O caminho para a próxima Comissão Europeia ainda é longo e para Maria Luís Albuquerque, a comissária indicada por Luís Montenegro, pode ser espinhoso. O relatório da Inspeção Geral de Finanças (IGF) veio ressuscitar o processo de privatização da TAP — conduzido em 2015, quando era ministra das Finanças — levantando suspeitas de crime. A Comissão Europeia não comenta o assunto, mas a esquerda portuguesa não parece inclinada a fazer esquecer esse passado facilmente, nem mesmo num palco europeu.

Ainda não se conhece a pasta que será atribuída a Maria Luís no futuro colégio de comissários, mas já se sabe que, entre setembro e outubro, a comissária indigitada terá de passar por um processo de audições públicas, no Parlamento Europeu (tal como todos os outros indicados), ao mesmo tempo que será ouvida no Parlamento português por causa do processo de privatização da TAP. Um pedido que foi feito pelos vários partidos políticos com assento parlamentar, assim que foi noticiado o relatório da IGF.

Questionado pelo Observador sobre as implicações que o caso pode trazer para a nomeação de Maria Luís Albuquerque, para decisão da pasta a ser-lhe atribuída ou até mesmo se foi necessário algum contacto extra com o Governo depois das notícias em Portugal, o porta voz da Comissão Europeia respondeu apenas que a instituição “não comenta o processo nem detalhes de contactos”. A eventual fragilização de um nome português não parece, no entanto, preocupar a esquerda, que não vai deixar esquecer o assunto, nem mesmo em Bruxelas.

No PS, que esteve à cabeça do pedido de audição parlamentar de Maria Luís, a abordagem do assunto está, ainda assim, em ponderação. Em declarações ao Observador, Marta Temido diz considerar “prematuro fazer qualquer juízo no que respeita à nomeação nacional” de Maria Luís para a Comissão, lembrando que o processo ainda “é longo e detalhado, passando por várias fases, nomeadamente a da avaliação da distribuição de pastas, apreciação de conflitos de interesses dos candidatos, realização de audições, elaboração de relatórios de avaliação e, finalmente, votação por parte dos vários grupos políticos do Parlamento Europeu”.

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Entre socialistas, nota fonte em Bruxelas, a questão é vista “sensível” e ninguém ignora que é delicado para qualquer eurodeputado inviabilizar um comissário do seu país. No entanto, recorda-se que a votação do Parlamento Europeu será sempre em função do grupo político, ou seja, os Socialistas & Democratas decidirão em conjunto, o que pode implicar que os eurodeputados portugueses eleitos pelo PS fiquem associados a um parecer negativo da sua família política ao nome de Maria Luís.

Segundo o Regimento (anexo VII), o Parlamento Europeu não avalia comissários individualmente, apenas o colégio no seu todo, mas as audições individuais em comissão dão pareceres que já foram decisivos no passado. Ainda em 2019, a comissão de Assuntos Jurídicos do Parlamento Europeu chumbou os comissários indigitados pela Roménia e pela Hungria — por questões de conflitos de interesses, logo na análise das declarações de interesses que cada candidato tem de entregar.

Em Bruxelas, a delegação europeia do PSD não quer alimentar qualquer conversa nesse sentido. Para os sociais-democratas, como sintetizou o próprio Luís Montenegro, este relatório não vem trazer qualquer “dado novo” em relação ao que era já sobejamente conhecido, pelo que a nomeação de Maria Luís Albuquerque continua tão sólida como antes.

E mesmo que ninguém o diga abertamente e nestes exatos termos, importa lembrar que Luís Montenegro apoiou ativamente candidatura de António Costa à presidência do Conselho Europeu e que chegou mesmo a defender o antecessor numa reunião com os seus parceiros do Partido Popular Europeu (PPE), quando foram levantadas reservas em relação ao processo judicial que envolve Costa. Por isso, seria de esperar que os socialistas se comportassem agora com um mínimo de reciprocidade.

PCP e BE aquecem críticas. Chega já questionou nomeação

Nas declarações públicas feitas em reação à escolha de Luís Montenegro, na semana passada, os partidos focaram sobretudo na questão da memória da troika, que associaram à ministra das Finanças de Pedro Passos Coelho. Mas com o sempre tóxico tema da TAP na berlinda, o foco mudou de imediato. As críticas de Bloco de Esquerda e PCP foram bem audíveis nos últimos dias em relação à gestão de Maria Luís Albuquerque nas Finanças, aproveitando o momento em que foi indicada para a Comissão.

Ainda na segunda-feira, na SIC Notícias, Catarina Martins pegou na ligação “a este Governo” de “muitos dos protagonistas” do processo de privatização de 2015 no qual, considerou, “o interesse público foi esmagado” e, sem ninguém lhe perguntar, fez questão de recordar que “Maria Luís Albuquerque também esteve neste processo de várias formas e em várias alturas e correram todos mal“. “Não deixa de ser interessante que seja premiada com uma proposta para comissária europeia”, rematou. Contactada pelo Observador, Catarina Martins fez saber que está a ler o relatório da IGF antes de tomar uma posição.

Já o PCP, num nota publicada no dia em que foi noticiado o relatório da IGF, anotou também que “não deixa de ser significativo que uma das principais responsáveis políticas pelo encobrimento desta criminosa privatização – a Ministra das Finanças da altura – acabe de ser proposta para a Comissão Europeia”. Os comunistas desvalorizam a questão da nacionalidade, considerando que “isso não deve prejudicar o escrutínio que tem de ser feito”, como se nota no partido quando a questão é sobre a postura que os eurodeputados portugueses terão em relação a este assunto.

Na última semana, o eurodeputado comunista João Oliveira, já tinha criticado, num artigo que publicou no jornal “Avante!” a forma como se discute que nome deveria ser indicado pelo Governo português para a Comissão, ironizando com “critérios de escala elástica associados à ‘notoriedade’ da figura em causa, ao ‘reconhecimento’ dentro e fora de fronteiras, ao ‘percurso’ académico, profissional ou institucional”, por exemplo.

Ainda não se sabia que o nome seria o da antiga ministra das Finanças e Oliveira já avisava que o que o PCP considera importante é saber se a escolha teria “ou não em conta a necessária defesa das políticas que efetivamente defendam os interesses nacionais”. E entre estes colocava a concordância ou não do próximo comissário com “o caminho de desmantelamento e privatização dos serviços públicos”.

E nem só à esquerda o momento de Maria Luís foi colocado como sensível nesta fase, também no chega André Ventura considerou que a ex-ministra “está muito fragilizada”, empurrando para Montenegro a responsabilidade de dizer se “tem condições para ser nomeada comissária europeia”, bem como o ministro das Infraestruturas, Miguel Pinto Luz, que foi secretário de Estado dos Transportes na altura da privatização da TAP.

O Observador procurou saber o que pretende fazer a delegação europeia do Chega, mas fonte do gabinete de António Tânger Corrêa limitou-se a dizer que o partido vai esperar pela sessão do plenário do Parlamento Europeu para se pronunciar sobre o tema.

Durante o fim de semana, na intervenção que fez na Universidade de Verão do PSD, ainda antes do relatório da IGF, Maria Luís Albuquerque tinha-se queixado da falta de solidariedade na política nacional quando está em causa um cargo internacional.  “Se há coisa que o nosso país precisa de se empenhar é em apoiar portugueses para ocuparem posições de maior relevo para instituições europeias “, disse então.

“É preciso pensar primeiro que é o candidato de Portugal e depois pensar se é o candidato do partido que calha estar ou não do Governo, primeiro é o candidato de Portugal“, considerou ainda. Servia de ajuste de contas com o passado — queixava-se de, em 2021, se ter candidatado à presidência do supervisor europeu dos mercados de capitais , tendo falhado pela falta de “apoio político” do Governo de António Costa. Pode enfrentar o mesmo obstáculo num futuro próximo.