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Redes sociais e escalada de violência: ainda sem números, polícias estão atentas aos crimes e tipos de armas usadas após fim de restrições

Os números ainda não permitem perceber ao certo se a criminalidade disparou após o fim das restrições, mas as polícias têm já uma perceção: estão mais violentos. Os casos que têm marcado a atualidade.

Depois de sentir a primeira facada no pescoço, Rafael Lopes, 19 anos, ainda tentou fugir em direção à plataforma do metro das Laranjeiras, em Lisboa. Mas um dos quatro suspeitos que o perseguiam acabaria por atacá-lo pelas costas e o rapaz, estudante do ensino profissional, perdeu a vida diante de dezenas de passageiros que circulavam naquela estação. Pouco passava das 13h00 da última quarta-feira. A hora, o local, o motivo até podem mudar, mas há algo que liga este crime a muitos outros que se têm registado nos últimos meses: a violência extrema com que são cometidos e o uso cada vez mais generalizado de armas brancas, como facas.

O crime que vitimou Rafael não foi apenas testemunhado por quem estava na estação. O sistema de videovigilância mostra como dois dos rapazes que lhe fizeram a emboscada fugiram da estação acelerados, sendo detidos horas depois pela Polícia Judiciária (PJ). Os suspeitos ainda roubaram um telemóvel à vítima, mas os inspetores da Secção de Homicídios da PJ acreditam que esse não era o móbil do crime. O homicídio aconteceu no metro de “forma fortuita”, como explicou o coordenador da Investigação Criminal da área de Lisboa e Vale do Tejo, porque na verdade agressores e vítimas — todos já com cadastro — se conheciam. E para tal, avança a PJ, contribuíram as redes sociais onde diariamente grupos que vivem em bairros diferentes se exibem e confrontam.

Numa conferência de imprensa realizada na sede da Direção Nacional da Polícia Judiciária, o coordenador Pedro Maia sublinhou esta semana que este tipo de confrontos sempre existiu durante a sua já longa carreira de polícia. No entanto, há mais violência e a explicação pode mesmo estar nas redes sociais — onde os contactos entre agressores e vítimas começam e ganham proporções que, depois, têm os seus resultados na rua, cara a cara. “Noto que vão existindo casos violentos de confronto entre jovens pela facilidade com que se acede as redes sociais”, admitiu, mostrando a necessidade de tentar travá-los a tempo.

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José Manuel Anes, do Observatório da Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo, em declarações à rádio Observador, acrescenta ainda que as redes sociais são espaços não só para conflitos entre grupos por “motivos diversos, por questões simbólicas”, mas também “por negócios escuros e questões passionais”. E explicou que depois da violência verbal vem a física.

As mesmas redes sociais que, segundo disse também esta semana a ministra da Justiça Francisca Van Dunem, foram nos últimos quase dois anos um novo espaço para a criminalidade. Num discurso que fez em Braga, a governante focava sobretudo os crimes de burla, corrupção, fraude e referia-se a um crescendo de mensagens racistas e xenófobas. Para a Direção Nacional da PSP, de facto, estes crimes parecem ter aumentado no período de pandemia, como o próprio Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) apontou em relação a 2020, em que se verificou um aumento de quase 27% de crimes informáticos relativamente ao ano anterior, ou seja, mais 353 casos. O aumento da criminalidade espelhado neste relatório, no entanto, não está relacionado com a delinquência juvenil, que é analisada pelas equipas que gerem o programa Escola Segura da PSP. Sobre estes últimos crimes, os dados oficiais ainda nem sequer existem, mas já há uma perceção por parte de quem está no terreno e de quem os investiga.

"Noto que vão existindo casos violentos de confronto entre jovens pela facilidade com que se acede as redes sociais"
Pedro Maia, coordenador de Investigação Criminal na diretoria de Lisboa e Vale do Tejo

PSP atenta ao regresso à escola e à criminalidade entre os jovens

Ao Observador, o intendente Guinote, chefe da Divisão do Policiamento de Proximidade da PSP, diz que é prematuro fazer análises sobre o reflexo da pandemia na criminalidade, porque só há cerca de um mês se voltou a uma vida praticamente normal e as estatísticas, amigas desta análise, não são suficientes para conclusões. No entanto não esconde a preocupação do que pode acontecer em ambiente escolar entre os mais jovens.

“Estamos a observar. Os alunos estão a retomar as suas vivências presenciais, estamos muito alerta com os responsáveis da escola para percebermos se existe algum comportamento que pode gerar algum conflito”, afirma, dizendo que para isso não é necessário esperar por um aumento da criminalidade.

Aliás, fontes de várias polícias contactadas pelo Observador confirmam isso mesmo. As estatísticas ainda não revelam se o crime disparou no pós-pandemia, mas a perceção é que a criminalidade grave está cada vez mais violenta. E dentro deste tipo de criminalidade entram crimes praticados por suspeitos de diversas faixas etárias — roubos, extorsões, violações e sequestros. Da PJ, por exemplo, algumas fontes dão conta de que se assiste a um aparente aumento de crimes com recurso a armas brancas, nomeadamente facas, que acabam investigados por aquela polícia. E há cada vez mais agressões de maior gravidade, afirmam. Os números podem ainda não existir, mas essa é uma perceção clara de vários polícias.

Violência tem marcado a atualidade nos últimos meses

E as notícias têm dado conta de alguns dos casos de maior violência registados desde que as restrições começaram a ser aliviadas. A 1 de julho, no bairro Vale Figueira, na Sobreda, concelho de Almada, um cantoneiro de 33 anos foi assassinado à facada por dois irmãos de 23 e 25 anos que o perseguiram pela rua. Carlos Semedo, a vítima, tinha ameaçado anteriormente os agressores com uma faca. Os problemas terão começado quando Carlos Semedo fora acompanhar um amigo à casa da ex-companheira, tendo este último agredido a mulher à frente dos filhos menores.

Quase dois meses depois, mas em Campo Maior, um rapaz de 17 anos era detido por ter morto à facada um amigo um ano mais novo com quem discutira. Um cenário semelhante aconteceu em São Domingos de Rana, Cascais, ainda em abril, quando um rapaz de 18 anos matou à facada um outro de 15 anos.

"Estamos a observar. Os alunos estão a retomar as suas vivências presenciais, estamos muito alerta com os responsáveis da escola para percebermos se existe algum comportamento que pode gerar algum conflito"
Intendente Guinote, PSP

E os crimes violentos, contra a vida, que têm marcado a atualidade não se ficam por aqui. Ainda em abril uma rapariga de 18 anos foi morta a tiro em Pataias, Alcobaça. A Polícia Judiciária acabaria por deter o suspeito, um ano mais velho, e apreendeu também alguma quantidade de droga. Seis meses depois, já este mês e no mesmo concelho, os bombeiros foram chamados à estação ferroviária de Martingança com a indicação de que havia um tiroteio. Quando chegaram ao local depararam-se com a rapariga ferida na cabeça, em plena via pública, junto à estação ferroviária de Martingança. Foi levada para o hospital em estado grave.

Mas os crimes mais violentos nem sempre envolvem armas brancas ou de fogo e têm sido presenciados em todos os pontos do país. Em plena baixa do Porto, um ex-atleta do clube de Matosinhos foi morto à pancada à porta de um bar às mãos de um jovem de nacionalidade francesa, entretanto detido.

Para Renata Benavente, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses, também é difícil estabelecer já uma relação entre a pandemia e um possível aumento de agressividade. Mas a verdade é que esta situação “única” parece já estar a afetar recuperados de Covid com sequelas neurológicas até aqui desconhecidas. Por outro lado, quem não esteve doente também sofreu impacto. E “o que poderá acontecer é que esta reabertura possa ser vivida de uma forma mais intensa e haver menos filtros”, constata, dando como exemplos os “comportamentos mais agressivos, uma maior reatividade, uma maior impulsividade e agressividade”. Comportamentos agravados em quem já tinha dificuldade em “controlar os seus impulsos”.

Homicídios aumentaram em período pandémico

Os dados não permitem corroborar, para já, a perceção que a polícia tem da criminalidade e da sua violência nos últimos meses, mas dados sobre homicídios fornecidos ao Observador já permitem retirar algumas conclusões. Se compararmos os primeiros seis meses do ano de 2019 (sem pandemia) com os de 2020 e 2021, em que houve escolas encerradas e períodos de confinamento, os números dão um sinal. Apesar de terem sido menos os momentos de contacto físico, com menos saídas à rua e apenas para o essencial, isso não se espelhou numa redução do número de homicídios. Pelo contrário.

Nos primeiros seis meses deste ano registaram-se 52 homicídios, em 2020 61 e no ano anterior tinham sido 51. No total do ano 2020, em que foi registado oficialmente o primeiro caso de Covid-19 em Portugal, os homicídios também subiram: com 93 homicídios, enquanto que no ano anterior tinham sido 89.

As armas brancas e as armas de fogo sempre foram, por esta ordem, as mais usadas para cometer este tipo de crime em Portugal, mas no ano em que a pandemia de Covid-19 foi declarada no País, foi a força física a forma mais comum de matar (ver gráficos). No primeiro semestre de 2020, 15 dos 61 homicídios investigados pela PJ a nível nacional foram cometidos pelas próprias mãos, o dobro em relação aos outros anos (2019 e 2021).

Ordem para travar noites de violência e droga em Lisboa. Sem guerra de gangues ou escalada do crime, como a PSP controlou locais de diversão

O uso de facas predominou sempre nos últimos anos, embora nos últimos meses estejam a ser também usadas para outro tipo de crimes, como as ofensas à integridade física, ou agressões. O Observador, aliás, já tinha noticiado que na noite de Lisboa este era também um fenómeno referido pelas autoridades: com os estabelecimentos de diversão noturna fechados, havia mais pessoas a saírem à noite armadas por não terem de passar por controlos de detetores de metais, por exemplo, em discotecas. Mas mais uma vez só os números de armas apreendidas, ofensas à integridade física graves e até internamentos por crime poderão, daqui a uns tempos, retratar melhor esta nova realidade.

Indisciplina na escola também aumentou com a pandemia

Para já os números que a PSP reúne no âmbito do programa Escola Segura, e que permitem medir o pulso à delinquência juvenil, mostram que entre 2013 e 2019, antes da pandemia, chegavam das cerca de 3 mil escolas abrangidas por este programa policial cerca de 1900 ocorrências — entre participações de injúria, ameaças e ofensas à integridade física.

“Em regra o número destas participações tem se mantido estável, mas quando analisamos separadamente as injúrias e as ameaças das ofensas à integridade física, esta ultima baixou e as outras aumentaram” (ver gráfico), constata o oficial da polícia, sem números ainda deste novo ano letivo. Para o polícia a explicação é só uma: há mais queixas por injúrias e ameaças e, por isso, menos agressão. Os “jovens estão a autopoliciar-se”, diz.

Ainda assim, no ano letivo de 2020/ 2021, com escolas fechadas ou reabertas a meio gás, com períodos de quarentena, registaram-se 737 crimes de agressões e 334 de injúrias. No ano de 2018/2019 tinham sido 1151 as agressões e 721 as injúrias e ameaças.

Por outro lado há um registo importante que a polícia faz que não corresponde a um crime, mas mais a situações de indisciplina na escola: são as chamadas perturbações das atividades escolares. E aqui os números não sofreram uma descida assim tão drástica: 2020/2021 fechou com 324 casos, no ano anterior tinham sido 389, mas no ano letivo 2013/2014, por exemplo, foram 281.

A psicóloga Renata Benavente não se admira com estes resultados. Para ela foram os jovens e adolescentes quem mais sofreu, porque ao ficarem restringidos deixaram de ter uma vivência normal. A sua experiência clínica diz que das escolas chegam cada vez mais jovens com sintomatologia de ansiedade. “As experiências de socialização, o contacto com os seus pares, aquele processo de emancipação da família são de facto experiências decisivas. E eles estiveram privados disso”, alerta. A especialista lembra que estas experiências são fundamentais para os mais jovens aprenderem a lidar com outros que tenham comportamentos diferentes. “Houve aqui um período em que não puderam exercitar estas competências. Agora estão a retomar este processo que não foi desenvolvido antes”, constata.

A própria polícia já percebeu no terreno que há uma maior reatividade por parte das pessoas. Aliás, já o Relatório Anual de Segurança Interna mostrava isso mesmo, sobretudo num período dominado por regras sanitárias tantas vezes contestadas. Na criminalidade considerada mais grave, o documento dá conta de uma redução geral da criminalidade violenta (com uma descida de 13,4% dos crimes participados). No entanto, dentro dos crimes considerados graves há um que disparou em 12,5%: o crime de resistência e coação a funcionário com 173 casos. Um crime punível de um a cinco anos para quem “empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique ato relativo ao exercício das suas funções”.

*com Carlos Diogo Santos

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