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"O Salto" estreou-se no Teatro Carlos Alberto, no Porto, a 21 de setembro. Depois da passagem por Lisboa segue para o Teatro Aveirense, onde se mostra a 3 de novembro
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"O Salto" estreou-se no Teatro Carlos Alberto, no Porto, a 21 de setembro. Depois da passagem por Lisboa segue para o Teatro Aveirense, onde se mostra a 3 de novembro

João Tuna / TNSJ

"O Salto" estreou-se no Teatro Carlos Alberto, no Porto, a 21 de setembro. Depois da passagem por Lisboa segue para o Teatro Aveirense, onde se mostra a 3 de novembro

João Tuna / TNSJ

"O Salto": uma tragédia na estrada da emigração portuguesa

Nova peça d'A Turma põe a tónica no lado mais sombrio da emigração portuguesa durante o Estado Novo, através de um trabalho de pesquisa sobre o passado que nos convoca a discutir o presente.

Sem luzes no céu, do escuro total rompem os faróis ligados. As sirenes da polícia ecoam ao longe. Não é só um carro à beira da estrada. É um portal para aqueles que um dia decidiram deixar a sua terra e partir em busca de uma vida melhor. “Ficou um estigma na nossa sociedade de que aqueles que fugiam para outro país eram cobardes”, nota Tiago Correia, autor e encenador de O Salto, peça sobre a emigração durante o Estado Novo que sobe ao palco do Teatro São Luiz, em Lisboa, de 4 a 8 de outubro.

A nova criação da companhia A Turma dá espaço às histórias menos felizes da emigração portuguesa nos anos 60 e 70. “Fala-se dos casos de sucesso”, como de quem regressa nas férias com grandes carros ou um pé de meia para uma casa, “mas não se fala muito sobre os horrores que essas pessoas viveram nessas travessias e nesses primeiros tempos nos bairros de lata de Paris, em condições não tão diferentes daquelas que estão a ser dadas agora aos migrantes que cá chegam”, compara o encenador, a quem interessou recuperar esse passado para falar de semelhantes tragédias contemporâneas.

“É importante recordar que fomos um povo de migrantes para discutir a forma como agora acolhemos aqueles que chegam cá. Parece que há uma espécie de lapso de memória. Os nossos avós, os nossos pais, os nossos tios, familiares, estiveram exatamente nesta situação. Agora muito facilmente se ouve alguém a dizer que é contra a abertura das fronteiras aos migrantes, que vêm para cá roubar o trabalho. É preciso ter realmente falta de memória histórica para conseguir afirmar isso. Foram milhares e milhares e milhares de portugueses que tentaram partir para a Europa por várias razões, ou em fuga à pobreza, à miséria, à opressão ou à guerra colonial. Tinham de fugir clandestinos do país e em redes organizadas. Mas é algo de que não se fala assim tanto.”

“É importante recordar que fomos um povo de migrantes para discutir a forma como agora acolhemos aqueles que chegam cá. Parece que há uma espécie de lapso de memória"

Correia recorreu à parca bibliografia disponível, como dois livros publicados pela Associação de Exilados Políticos Portugueses, Exílios — Testemunhos dos Exilados e Desertores Portugueses na Europa (1961 e 1974), em 2016, e Exílios.2 — Testemunhos dos Exilados e Desertores Portugueses (1961-1974), em 2018, ou ainda Caminhos de l Demonho — testemunhos de passagem, obra de David Casimiro e Guilherme Filipe sobre a emigração transmontana entre os anos 1960 e 1970, publicada pelo município de Miranda do Douro em 2018.

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Julgando não ser suficiente para a investigação que se propunha a fazer, fez-se à estrada numa viagem de Melgaço a Vilar Formoso, “sempre pela fronteira, a parar em várias localidades fronteiriças para tentar descobrir as coisas que não estava a descobrir através da bibliografia”. Encontrou o Espaço Memória e Fronteira, em Melgaço, um pequeno centro museológico dedicado à emigração e contrabando, tão importante quanto os testemunhos que foi recolhendo de gente com saber capaz de o transmitir.

“Foi difícil conseguir testemunhos concretos sobre estas passagens que corriam mal. Muitas destas pessoas ainda têm uma memória viva, mas estão muito envelhecidas. Às vezes alguém que tinha realmente sido a pessoa certa para falar ou estava no lar ou estava muito debilitada. Foi uma pesquisa difícil”, admite. Pelo meio, encontrou histórias de guardas fiscais, passadores, de pessoas que conseguiram, literalmente, dar o salto. Deparou-se também com França, freguesia do concelho de Bragança, “uma aldeia mesmo na fronteira, onde havia alguns passadores que deixavam lá as pessoas ignorantes do que se estava a passar, de quanto tinham andado ou de onde estariam, e que diziam ‘pronto, já aqui está, chegaram a França’. Recebiam o dinheiro, iam embora e deixavam-nos lá”.

Foi nesse processo que se confrontou com um dos motivos que poderá explicar a ausência de informação. “Apercebi-me que há uma espécie de um apagar deste momento específico. É como se fosse um momento traumático do qual não se quer falar, porque, apesar de tudo, há uma grande vergonha, porque as pessoas eram vistas como cobardes, porque estavam a fugir da guerra colonial, e isso é um dos grandes tabus”.

Quem se quer assumir um desertor? “Ficou um estigma na nossa sociedade de que aqueles que fugiam à guerra eram cobardes, ou que aqueles que fugiam para outro país eram cobardes. É quase como se ainda se sentisse um medo de falar sobre isto.” Em O Salto, o encenador procura ir além desse receio e “concentrar numa ficção o medo e o terror que, tanto na altura, nos anos, 50, 60, 70, as pessoas passaram, como as que agora entram num barco, atravessaram o Mediterrâneo passam. Há aqui uma tentativa de concentrar essa experiência numa hora e meia de espetáculo”.

Com várias personagens no interior do carro, é através de um ecrã que o público observa de forma mais próxima os acontecimentos

João Tuna / TNSJ

“Apanharam-me com discos proibidos, música boa”, escuta-se da voz de uma personagem. “Eu sou contra a guerra, mandaram-me para lá como castigo”, diz outra. Em palco, cada qual com o seu motivo para estar foragido, há algo em comum: “Estamos juntos na dor e na miséria”. O elenco é composto por Beatriz Maia, Inês Filipe, João Nunes Monteiro, Rafael Ferreira, Sofia Vilariço e André Júlio Teixeira.

“Não são apenas pessoas comuns que estão à procura de uma vida melhor, que não têm dinheiro e que estão a fazer uma migração por motivos económicos, porque aí sabemos — ou diz-se — que os guardas fiscais [da Pide] ou fechavam os olhos ou tinham uma tolerância diferente. Aqui temos pessoas que são da oposição ou desertores da guerra colonial nesta viagem”, descreve o encenador. É a miséria e obscurantismo do tempo em que se vivia, dominado pela opressão da ditadura e pelo tema dissidente da deserção à guerra colonial, o pano de fundo para o conflito da peça, que arranca depois de um despiste do carro que põe em causa o sucesso da viagem.

Ainda que ao longo dos 90 minutos nunca se escute a palavra Portugal, “é óbvio que a peça se passa durante o Estado Novo, a uns quilómetros da fronteira com Espanha”, esclarece o criador, que quis que “o texto e o espetáculo tivessem essa abertura”, como porta para leituras universais. “Apesar de estarmos a tratar uma temática muito específica, não estamos aqui para falar só do presente ou só de Portugal. Estamos aqui a tentar encontrar pontos com aquilo que está a acontecer em todo o mundo.”

A história é ficcionada, mas baseada em testemunhos reais de quem fugiu de Portugal no período do Estado Novo

João Tuna / TNSJ

No palco do São Luiz, um carro acidentado ocupa o palco. Com os atores cingidos ao interior e espaço circundante do automóvel, é graças a um grande ecrã suspenso que é possível observar o que decorre dentro da viatura. Ali está projetado um vídeo que está a ser gravado em tempo real. O dispositivo cénico é idêntico ao que há umas semanas se mostrou, também no Porto e em Lisboa, em The Talking Car, obra de Agnieszka Polska no âmbito da BoCA: um carro cheio de atores e um ecrã como complemento estético e dramatúrgico. “Já ouvi dizer”, diz Tiago Correia, questionado sobre as semelhanças. De resto, não é a primeira vez que este encenador português recorre ao vídeo como complemento de uma peça de teatro. Fê-lo em Alma (2018) ou Turismo (2020).

Neste caso, justifica-se com a possibilidade de oferecer ao espectador uma maior intimidade com as personagens. “É um trabalho que vive do que se passa no olhar do ator, naquilo que se passa entre os atores e que não é visível na última fila da sala se não houver um vídeo que amplie essas subtilezas”, começa por dizer, alegando também as questões inerentes à mobilidade. “Há uma personagem que está encarcerada no carro durante a peça toda, outra que está gravemente ferida. Não quero falsear e pô-las a mexer, quero perceber como é que teatralmente é possível trabalhar com essas condicionantes. E a câmara, o vídeo, ao vivo, vão, de alguma forma, aproximar-nos deles e permitir uma maior liberdade na interpretação.”

Como lida o encenador com o aparentemente paradoxo apelo à proximidade quando se interpõe entre o ator e o espectador uma câmara como mediadora? “Como é ao vivo, é um bocadinho diferente do que se fosse um vídeo já feito antes. Não há edição, não há montagem”, defende sobre o plano-sequência de uma hora e meia (com apenas um corte para uma mudança de plano). “Acho que [a proximidade] não se perde, não se destrói que é o teatro. É só apenas mais uma forma de nos aproximar da experiência teatral, de não nos distanciarmos dela”. Mesmo, no teatro, a olhar para um ecrã.

De 4 a 8 outubro, quarta a sábado, às 20h, domingo, às 17h30, no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa

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