As pressões inflacionistas — ou a “espiral inflacionista”, expressão repetida pelo Governo — foi o fantasma usado pelo Executivo para contrariar os pedidos de subida dos ordenados dos funcionários públicos além dos 0,9% (decididos antes da guerra e da escalada da inflação e, portanto, insuficientes para evitar a perda de poder compra). A argumentação, então, era que a inflação seria temporária e que carregar nos aumentos salariais só a prolongaria. Para já, não há sinais em Portugal de que as subidas dos salários estejam a fomentar mais inflação, dizem os economistas ouvidos pelo Observador. Mas alertam que os próximos tempos podem trazer o fantasma da “espiral inflacionista” à superfície. E, nesse capítulo, o Orçamento do Estado para 2023 será decisivo — pelo “sinal” que o Governo der nas pensões e nos salários da função pública.
No primeiro trimestre do ano, o salário médio (mais concretamente, a remuneração bruta total mensal média por trabalhador) subiu 2,2% face ao mesmo período do ano anterior (embora, com o “imposto” inflação, a perda real tenha sido de 2%). Esta tendência foi acelerada nos três meses seguintes: no trimestre terminado em junho, os salários já cresceram 3,1% face a período homólogo (com o corte da inflação, a perda real foi de 4,6%).
O avanço médio de 3,1% não significa uma pressão inflacionista, garantem os economistas contactados pelo Observador. João Borges de Assunção, professor da Universidade Católica, considera, aliás, que subidas homólogas nominais nos salários entre 3% e 3,5%, como aconteceu no primeiro e segundo trimestres, são “relativamente normais desde que Portugal aderiu à moeda única“. Daí que acredite que “as pressões inflacionistas oriundas dos salários ainda estão relativamente fracas em Portugal“.
Paulo Rosa, economista sénior do Banco Carregosa, aponta no mesmo sentido: “Uma subida de 3,1% não me preocupa de todo. Não é por aí que vamos ter a inflação a crescer”, sublinha. O economista está mais preocupado com o contributo da energia e dos custos da alimentação para a inflação. Para que houvesse algum contributo dos salários, os aumentos teriam de rondar o valor da inflação, que no segundo trimestre do ano chegou aos 8%, ditando uma perda de poder de compra de 4,6% — um corte que “até retira pressão sobre a inflação”. Como já escreveu o Observador, a maioria dos trabalhadores já perdeu poder de compra e só dois setores escaparam: o da “eletricidade, gás, vapor, água quente e fria e ar frio” (e porque o subsídio de férias foi pago no período em análise) e o das “atividades de consultoria, científica, técnicas e similares” (que se vê a braços com dificuldades na contratação de trabalhadores qualificados).
Acresce que os 3,1% de aumento médio estão até abaixo do que se verificou nalguns meses do pré-pandemia. Em janeiro de 2019, por exemplo, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e os cálculos do Observador, a remuneração média aumentou 5,8% face ao mesmo mês do ano anterior, quando um mês antes o avanço tinha sido de 5,4%. Nessa altura, a taxa de inflação homóloga foi de 0,48% e 0,66%, respetivamente.
João Cerejeira, professor da Universidade do Minho e especialista em mercado de trabalho, também não vê ainda pressões inflacionistas pelos salários. E aponta como uma possível razão para o aumento da média salarial a evolução do próprio mercado laboral: o desemprego desceu, no segundo trimestre do ano, para 5,7%, menos 0,2 pontos percentuais face ao primeiro trimestre do ano e um ponto percentual em relação ao mesmo trimestre de 2021.
Mais emprego, se melhor remunerado, pode ter puxado pela média salarial. “O mercado de trabalho português está, neste momento, numa situação próxima do pleno emprego. É natural que os salários cresçam por essa via”, afirma.
Por isso, não acredita que os salários estejam a subir devido a um “efeito de reivindicação” por parte dos sindicatos ou dos trabalhadores. Até porque os ordenados tendem a começar a ser negociados na segunda metade do ano — e, no segundo semestre do ano passado, não se esperava nem uma guerra na Ucrânia nem uma escalada inflacionista, pelos que os aumentos negociados foram mais modestos.
Ainda assim, tem dúvidas de que as pressões inflacionistas cheguem em força no final do ano. Por um lado porque “o peso da atividade sindical, atualmente, é muito inferior ao que era há 20, 30 anos”. “Há menos capacidade de os sindicatos influenciarem as empresas por essa via”, acredita. Por outro lado porque uma componente grande da inflação atual vem do lado da oferta, das empresas, que estão a pagar matérias-primas e energia mais caras.
Por causa disso podem conter os aumentos salariais: “As empresas ou conseguem transferir esses custos para os preços — e só o conseguem fazer aquelas que têm poder de mercado grande, como é o caso das petrolíferas — ou então têm dificuldade em refletir [os aumentos dos custos salariais] nos preços, na mesma proporção. Portanto, as margens ficam escassas para ter aumentos salariais na mesma ordem de grandeza”.
BPI não viu pressões inflacionistas no primeiro trimestre
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Numa análise aos dados do INE relativos ao primeiro trimestre, o BPI escrevia que se observava uma “ligeira tendência de aceleração” — os tais 2,2% — que representava uma “normalização dos impactos vividos” durante a pandemia e estavam “longe de representarem um fator de risco no que concerne à formação de pressões inflacionistas”.
O banco justificava essa análise com o facto de a proporção de trabalhadores com aumentos superiores a 3% ter sido mais baixa nos primeiros meses de 2022 do que antes da pandemia e a média dos dois anos da Covid-19. Nos primeiros três meses de 2022, 42,1% dos trabalhadores tiveram aumentos salariais superiores a 3%, o que compara com 55,5% em 2019 e 47,8% em 2020-21.
No primeiro trimestre, a remuneração bruta total cresceu 2,2% em termos homólogos, “não muito diferente do crescimento médio homólogo de 2,5% registado no período pré-pandemia”. Em 2020-21, “o crescimento médio foi superior, cerca de 3,5%, mas tal explica-se pelo facto de, durante a pandemia, os empregos mais afetados terem sido os mais frágeis e com remunerações mais baixas”.
E concluía que, “embora se verifiquem divergências na dinâmica remuneratória entre os vários setores, não se observam para já fortes pressões salariais“. “Embora não se exclua a possibilidade de virmos a assistir em setores onde a escassez de mão de-obra é mais notória a aumentos salariais mais significativos, consideramos que no conjunto da economia os aumentos não se deverão afastar dos valores recentes observados, na medida em que as alterações são acordadas maioritariamente no início do ano (usando como referência as alterações no salário mínimo nacional e aumentos na função pública)”, escrevia o BPI.
Adicionalmente, “a esperada desaceleração da atividade até ao final do ano também jogará um papel importante na limitação do crescimento salarial”.
O Orçamento do Estado ao virar da esquina
Daqui para a frente, diz João Borges de Assunção, “tudo dependerá do sinal que o Governo vier a dar no âmbito da discussão do Orçamento do Estado para 2023″, que será apresentado em outubro, no que toca aos aumentos das pensões e dos salários da função pública.
O primeiro-ministro já admitiu uma subida “histórica” das pensões no próximo ano, por via do aumento automático, previsto na lei, que faz depender as pensões da evolução da economia e da inflação. Conjugados estes efeitos, há pensões, as mais baixas, que podem vir a crescer à volta dos 7%. O próprio Presidente da República já antecipou que os aumentos das pensões por esta via podem significar uma acréscimo da despesa na ordem dos dois mil milhões de euros, mas acredita que haverá, nos próximos anos, uma normalização.
Quanto aos salários da função pública, a discussão com os sindicatos só começará a ser feita em setembro. No final do ano passado, o Governo definiu que os aumentos deste ano corresponderiam à taxa de inflação média registada em novembro do ano anterior: 0,9%.
Para os aumentos do próximo ano, não promete que a fórmula se repita. Com o arranque da escalada da inflação, em abril, a ministra que tutela a função pública, Mariana Vieira da Silva, disse que o nível de atualização dos salários vai depender da “natureza da inflação“, “do sucesso das medidas que estamos a tomar para conter os preços”, “da situação internacional” e da “situação económica e financeira do país”, alertando: “Todos os passos têm de ser sustentáveis no tempo”.
Aumento “histórico” das pensões? Marcelo lembra que advém da lei e acredita que será excecional
Paulo Rosa também antevê que a partir da segunda metade do ano, os trabalhadores e os sindicatos, sobretudo os que têm “mais poder reivindicativo”, procurarão “repor pelo menos parte, não digo todo, do poder de compra”. Os valores ao certo dessas reivindicações ainda não estão definidos, até porque é muito incerto em que patamar vai terminar a inflação no final do ano — a Comissão Europeia aponta para 6,8%, enquanto o FMI fala em 6,1%, a OCDE em 6,3% e o Banco de Portugal em 5,9%. Paulo Rosa diz que “em boa parte”, a evolução dependerá do comportamento do preço da energia, mas também do evoluir da guerra ou do abastecimento de gás para a Alemanha. “Se tivermos um agudizar desse lado, teremos um preço da energia a subir ainda mais e a impactar ainda mais a inflação”, vaticina.
Mas alguns sindicatos já estão a dar pistas para uma batalha negocial que se avizinha dura. Os sindicatos da função pública têm dito que não aceitam aumentos inferiores à inflação e, no privado, há movimentações semelhantes. Ao Negócios, o presidente do Mais Sindicato, António Fonseca, do setor da banca, defendeu que as atualizações salariais de 2023 devem ser superiores à inflação. O número ao certo da reivindicação ainda não está fechado, mas o sindicalista não tem dúvidas: “Depois de os bancários perderem durante tantos anos, não será possível pedir uma atualização inferior à inflação previsível para 2023“.
Mas os economistas alertam que aumentar ordenados em linha com, ou acima da, inflação já poderia espoletar a tal “espiral inflacionista” do lado dos salários. “Se houver subidas de salários alinhadas com a inflação anual média de 2022 as pressões inflacionistas para os próximos anos serão fortes“, indica João Borges de Assunção.
Em junho, o governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, defendeu que subir salários até 2% não cria pressões inflacionistas, se acompanhado por ganhos de produtividade. “Não geram pressões inflacionistas subidas de salários, que sejam no máximo em termos nominais idênticas ao nosso objetivo de inflação no médio prazo [2%], idealmente acrescidos de ganhos de produtividade”, disse, mantendo a recomendação de cautela nas subidas salariais.
Produtividade em Portugal vai crescer acima da média europeia. Mas estamos mesmo mais produtivos?
Em maio, tinha feito o mesmo alerta (que até já tinha feito anteriormente): “Neste momento é importante ter muita cautela na avaliação daquilo que são as atualizações salariais porque esta questão de reforço do rendimento disponível não é uma matéria apenas para um semestre ou um ano, é uma matéria mais longa”. Um aumento de 3,1%, mesmo com ganhos de produtividade, já significa uma pressão inflacionista? O Observador questionou o Banco de Portugal, que se escusou a comentar.
Centeno pede “cautela” nas atualizações salariais e insiste que inflação é “temporária”
“O Governo vai ter muita dificuldade em manter o discurso”
Paulo Rosa, do Banco Carregosa, concorda que o que o Executivo definir no Orçamento do Estado para 2023 será uma “bitola para os sindicatos do setor privado”. Mas defende que “o Governo vai ter muita dificuldade em manter o discurso” que teve nos primeiros meses da guerra, quando recusou ir além nos aumentos salários da função pública argumentando que a inflação era temporária.
“O conceito da inflação é uma subida generalizada e contínua dos preços. Generalizada já é”, aponta o economista, com efeitos transversais à energia, aos alimentos, cereais e a outras matérias-primas. “Se é contínua ou não… Seria fácil responder se a guerra terminasse hoje, mas não sabemos. E parece-nos pouco provável neste momento que acabe em breve dado àquilo a que assistimos. Esta inflação que nos parecia, e ao Governo, temporária, vai gradual, paulatinamente, tornando-se uma inflação mais persistente“.
Manter perante os sindicatos a ideia de que a inflação é temporária e com as perdas de poder de compra de 5% à vista, argumentar que aumentar muito os salários traz pressões à inflação não vai ser tarefa fácil:
É um pau de dois bicos, não é fácil gerir. Não manter algum nível de poder de compra aos seus trabalhadores e não dar o tal sinal para o privado vai gerar algum sentimento recessivo nas pessoas e, por esse lado, uma diminuição na procura. Por um lado, acaba por ter um reflexo positivo na inflação, mas conduzir a economia a uma recessão. Se, por outro lado, se alimentar esse aumento de salários para manter o poder de compra, o que pode acontecer é as pessoas continuarem a consumir da mesma forma e esta inflação tonar-se contínua e persistente. Não é fácil, não quereria estar na pele do ministro das Finanças“, diz Paulo Rosa.
O economista acredita que o Governo está a acumular alguma receita — nomeadamente com o IVA, e apesar das reduções, com o ISP — e, por isso, pode usá-la para aumentos salariais no Estado: “Já garantiu uma almofada na execução orçamental do primeiro semestre”.