários países do universo católico. Em 2018, um conjunto de escândalos globais levou o Papa a convocar uma cimeira para debater formas de combater os abusos; em 2019 e 2020, na ressaca dessa cimeira, os bispos portugueses criaram comissões de proteção de menores e a Igreja implementou novas regras internas; em 2021, a Conferência Episcopal criou uma comissão independente para investigar o problema; no início de 2023, foi divulgado o relatório final, que estimou que poderá ter havido pelo menos 4.815 vítimas de abusos na Igreja em Portugal. Agora, a Igreja diz que entrou numa “nova fase” de acompanhamento das vítimas, de reparação do passado e de prevenção do futuro.
O caminho percorrido pela Igreja em Portugal ao longo dos últimos anos é pormenorizadamente relatado no livro Em Nome do Pai: Abusos sexuais na Igreja em Portugal, da autoria da ex-jornalista do Observador Sónia Simões, editado este mês pela Oficina do Livro, do grupo Leya. O livro está à venda na Feira do Livro de Lisboa a partir desta quinta-feira, dia 8 de junho, e chega às livrarias portuguesas na semana seguinte, no dia 14 de junho.
No prefácio do livro, o padre José Manuel Pereira de Almeida, vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa, sublinha que a leitura de Em Nome do Pai leva o leitor a conhecer “a arrepiante sucessão dos acontecimentos” vividos na Igreja nos últimos anos, permitindo “uma memória inquieta, uma renovada decisão de cuidado pelos mais frágeis, uma esperança fundada de que nunca mais se pactue com situações destas”.
O livro começa com um prólogo em que Sónia Simões recorda o início da sua relação com o tema dos abusos na Igreja: a realização de um conjunto de reportagens de investigação, no Observador, sobre a realidade dos abusos entre o clero católico português, depois de o Vaticano anunciar a convocatória dos presidentes de todas as conferências episcopais do mundo para uma cimeira em Roma. “Eram estas as questões da direção do Observador: ‘Há abusos sexuais por parte de membros da Igreja Católica em tantos países. E em Portugal?’. Nós, como jornalistas, tínhamos a obrigação de perceber se a prática que estava a acontecer em todo o globo se mimetizou em Portugal.” A série de reportagens, intitulada “Em Silêncio“, foi publicada em fevereiro de 2019 e viria a ser galardoada com vários prémios de jornalismo, incluindo o Prémio Gazeta de Multimédia.
Ao longo de mais de 200 páginas, Sónia Simões relata como ao longo dos últimos cinco anos a Igreja Católica em Portugal se confrontou com a realidade dos abusos de menores e como começou, gradualmente, a investigá-los — ao mesmo tempo que completa a narração com os casos concretos de várias vítimas, traça um perfil dos abusadores sexuais na Igreja, analisa o modo como atuaram as autoridades eclesiásticas e o Ministério Público e estabelece ainda a ponte com o que foi feito noutros países que também se confrontaram com o drama dos abusos na Igreja. O Observador faz aqui a pré-publicação do terceiro capítulo, no qual é traçado um perfil do abusador de menores no contexto eclesiástico.
III
«Um pai para eles»: o perfil do abusador
Corria o mês de dezembro de 2012 quando um grupo de mães de jovens seminaristas do Fundão entrou nas instalações da Polícia Judiciária com um conjunto de queixas. O padre responsável pelo seminário deitava‑se na cama dos filhos e acariciava‑os. Os inspetores da PJ não esperaram muito tempo para confrontar o padre visado com as acusações. Mas, assim que bateram à porta do seminário para falar com Luís Mendes, o suspeito, foram informados de que o sacerdote estava doente na cama. Nos últimos seis anos foram‑lhe conhecidos episódios assim. Sofria de depressão e de ansiedade por excesso de trabalho, como chegou a justificar, e refugiava‑se no escuro do quarto com a medicação prescrita para melhorar o seu estado psicológico.
Já detido e sujeito a uma avaliação psiquiátrica, mesmo sem nunca assumir os crimes de que era suspeito, Luís Mendes foi considerado imputável, ou seja, responsável pelos seus comportamentos. Foi acusado, julgado e condenado a dez anos de prisão – por onze crimes de abuso sexual de menores, seis deles menores dependentes, e um crime de coação sexual. Uma pena que viria a ser confirmada pelo Tribunal da Relação e, depois, pelo Supremo. Mas que quase em fim de pena, Luís Mendes continuava a contestar. «Eu era apenas um pai para eles», voltou a dizer ao Tribunal de Execução de Penas, que avaliou em 2022 se deveria sair em liberdade condicional – e que decidiu mantê‑lo preso por continuar a desvalorizar o que fez.
A comissão mandatada pela Conferência Episcopal Portuguesa para estudar os abusos sexuais na Igreja não focou o seu trabalho no percurso dos abusadores, mas nas vítimas. Um método diferente do que fora usado noutros países, como em França, que chegou a entrevistar padres que já tinham cumprido pena para tentar perceber, sobretudo, se tinham interiorizado o crime e como olhavam para os comportamentos que tinham tido ao longo dos anos. As respostas não foram o que se esperava, como veremos mais à frente. Há quem continue a recusar ter cometido qualquer crime, à luz da lei civil, ou mesmo qualquer pecado, mas também há quem aponte culpas a terceiros, e, por vezes, à própria vítima. O caso do padre Luís Mendes enquadra‑se naqueles que ainda hoje negam o que fizeram, alegando que apenas cuidaram das crianças como um «pai».
Luís, hoje com 47 anos, é o mais novo de três irmãos. Nascido no Hospital de Seia, tinha a mãe 38, foi sempre um aluno exemplar. E cedo descobriu a sua vocação. Lembra‑se de que estava ainda na escola primária quando recebeu a visita de um padre da paróquia local. Luís Mendes ficou tão fascinado com o percurso religioso daquele sacerdote, que decidiu ser padre.
Luís era ainda uma criança, mas já tinha consciência das dificuldades económicas dos pais, ambos operários fabris. A mãe sempre teve uma saúde frágil, com problemas nos ossos e depressões nervosas e ele, uma «criança normal», acabaria por ir estudar para um colégio interno ainda com nove anos. Aos 14 passaria para o seminário menor e, ainda antes de completar os 18, entrava no curso de Teologia no seminário maior, na Guarda.
Durante esses anos, Luís Mendes só ia a casa aos fins de semana. Nos outros dias, tal como os colegas, dedicava‑se aos estudos, ao desporto, e até sentiu algumas paixões por raparigas.
Governo ignorou denúncia contra padre do Fundão quatro anos antes da investigação da PJ
Descobriu também um gosto musical, pelo órgão e pelos cantos corais. Enquanto esteve preso na Guarda, tocava e cantava nas missas. O padre Luís nunca perdeu o apoio da Igreja, recebia frequentemente visitas do bispo e dos padres da diocese e ainda hoje continua a haver quem acredite na sua inocência e desvalorize o depoimento das vítimas. Só em 2020, um ano depois da cimeira em Roma, é que Luís perdeu o título de sacerdote. O processo canónico, que terminou com a pena de redução ao estado laical, prolongou‑se por sete anos.
Luís foi sempre um estudante muito ativo. Lecionava aulas de Religião e Moral nalgumas escolas da região, participava frequentemente em encontros de jovens e, já na reta final do curso, começou a colaborar com os futuros colegas, os sacerdotes das paróquias ali próximas. Até que em 2003 foi colocado no seminário do Fundão.
Já preso por suspeitas de abusos, Luís chegou a emocionar‑se quando respondia às perguntas que os peritos lhe faziam para uma avaliação à sua personalidade. Contou, primeiro, que nunca fora vítima de abuso sexual, nem nunca tivera qualquer inclinação, atração ou sentimento especial por crianças, ou mesmo rapazes. Teve sim uma namorada ao longo de dois anos, embora nunca tenham mantido relações sexuais.
Quando lhe perguntaram se era costume deitar‑se na cama com os jovens seminaristas e acariciá‑los, como era acusado, Luís Mendes respondeu o que já dissera antes e que ainda agora mantém: era como um pai e uma mãe para aquelas crianças, apenas as aconchegava. Os beijos e as carícias que lhes dava eram as de um homem afetuoso, como se descrevia. As vítimas, porém, quatro seminaristas e um antigo aluno do liceu onde lecionava Religião e Moral, descreveram muito mais do que isso.
Durante a entrevista a que foi sujeito para a perícia psiquiátrica, Luís revelou‑se um homem «afável, adequado e mostrou‑se colaborante». «Não manifestou alterações do humor e não se detetou um desvio funcional depressivo», lê‑se nos documentos que contam a sua história. Por outro lado, não despertou qualquer emoção ao ouvir as acusações que lhe eram feitas. «Não manifestou sinais de ansiedade ou outra perturbação emocional, mesmo quando confrontado com as acusações efetuadas nos autos.» E esta reação, como veremos, terá um significado.
Já na perícia forense, que procurava indícios físicos do crime, Luís mostrou‑se mais preocupado e até emotivo. Afirmou que as queixas que enfrentava denegriam a família e a Igreja, e que sempre tinha sido uma pessoa de quem todos gostavam. Sobretudo os jovens, de quem conseguiu grande proximidade pela sua forma de ser e de estar.
É normal que um abusador negue ou não assuma o que fez. Vários estudos sobre abuso sexual de crianças, citados por Daniel Sampaio ao longo do relatório final da comissão, revelam que muitos abusadores têm perturbações de personalidade: socialmente são pessoas perfeitamente integradas, mas com grande «capacidade de sedução e manipulação».
O psicanalista britânico Donald Winnicott, que estudou o desenvolvimento psicológico, descreveu em 1990 que alguns abusadores apresentam uma personalidade como «falso‑self», que mais tarde veio a ser descrita por outros autores como «as if», e que se caracterizam precisamente pela adoção de posturas de defesa como a denegação ou a projeção patológica. Assim, é comum que estes suspeitos neguem que algo tenha acontecido, ou que se tenha passado com eles, ou que argumentem que a história não passa de uma invenção, uma fantasia, que mais não serve que para prejudicá‑los. Vitimizam‑se e descredibilizam a verdadeira vítima.
O psiquiatra Daniel Sampaio reconhece a complexidade do que se passa na cabeça destes agressores sexuais. Os abusadores de menores poderão ter uma perturbação no desenvolvimento emocional e sentir o que se chama de um «alerta sexual por uma criança» que pode ser potenciado pelo consumo de pornografia, por exemplo, ou em momentos onde se proporcionam os contactos com uma criança – como quando alguém com esta propensão está sozinho com uma criança «num seminário ou numa tenda», chegou a exemplificar. Nestes casos é necessária uma intervenção psiquiátrica, porque um acompanhamento espiritual não será suficiente para controlar este ímpeto. São impulsos incontroláveis para os quais o acompanhamento espiritual é manifestamente insuficiente e até a terapêutica com recurso a psicofármacos e psicoterapia intensa pode ser ineficaz.
«No caso dos abusadores em contexto religioso, o acompanhamento espiritual, embora muito importante, não é suficiente. É necessária intervenção psiquiátrica e psicológica intensiva e duradoura.»
Haverá cura?
Até aos anos 1990 acreditava‑se que um abusador de crianças sofria de uma desordem que podia ser tratada, mas por esta altura reconheceu‑se que esta apetência por crianças não era curável, mas podia ser controlada com recurso a medicação e a terapia. Mesmo assim, esta reabilitação não é clara, sobretudo quando o próprio agressor não assume o que fez nem acredita ter um problema.
Os investigadores que assinaram o relatório irlandês, sobre a realidade dos abusos na Igreja na diocese de Ferns, recusam afirmar que um padre que tenha abusado de alguém, mesmo que num episódio isolado de há muitos anos, não volte a repetir o abuso depois de ser sujeito a tratamento. «Infelizmente, isso não pode ser garantido. É que nem os tratamentos bem‑sucedidos erradicam esta propensão», lê‑se no relatório sobre a diocese, que durante décadas investiu em tratamentos para os seus colaboradores –, tratamentos estes de acesso pouco generalizado por serem demasiado dispendiosos. Ainda assim, consideram, esta pode ser uma boa forma de prevenir a reincidência.
Também o psiquiatra Daniel Sampaio deixou transparecer sempre esta ideia de incurabilidade ao longo das suas exposições públicas. «Os resultados terapêuticos para os abusado‑ res em todo o mundo não são muito bons», chegou a afirmar, defendendo que a melhor cura para estes casos é uma Justiça «mais célere e eficaz» – só possível se houver denúncia e uma resposta adequada por parte de todos os atores do sistema judicial.
A 12 de setembro de 2013, as televisões e os jornais mostravam as imagens do padre Luís Mendes a chegar ao Tribunal do Fundão para começar a ser julgado. Aparentemente tranquilo, de mãos nos bolsos e mala a tiracolo, o ainda sacerdote nunca se escondeu das câmaras, mas negou sempre os crimes de que fora acusado. Ainda hoje, agora em liberdade condicional e a trabalhar num restaurante, considera‑se vítima de uma grande injustiça.
Gil Carvalho era coordenador da Polícia Judiciária, na Guarda, quando recebeu o caso de Luís Mendes. Mas, quando começou o julgamento, estava já ao serviço da PJ de Leiria. Nesse dia, abriu um jornal regional e deu de caras com a notícia de um outro padre, na Golegã, afastado de funções por suspeitas de abuso. Tinha agora nas mãos mais um processo, que a Igreja não tinha comunicado às autoridades civis e tentara gerir por sua conta e risco.
O padre António Júlio, à data com 45 anos, era suspeito de ter abusado sexualmente de duas meninas de 12 e 13. Uma delas durante o acampamento dos escuteiros, que ele próprio tinha fundado, e outra em plena Feira Anual do Cavalo.
Ao contrário do padre Luís, António Júlio nunca negou ter tocado nas duas meninas. Apesar de a Igreja não ter comunicado logo o caso à polícia e de a investigação ter sido promovida graças à notícia do jornal, mal o caso se tornou público na sua paróquia, ele pediu para ser suspenso de funções até que o processo se resolvesse.
Ministério Público pensou acusar a hierarquia da Igreja por não ter denunciado padre
Aos peritos que o avaliaram psicologicamente para fazer um retrato da sua personalidade, António Júlio contou que, nos dois anos antes dos abusos, sentia uma tristeza profunda. Estava até a ser medicado. Os pais tinham morrido, o cunhado dele cometera suicídio e ele batera no fundo. Chegara a um estado depressivo que, muitas vezes, o impedia de sair da cama, raciocinar ou ter sequer aptidão para conduzir uma celebração religiosa.
O padre António Júlio começou, primeiro, por justificar que o seu comportamento fora inadvertido. Contou que conhecia a vítima, junto à qual se deitou no acampamento de escuteiros, desde os seus seis anos de idade e que ela teria permitido que ele entrasse na tenda e ali pernoitasse. Começava assim por responsabilizar a criança, como fazem muitos abusadores. Só mais tarde assumiu ter agido por impulso.
As suas respostas aos peritos aproximaram‑no das características típicas de um abusador. António Júlio chegou a sugerir que, nalguns casos de abusos, são as crianças que provocam os adultos. Uma afirmação alarmante para quem o avaliava. O evoluir da entrevista faria com que refletisse um pouco mais e o sacerdote acabaria por assumir o que fez, atribuindo‑o à turbulência emocional que o assolava na altura. «Faz um reconhecimento crítico, o que constitui um fator positivo. Deve continuar a ter acompanhamento», lê‑se na perícia que consta no seu processo judicial, onde os especialistas consideraram também que ele teria uma suscetibilidade genética para a depressão.
Durante a investigação ao sacerdote chegariam às autoridades dois outros relatos ocorridos anos antes. As duas adolescentes garantiam que o padre lhes tinha tocado no corpo de forma imprópria. Mas o tempo previsto para a queixa já tinha prescrito e o padre não respondeu por eles. Foi apenas acusado de abusos das duas meninas que o denunciaram inicialmente. O despacho do Ministério Público que o acusava referia que «utilizou a sua influência junto daquela comunidade escutista, na qualidade de seu assistente espiritual católico, e também na paróquia da Golegã, como pároco católico dessa paróquia junto daquelas crianças».
António Júlio nasceu em Torres Novas e, meses depois, a mãe foi internada devido a uma depressão. Ficou aos cuidados de uma irmã e de uma tia durante algum tempo. Filho de uma família humilde, o mais novo de seis irmãos, chegou a reprovar um ano de escolaridade por faltas. Só queria jogar futebol. E só quando foi para a tropa descobriu a sua vocação. Aos 24 anos entrou no curso de Teologia na Universidade Católica, que levaria até aos 30. Ainda tentou tirar também Filosofia, mas acabou por desistir.
Começou por ser padre em Rio Maior, até chegar à Golegã. E garante que teve apenas um relacionamento amoroso quando era um jovem de 15 anos, sem contactos mais íntimos. O padre confessou sentir «pulsões sexuais» que controla com a sua «racionalidade» e jamais sentiu atração por crianças ou por homens.
Quando o processo de que foi alvo veio a público e pediu para ser afastado de funções, António refugiou‑se numa casa que comprara na zona de Fátima. Mas a família encontrou‑o num estado depressivo profundo e acabou por pedir ajuda ao seminário de Santarém que o acolheu. Ficou a cuidar da biblioteca e dos padres mais idosos, até que o Tribunal de Santarém o sentenciou a uma pena suspensa de 14 meses, em 2015. A Igreja acompanhou a pena civil e suspendeu‑o de funções durante este período, mas depois atribuiu‑lhe uma paróquia – onde grande parte das pessoas desconhece o seu passado.
Quase sete anos depois de ser um homem livre, com o seu nome a figurar na lista de abusadores sexuais condenados, António Júlio acredita que mereceu esta segunda oportunidade. «Acho que há possibilidade de recomeçar», disse numa entrevista à SIC em que admitiu não sentir orgulho no que fez e de, até, tentar limitar os seus contactos atuais com crianças. O padre continua a ter acompanhamento psicológico para controlar os seus impulsos.
Não é fácil descrever ou definir o perfil de um abusador sexual. Na maior parte dos casos, estes agressores são pessoas aparentemente adaptadas do ponto de vista familiar, social ou profissional, embora sofram de uma perturbação grave de personalidade. Grande parte do diagnóstico destas pessoas passa pelo que a literatura científica denomina de patologia limite ou borderline da personalidade, ou seja, estão numa espécie de região de fronteira entre a psicose, a neurose e a perversão, com traços das três.
Assim, os abusadores são autocentrados, mas têm também uma enorme capacidade de manipulação e sedução do outro. E quando as vítimas resistem às suas investidas ou tentam pôr termo ao abuso, eles podem retaliar de forma agressiva, porque querem continuar a controlar e a ceder aos seus impulsos. No caso dos abusadores com elevado nível de funcionamento intelectual e cognitivo, com uma personalidade narcisista, ou seja, centrada em si mesmo, as vítimas podem ser usadas como um mero objeto, não existindo com elas qualquer relação emocional.
No caso de abusadores com um défice cognitivo e de baixo controlo dos seus impulsos sexuais, o consumo de álcool ou de drogas, ou até a integração em meios sociofamiliares mais promíscuos, são fatores que podem potenciar estas personalidades. E levá‑los a abusar ou violar.
Durante anos afirmou‑se, também, que uma história de abuso sexual no passado do agressor podia ser um gatilho para, mais tarde, a vítima se tornar num predador sexual. Mas os últimos estudos desenvolvidos sobre o tema têm encontrado dificuldades em fundamentá‑lo, suportando‑se na tese que, se assim fosse, todos os agressores tinham de ter sido vítimas. Uma conclusão que na realidade eclesiástica, ou onde existam modelos de relação hierárquica e de poder, tem de ser mais cuidadosa. Em Portugal, o estudo dos abusos na Igreja encontrou este padrão. «Em estruturas demasiado fechadas em si, em que o próprio abuso poderia corresponder a um ritual patológico de iniciação ou de integração no grupo, como, por exemplo, a existente num seminário» poderá a criança abusada vir a reproduzir o comportamento na fase adulta.
Como já percebemos, raramente as crianças são abusadas por desconhecidos. Habitualmente têm já com eles uma relação, muitas das vezes familiar, e não é raro que estes agressores mantenham ascendente não só sobre a vítima, mas também sobre quem a rodeia, convivendo habitualmente e afastando qualquer margem de desconfiança.
Na Irlanda, os especialistas que estudaram o tema em Ferns concluíram que a maior parte dos padres suspeitos de abusos naquela região eram seres humanos bem‑sucedidos, espirituais e até cuidadosos. «Alguns ficaram conhecidos por serem excelentes professores», outros «excelentes gerentes e angariadores de fundos» e houve também quem os descrevesse como «gentis e inofensivos», facilmente aceites pela comunidade, de trato afável com as famílias das vítimas. Uma imagem bem diferente de um agressor descrito como doente ou com uma adição, que não consegue controlar os seus impulsos. Os agressores em Ferns eram pessoas calorosas e generosas, de grande inteligência e valor profissional. «Esta imagem benigna e inofensiva pode ser aplicada a muitos homens que abusam, não apenas do clero, e é um fator‑chave para permitir que o abuso continue despercebido por longos períodos de tempo», resume o relatório.
Em Portugal, dos relatos que chegaram à Comissão Independente, 96,9% dos abusadores denunciados eram do sexo masculino e, destes, 77% eram padres. O grupo de trabalho liderado por Pedro Strecht estabeleceu no seu estudo uma relação entre o tipo de abusos sexuais e as idades dos agressores, assim como os locais onde ocorreram. Os abusadores mais jovens praticam normalmente atos sexuais como a penetração e fazem‑no em espaços isolados ou retiro. Quando os abusadores são de meia idade, há uma maior diversidade tanto nas modalidades do abuso, como nos contextos onde ocorrem. Agressores de idades mais avançadas recorrem menos ao toque no corpo, e atuam mais no confessionário ou noutro qualquer espaço da igreja.
Estudos internacionais revelam que estes abusadores em contexto eclesiástico podem demorar anos até cometer o primeiro abuso. Vão estreitando relações com as suas vítimas, alimentando uma relação de confiança inquebrável que lhes dá força para agir e que, ao mesmo tempo, os protege de uma possível denúncia. Esta característica foi encontrada, porém, em apenas uma parte da amostra em Portugal. Em 46,7% dos casos, agressor e vítima já se conheciam, mas também numa percentagem muito semelhante de 44,3% não havia qualquer relação anterior, a não ser o contexto religioso.
De salientar que grande parte dos casos de abuso relatados em Portugal ocorreram em seminários (23%), havendo também relatos na igreja (23%), no confessionário (14,3%), na casa paroquial (12,9%) e na escola religiosa (6,9%). O local onde ocorreram foi, porém, variando ao longo do tempo, o que se prendeu provavelmente com o encerramento dos seminários menores. E, à medida que o registo de abusos foi reduzindo nos seminários, foi aumentando noutros locais fora da igreja, como em acampamentos de escuteiros. Em 57,3% dos casos, os abusos aconteceram mais do que uma vez.
Não foi nada de importante
Em França, a comissão que estudou os abusos sexuais no clero daquele país, e que acabou por motivar o mesmo trabalho em Portugal, centrou uma boa parte da sua pesquisa nos abusadores. Com uma amostra muito maior de padres já condenados por crimes sexuais naquele país, os técnicos da comissão fizeram 12 entrevistas e consultaram 35 processos relativos a padres que estavam nos arquivos da Igreja, e que reuniam toda a informação sobre cada um deles.
Foram as próprias dioceses que, em colaboração com os investigadores, indicaram uma série de nomes com quem podiam falar. Alguns casos foram descartados por causa da idade já avançada dos agressores ou por aparentes lapsos de memória que aparentavam ter. Ainda assim, foram concluídas 11 entrevistas a padres e uma a um diácono.
Os resultados destas entrevistas permitiram recolher alguns dados para traçar aquele que será o perfil do abusador sexual no seio da Igreja. Mas, a verdade é que não difere muito das características dos agressores sexuais que a literatura já tinha oferecido e cujas personalidades já explicitei.
Mais de metade dos padres entrevistados declararam ser homossexuais e alguns assumiram manter relações ativas com adultos da mesma idade. Nos relatos ouvidos pelos especialistas franceses houve também quem tenha admitido ter sido vítima de abuso sexual, enquanto outros apenas referiram a «excessiva» proximidade física entre seminaristas, quando ainda estudavam.
Uma das explicações mais comum para os abusos, segundo afirmaram, foi a necessidade de afeto ou de intimidade com outras pessoas. Mas houve, também, quem tentasse justificar os seus comportamentos com um período de insatisfação naquele momento das suas vidas, compensado essa frustração com os atos sexuais. A maior parte destes agressores minimiza ou relativiza o que fez, à semelhança dos dois padres portugueses condenados na Golegã e no Fundão. E aponta culpas à própria Igreja ou mesmo à época que se vivia – uma característica dos abusadores em geral que raramente se sentem responsáveis pelos seus atos.
Um dos padres franceses visados teve até um discurso semelhante ao do padre Luís Mendes, negando os abusos de que era acusado e referindo que apenas teve para com as vítimas gestos de «ternura» como um pai tem com um filho.
Em França percebeu‑se que até o pedido de perdão pode ser forçado e pouco genuíno. Os investigadores sublinharam no relatório final que quando os agressores pediram desculpa pelo que fizeram, não o sentiam, muito menos carregavam sentimentos de culpa. Fizeram‑no apenas porque era o que os diferentes interlocutores, judiciais e terapêuticos, queriam ouvir.
Para um estudo mais completo sobre os abusadores em contexto eclesiástico, a equipa francesa estudou ainda 35 dossiês de membros do clero que estavam nos arquivos da Igreja: 33 eram padres, os outros diáconos ou leigos. Do material que conseguiram analisar foi possível retirar algumas conclusões interessantes: a idade média destes agressores era de quase 36 anos na altura em que cometeram o primeiro crime. Cada um dos abusadores fez uma média de sete vítimas e, em 87% dos casos, em que a vítima era menor, agressor e vítima já se conheciam.
Dos casos em que as vítimas eram menores, apenas um terço se queixou. Mas já nas vítimas em idade adulta, 80% não hesitaram em formalizar queixa. Estes números refletem‑se na justiça francesa, como os casos de abusos na justiça portuguesa, em que a dificuldade em fazer prova trava o processo em tribunal reduzindo o número de condenações. Dos dados franceses é possível retirar, porém, que há menos condenações de abusadores sexuais de menores do que de adultos. Também a pena aplicada difere num ou noutro caso: a pena aplicada a um abusador de uma criança chega a ser três a quatro vezes mais curta do que nos processos que envolvem agressões sexuais a vítimas já adultas.
Pedofilia
No final da análise às entrevistas e aos dossiês de cada clérigo, os investigadores perceberam que alguns agressores sofriam de transtorno pedofílico. É importante perceber que nem sempre o que para a lei pode ou não ser um crime corresponde aos critérios do que a psiquiatria classifica como uma parafilia. Nas classificações psiquiátricas, as parafilias são desejos e comportamentos sexuais atípicos em relação a pessoas que em razão da sua idade ou vulnerabilidade não podem exprimir um consentimento sexual.
Em Portugal, por exemplo, os atos sexuais cometidos contra crianças até aos 14 anos são considerados pela lei penal crimes de abuso sexual. Mas, entre os 14 e os 16 anos, a lei admite poder haver já consentimento sexual, pelo que os classifica como atos sexuais com adolescente. Até aos 14 anos os crimes são públicos e podem ser denunciados por qualquer um que tenha deles conhecimento, mas entre os 14 e os 16 os crimes são semipúblicos e precisam da formalização da queixa por parte dos próprios ou pelos seus responsáveis para o processo prosseguir. É preciso manifestar‑se que estes atos foram contra a vontade do adolescente.
A pedofilia, ou o transtorno pedofílico, por seu turno, caracteriza‑se por fantasias, impulsos ou comportamentos intensos ou recorrentes sexualmente excitantes envolvendo adolescentes pré‑púberes ou jovens geralmente até aos 13 anos. A partir desta idade e já na puberdade denomina‑se de hebefilia. O transtorno pedofílico só é diagnosticado a maiores de 16 anos que tenham uma diferença de idade superior a cinco anos em relação à vítima. Adolescentes entre os 17 e os 18 anos que se envolvam com crianças de 13 anos não reúnem os critérios clínicos deste transtorno, mas à luz da lei são considerados criminosos.
Segundo a professora de psiquiatria Florence Thibaut – que, além de ter vários trabalhos publicados sobre abusadores sexuais, integrou a comissão independente que em França estudou os abusos na Igreja –, 70% dos pedófilos são homens e podem interessar‑se tanto por meninas como por meninos. Podem limitar‑se a observar uma criança nua e excitar‑se e masturbar‑se perante ela, como podem acariciá‑la, manter relações sexuais e, no limite, provocar a morte da criança.
Entre estes agressores, distinguem‑se os que não têm uma preferência sexual particular ou exclusiva por crianças, mas que as utilizam como parceiros sexuais de substituição, e os que têm de facto uma preferência sexual por crianças, mas que mesmo assim casam e constituem família. Nos casos em que a preferência é exclusivamente por crianças ou jovens, as atividades sexuais são racionalizadas como se tivessem um valor educativo ou fossem mesmo uma fonte de prazer para a criança, ou, ainda, porque consideram que foi a criança que provocou. O agressor pode ele mesmo considerar‑se como um eterno jovem (Síndrome de Peter Pan).
A comissão francesa concluiu que «fatores pessoais, interpessoais e sistémicos se combinam de forma muito complexa para promover a agressão sexual dentro da Igreja Católica como dentro de qualquer sociedade». No entanto, os criminosos sexuais dentro da Igreja Católica apresentam um certo número de especificidades: as agressões são mais frequentes contra crianças do sexo masculino e os agressores têm um nível sociocultural superior por comparação à população em geral. Alguns agressores têm uma orientação sexual preferencial por crianças ou adolescentes, mas representam menos de 10% dos casos. «Imaturidade sexual e emocional, bem como traços narcisistas altamente desenvolvidos em certos membros do clero que foram sublinhados por vários autores anglo‑saxónicos, podem favorecer agressões sexuais», conclui a coordenadora do estudo francês.
Muitas vezes as agressões sexuais parecem mesmo resultar da solidão, da frustração sexual e da busca de afeto, como aliás alguns padres condenados chegaram a justificar. Comportamentos que parecem inconsequentes, o que alimenta a sensação de poder por parte do agressor eclesiástico.
Na verdade, concluem os especialistas liderados por Thibaut, a estrutura hierárquica particular da Igreja Católica pode dar a um membro do clero uma ilusão de poder sobre os fiéis, protegendo‑o de todas as suspeitas e até mesmo permitindo‑lhe justificar certas agressões sexuais
Na Irlanda, as conclusões tiradas anos antes atiram à própria Igreja e ao seu funcionamento. A equipa que estudou este flagelo, na diocese de Ferns, assumiu até que a distinção entre pedófilos e efebófilos no caso dos sacerdotes era inútil, assim como a sua orientação sexual ou até o facto de se sentirem sós e serem obrigados ao celibato. Para estes investigadores o que deve ser relevante nestes casos é que os sacerdotes que abusam priorizam os seus desejos, considerando‑os acima das regras que têm de cumprir e do bem‑estar e segurança das crianças.
É sabido, e os números mostram‑no, que o abuso sexual de criança raramente acontece uma só vez ou casualmente. É aliás um ato bem planeado por parte do agressor que cria uma série de circunstâncias para que ele aconteça. Há casos em que os sacerdotes vão desenvolvendo uma relação com a criança, dão‑lhe boleia, levam‑na de férias, mas só mais tarde, estabelecida a confiança, se dá o abuso físico. Por outro lado, é comum que estes abusadores procurem atividades que envolvam crianças ou que os coloquem em cargos de responsabilidade sobre outras crianças, ou que até façam a amizade com a família dos amigos – como também acontece por exemplo com treinadores desportivos. «O abusador geralmente tem como alvo crianças vulneráveis com interesses que ele, o abusador, pode satisfazer, o que atrairá a vítima para um relacionamento próximo. Isto pode conduzir a uma forma de chantagem emocional, através da qual as vítimas podem ser levadas a pensar que elas próprias são responsáveis pelo abuso», lê‑se no relatório irlandês.
Em muitos dos casos analisados pelos irlandeses, as únicas pessoas que sabiam do abuso eram o agressor e a vítima – o que se arrastou ao longo do tempo. Há provas de que as distorções cognitivas destes padres são fortes, consequência do conflito que sentem pelo seu comportamento abusivo e pelas suas aspirações espirituais. E há quem opte por racionalizar, como aqueles que consideram que Deus os chamou porque sabe que sofrem de uma certa «fraqueza» e assim serão perdoados. Estes agressores tendem a ver os abusos numa escala onde medem todo o bem que fizeram ao longo do seu ministério, considerando que por todo o bem que já fizeram poderão vir a ser perdoados pelos abusos que perpetraram.