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Sara Correia quer ser mais. É uma frase simples, mas que encapsula bem o modo de estar e a ambição de uma artista que, aos 30 anos, é já um dos nomes consagrados da nova geração do fado. Prestes a lançar Liberdade, o seu terceiro álbum de estúdio, já pisou palcos nos quatro cantos do mundo, ganhou prémios e conquistou o carinho do público e o reconhecimento do meio crítico. Louros que poderiam satisfazer a grande maioria dos artistas mas que, para Sara, são apenas o começo. “O meu futuro vai ser cada vez melhor”, diz, já no fim da entrevista ao Observador.
É uma fasquia elevada que a própria coloca mas que, contrariamente ao que se possa pensar, não trai as raízes humildes que carrega e das quais se diz orgulhar. Foi esse, aliás, o ímpeto para Chelas, primeiro single do novo álbum e um hino ao bairro lisboeta onde Sara Correia nasceu, onde aprendeu a ser mulher e fadista.
“Sara, tem cuidado com o que dizes / Lava a cara, tu não mostres de onde vens / Põe vestidos e esconde as tuas raízes / Finge lá que és senhora, tu finges bem”, canta, na terceira pessoa, num lamento das pressões para se adaptar nos moldes do bom gosto. É um lamento que, no refrão, se revela como desafio e afirmação de identidade: o “calão” é o “bom português” de alguém que se assume do bairro e carrega a sua matriz cultural e linguística – uma atitude que se estende à própria conversa com o Observador, sempre em tom casual e sem ligar a formalismos de linguagem.
Essa maneira de estar, alheia a convenções, é também visível na sua própria conceção do que é o fado e o seu lugar no panorama musical. Quando lhe perguntamos acerca das suas influências pessoais, Sara Correia não vai de modos: tira o telemóvel e começa a disparar referências diversas a partir do seu Spotify: Frank Sinatra, Concha Buika, Sam the Kid, Benjamin Clementine… a lista é extensa e reveladora da diversidade musical de alguém que, trazendo sempre consigo a herança histórica do fado de Amália, já aliou a voz à produção de Stereossauro, aos beats dos Bateu Matou, já interpretou Carlos Paião e António Variações e assume como sonho colaborar com Billie Eilish. “Com todas as músicas do mundo que se cruzam umas com as outras, porque é que o fado não o pode fazer?”, questiona.
Liberdade é, por isso, um álbum de multitudes, das várias dimensões de uma fadista para quem o fado é, mais do que um género musical, uma forma de estar na vida. Foi essa multiplicidade de perspetiva que esteve na base da escolha do leque diverso de colaboradores – Carminho, Carolina Deslandes, Pedro Abrunhosa, Tiago Bettencourt – que com ela prepararam o novo álbum e escreveram os temas aos quais a sua voz dá vida, acompanhada da produção do amigo e colaborador de sempre, Diogo Clemente. “São pessoas que fazem parte da minha vida, que me conhecem e que escreveram para mim sobre como eles me veem, como sei que me veem”, diz. Estamos, no fundo, perante um álbum de família, a família musical, e para a família, a das suas origens, a do bairro. Não podia ser de outra maneira, garante.
“Há pessoas que me desacreditam muito pelo facto de ser do bairro”
Descreves Liberdade como sendo um disco “de afirmação”. O que é que isso quer dizer?
É um disco sem amarras de nada, sem as amarras que a vida nos põe. Eu venho do fado, canto desde os 9 anos, e neste disco tive a liberdade de ser totalmente a Sara Correia, sem qualquer medo ou receio do que pudessem dizer. Foi um caminho, nos últimos cinco anos, em que andei a viajar muito e a cantar muito fora do meu país, que fez com que me conhecesse melhor a cada dia, e com que pudesse perceber quem sou e para onde quero ir. Este disco é o resultado disso, é a Sara Correia livre de qualquer crítica ou amarra. Prefiro dizer “amarra” porque críticas vai haver sempre. Não tem nada a ver com outras pessoas, tem a ver comigo mesmo.
O primeiro single, Chelas, é uma homenagem ao bairro onde cresceste, e onde acabas por falar sobre algumas pressões no sentido de te vestires de uma certa maneira, falar de uma certa maneira — de “ser uma senhora”, como diz a letra. Depois acabas por reforçar essa tal ideia de autenticidade com a última canção do álbum, Ser Rebelde. Tens sentido essa pressão até aqui, para te comportares dentro dos padrões “corretos” do meio musical?
Quando gravei o Chelas, foi com a certeza absoluta de que não tinha problemas nenhuns em admitir de onde sou e de fazer uma homenagem ao meu bairro. As pessoas têm sempre um estereótipo em relação a Chelas, acham que é só coisas más, e não é. Quis mostrar a outra vertente de Chelas: as boas pessoas com quem cresci, os meus vizinhos, as pessoas que me criaram e me fizeram a mulher e a pessoa que sou hoje. Às vezes (e as pessoas de Chelas não têm culpa nenhuma nisso) há pessoas que me desacreditam muito pelo facto de ser do bairro, do género “se calhar não vai conseguir”. Quis mostrar que isso é mentira, que com trabalho, foco e muita força de vontade, tudo é possível. Podes vir de onde quiseres que és sempre capaz de conseguires realizar os teus sonhos se trabalhares para isso. Aliás, isto é uma homenagem a Chelas, mas é também uma homenagem a todos os bairros. Este, para mim, é especial, porque é o bairro onde cresci.
Foi preciso haver um período de maturação para poder escrever um tema tão pessoal sobre o sítio de onde vieste?
Tinha de ter arcaboiço para o fazer. Tinha de ter maturidade e força suficiente para mostrar esse lado ao mundo. Há mais pessoas que acham que o Chelas não tem mérito do que as que acham o contrário. Mas como eu não quero saber disso, gravei-o, porque a minha gente merece isso e merece saber que estou com eles para sempre, não tenho qualquer problema com isso. Mas sinto que hoje, com 30 anos, tenho muito mais arcaboiço para cantar um tema destes…
Do que, por exemplo, em 2018, no primeiro disco.
… Sem dúvida. Não seria a mesma coisa, nem teria se calhar a mesma garra e a mesma vontade. Na altura, se calhar não sabia o que é que tinha para dizer.
[“Chelas”:]
Fala-me um bocadinho da tua infância, do que foi crescer em Chelas. Que memórias tens desse período?
Não me vou vitimizar, mas a minha infância não foi fácil. Mas também acredito que, por não ter sido fácil, deu-me a força de não desistir à primeira, nem à segunda, nem à terceira, de ir atrás das coisas com toda a força. Foi uma infância difícil, mas sempre com apoio, da minha mãe, dos meus avós, da minha família. Acima de tudo, lá está, com boas pessoas. Daí fazer este Chelas. É para os meus vizinhos que ficavam sempre de olho em nós quando íamos jogar à bola ou quando fazíamos as nossas rebeldias que não posso contar… Mas posso dizer que, por ter passado algumas dificuldades, isso só me deu mais força para ter chegado aqui, com três álbuns. Se calhar, se tivesse uma vida mais facilitada, não tinha a mesma noção. Quer dizer, também não sei como seria se fosse de outra forma; o que sei é que foi assim, que por não ter a vida facilitada aprendi a correr atrás das coisas e continuo a correr, e hoje em dia tenho mais capacidades do que alguma vez podia imaginar.
Queria falar sobre os teus colaboradores, as pessoas que trabalharam contigo neste álbum. Juntas aqui um leque de nomes, do Tiago Bettencourt, a Carolina Deslandes, o Pedro Abrunhosa…
A Carminho.
…A Carminho também. No fundo, são duas perguntas: por um lado, como é que foi trabalhar com eles e, por outro, de que forma é que marcaram a diferença, o que é que trouxeram de diferente a este álbum?
Este álbum é diferente porque é direcionado à pessoa que sou e à forma como eles me veem. São pessoas que fazem parte da minha vida, que me conhecem e que escreveram para mim sobre como eles me veem, como sei que me veem. Todos os temas são o espelho da minha alma. Por isso é que digo que este disco é tão importante, porque todos estes temas e todos os artistas que trabalharam neles são artistas que admiro imenso, que conseguem ver além da “Sara fadista”. Era isso que queria para este álbum, foi disso que fui à procura. E claro, com a grande ajuda do Diogo Clemente, que é um produtor musical inacreditável.
Têm uma relação muito próxima e longa. Qual é a importância do Diogo na tua carreira e na tua vida?
O Diogo para mim é, sem dúvida nenhuma, um dos maiores artistas que temos em Portugal. Só que acho que o Diogo sempre se focou muito noutros artistas e não tanto nele próprio. Agora vai lançar um álbum e um livro, e acho que chegou o momento dele também mostrar um bocadinho daquilo que tem, porque é um ótimo compositor, um produtor fora-de-série, percebe imenso de música. Tem mesmo uma capacidade muito grande, é espetacular. E eu tive a sorte de ter crescido ao lado dele e de aprender muito com ele. Aprendo todos os dias com ele — não há um dia que não fale com o Diogo e não retenha uma informação nova, é incrível. Adoro andar na estrada com ele. A minha equipa, a minha banda, somos uma família. O meu baixista conhece-me desde os 9 anos, o Ângelo [Freire, guitarrista] e o Diogo cresceram comigo nos fados, e isso depois torna o caminho muito mais fácil, para os discos, para estrada, tudo.
Vinha a ler as letras do álbum no caminho para aqui. Corrige-me se estiver enganado, mas não assinas nenhuma das letras, pois não?
Não. Deus me livre.
Não está nos planos?
Talvez um dia, mas agora não. Sou como o Frank Sinatra ou como a Edith Piaf: Deus deu-me voz e deu-me mãos, mas não me deu caneta. Todas as pessoas que estão no meu disco são pessoas que respeitam a língua portuguesa. Isso para mim é o essencial.
“Não podemos continuar a ser o que as fadistas eram há 50 ou 60 anos”
Chelas tem uma tradição muito grande no hip-hop — o Sam the Kid é obviamente o nome maior, mas há muitos outros rappers, podíamos estar aqui o resto do dia a mencionar nomes. Tu foste por um caminho completamente diferente, mas há uma semelhança entre o fado e o hip-hop enquanto “géneros marginais”.
Porque vêm do povo.
Sentes que o fado continua a ter essa dimensão?
Hoje já não. Os tempos mudaram, a forma como se vê o fado é completamente diferente de como se via antigamente. Quando comecei a cantar, olhavam para o fado e não percebiam porque é que o cantava. Hoje em dia é do género: “Cantas fado? Uau, que lindo!”. As coisas mudaram muito. Acho que também tem a ver com a nova roupagem, com a nova forma de se estar na vida. As pessoas falam do fado tradicional, mas não podemos continuar a ser o que as fadistas eram há 50 ou 60 anos. Os tempos mudaram, modernizaram, estão diferentes. Eu sou do fado antigo, mas trago comigo os dois mundos, porque não dá para não trazer. Canto fado há 20 anos mas tenho 30, continuo a ser jovem. O hip-hop hoje em dia também é visto de outra maneira, como o fado, não achas?
Acho que sim, mas acho que ainda tem uma certa carga.
Tem mais do que o fado. Mas esta geração está a mudar isso, porque ouvem muito hip-hop. Daqui a cinco anos tudo isso vai ser diferente. Se reparares, há mais festivais a incluir hip-hop, há programas dedicados ao hip-hop — temos o próprio caso do Sam the Kid –, como também há o programa A Casa da Amália, que é de fado.
Achas que ambos os géneros estão assumir um papel diferente na nossa cultura?
É o papel que têm de ter, que é muito importante no nosso país.
Apesar de uma carreira discográfica relativamente curta, tens já uma história muito longa de colaborações com coisas que não têm nada a ver com fado: desde o Stereossauro, aos Bateu-Matou… já disseste que gostarias de colaborar com a Billie Eilish?
É um sonho, não sei é se ela quer. Mas também gostava muito de trabalhar com a Carolina Deslandes, ainda falta fazer uma música com ela, cantar com ela, porque a admiro imenso.
Não surgiu essa possibilidade neste disco?
Ela está a fazer vozes no Chelas, mas fazer mesmo uma música, tem de ser muito especial. Tudo a seu tempo, já falámos sobre isso. Vai acontecer.
Falo deste assunto porque, de algum modo, isto aponta para essa evolução no fado, na forma como é feito e como as pessoas olham para ele. Mas é também um esforço consciente da tua parte, para criar essas pontes musicais entre os géneros?
Claro. Há alguma coisa melhor na vida? Com todas as músicas do mundo que se cruzam umas com as outras, porque é que o fado não o pode fazer? Porque é que não posso levar fado a cantar com hip-hop? Sou menos fadista por isso? Ou consigo fazer, com esta partilha do fado e de outras músicas, com que haja novas descobertas de coisas que são possíveis? A Amália fez isso, cantou tudo. Cantou fado, cantou folclore, tudo, e cantou naquela altura. Não tem que haver uma prisão em relação a isso. Sou fadista, não tenho culpa de ser fadista. Mas também não tenho culpa de ter outras influências e de gostar de outras coisas. Aí ninguém me pode dizer nada, não admito.
Mas é uma espécie de missão?
Não sou só eu. Tem é de haver alguém, e antes de mim já havia… e atenção, os outros fadistas não são obrigados a fazê-lo se não sentem isso. Eu sinto, no sentido em que gosto e tenho influência de outras coisas. Sou fadista de matriz — é o meu lema, é a história da minha vida, é o meu destino. Agora, acho que o fado se pode cruzar com outros géneros musicais, e vou fazê-lo. Já o tenho feito, com o Stereossauro, por exemplo. E se agora gravar com o Sam the Kid, vou ser do hip-hop, é? Então o Sam também vai ser do fado. Não tenho razão? Não faz sentido. Porque é que no fado isso é assim? Não tem de ser. Tem de haver um respeito, como é óbvio, como eles também têm respeito pela cena do hip-hop, e também há outras cenas em volta. O fado também tem isso.
Mas não pode ser uma ilha.
Exatamente. O Sam the Kid também tem cenas com a Dulce Pontes. Porque é que não posso fazer uma cena dessas? Porque é que vou fugir? Não vou fugir, vou é ser ainda mais autêntica.
“Vou a tudo, até reggaeton ouço”
Quem é que são as tuas influências musicais, para lá do fado?
É muito importante ouvir muita música. Não te posso dizer que tenho um artista favorito, tenho vários artistas de quem gosto muito e com quem me relaciono imenso, musicalmente. Desde o hip-hop — para mim o Sam é… ele é um poeta, ponto. Gosto muito de outros, podia dizer aqui vários, mas para mim o Sam é “O Poeta”. Quem é que escreve como o Sam? Ninguém. É uma pessoa consciente do que está a dizer e do que está a escrever. Antes de estar a cantar, sabe o que está a dizer no papel, isso para mim é que é ser alguém com mérito. É um génio do hip-hop. Mas depois também ouço a Concha Buika, ainda há bocado falei do Frank Sinatra, a Edith Piaf, a Billie Eillish… vou desde os mais velhos aos mais novos, podia dizer-te milhares de pessoas.
Tens playlists muito ecléticas, portanto.
É muito estranho, o meu namorado diz “mas como é que tu passas de uma coisa para outra assim?”. Depois também tem a ver com o momento em que estás. Às vezes não me apetece ouvir Sam the Kid, gosto de ouvir outras coisas. Por exemplo, gosto muito do Benjamin Clementine, é uma cena que sempre ouvi, Cesária Évora, gosto muito de música mexicana… Stromae, também. Vou a tudo, até reggaeton oiço. Acho que é muito importante ouvir de tudo. Para nos descobrirmos enquanto cantores, tudo o que é música faz com que o artista reconheça mais rapidamente a sua personalidade. Se só ouvir fado, não vou ter noção de outras formas de cantar, outros trejeitos. Tudo isso é importante para te formares enquanto artista. É muito importante ouvir música global.
[“Bocas do Mundo”, com Israel Fernández:]
Falando em música global, no início do ano lançaste uma colaboração com o Israel Fernández, Bocas do Mundo. A canção, se não estou enganado, foi anunciada na altura como fazendo parte deste álbum, mas acabou por não entrar. Porquê?
Porque queria o número 13 no meu álbum.
Esta era a 14.ª, foi isso?
Na verdade foi dos primeiros temas. Só que como não foi gravado no mesmo estúdio a diferença era muito grande. E não foi gravado pelo Diogo, foi em Madrid. Imagina estares a ouvir um disco todo e depois chegas ao último tema e o som não é o mesmo. Não faz sentido nenhum. Foi só por isso, mas tenho um respeito muito grande por ele. Foi nomeado agora para um Grammy Latino, o Israel.
Mas na altura o conceito do álbum ainda não estava definido?
Completamente, não. Vai-se definindo ao longo do caminho. A única coisa que sabia era do que queria falar e o que queria dizer, o resto vai-se definindo. E a questão do número 13, sabia que queria esse número.
Como é que foi colaborar com o Israel?
Foi espetacular. Ele canta muito. Conhecemo-nos nos Grammys [Latinos 2022] em Las Vegas e fiquei estupefacta com a voz dele, é mesmo um cantor extraordinário. Quando fui para a tour da América Latina, disse ao Diogo “epá, adorava ter uma cena a cantar com o Israel”. O flamenco também é muito como o fado, tem aqueles trejeitos… Foi-lhe feita essa proposta, ele aceitou, chegámos da América Latina e fui para Madrid gravar com ele. Foi espetacular, demo-nos super bem, gosto imenso dele. Espero que estejamos juntos em breve, não sei se ele vem ao Coliseu ou não… vamos ver, gostava muito.
Quais são as semelhanças entre o fado e o flamenco?
A dor, a melancolia, acho que é a mesma coisa. A única coisa que difere é a língua e a forma como se toca, porque de resto… aquela mágoa que o flamenco traz, o sentido, o tempo. É povo, é terra, é tudo a mesma coisa. Fado e flamenco para mim são idênticos. Não é à toa que são nossos vizinhos. É muito tradicional, muito intenso. Para mim flamenco é o que está mais próximo daquilo que faço.
“Há muita gente de fora do nosso país que respeita imenso o fado”
Tiveste agora uma experiência no programa The Voice Gerações, enquanto mentora. Além disso, cantas desde criança, ganhaste a Grande Noite do Fado quando eras miúda, tens uma história muito longa a cantar em casas de fado… Como é que as gerações mais novas se relacionam com o fado?
Cada vez há mais jovens a cantar fado. Recebo imensas mensagens de “estou a começar, quero muito cantar fado”. É a continuação de uma nova geração que vem daqui a 10 anos e que vai ser falada também. Acredito que o fado vai existir sempre. Primeiro porque é a nossa música e temos que respeitar o que é nosso, não só o que vem de fora. O fado é uma tradição linda, é a alma portuguesa, e fico muito feliz de ver esta nova geração aparecer. Há pais que me mandam vídeos das crianças com 3 e 4 anos a cantarem músicas minhas. Significa que passaste para ali, conseguiste entrar naquela pessoa, sabes? É espetacular e acho que só há caminho para desbravar.
Nos últimos anos temos assistido, sobretudo em Lisboa, a um fenómeno brutal de aumento do turismo, que tem os seus pontos positivos, mas também traz coisas negativas. Entre elas está, na opinião de muita gente, uma certa perda de identidade cultural — diz-se muito que “já não se ouve falar português em Lisboa”. Que impacto é que isto pode ter no fado? Há, certamente, uma diferença entre cantares fado para um público português ou para um público estrangeiro…
Não concordo. Pelo contrário. O fado é nosso, mas também é deles. Quando digo que o fado é a alma portuguesa, é a nossa identidade e cartão de visita para quem não é de cá. Mas todos têm oportunidade e devem ouvir fado, porque só faz bem às pessoas. É bom o fado chegar aos quatro cantos do mundo, até porque há muita gente de fora do nosso país que respeita imenso o fado, não têm de ser portugueses.
O que quero dizer prende-se mais com o futuro do fado…
Mas também há gente que não é portuguesa e canta fado. Japoneses, noruegueses, na Polónia, muita gente.
Pode então haver o efeito inverso, o de espalhar ainda mais a cultura?
Não tenho dúvidas disso. Daqui a 10 anos falamos sobre esta situação. Não estou a dizer que o fado vai ser de outras nacionalidades. Isso nunca vai acontecer. Temos a sorte de ter uma música muito própria, nossa. Mas acredito que haverá pessoas lá fora a fazer carreira. Tudo é possível, não sei quem está para vir e quem pode aparecer de repente. Mas acredito mesmo que o fado vai continuar a dar cada vez mais cartas. Mas já te disse, daqui a 10 anos vamo-nos sentar, nesta mesa ou noutra, e falamos. E é meu dever achar que isso deve ser assim. É para isso que trabalho.
Essa ideia é um incentivo?
Claro. Isto não é egocentrismo, não canto só para mim. Canto fado, que é uma música muito importante na nossa cultura, e é isso que quero passar para os outros. É o meu dever.
Como é que achas que as pessoas, quando te ouvem a cantar numa língua que não é a delas, sentem a música?
Cantar lá fora é espetacular. Às vezes é uma novidade para quem está presente, outras vezes já conhecem e seguem fado, outros fadistas. Mas é sempre incrível, há um respeito enorme pelo fado. As pessoas gostam mesmo, choram, vibram, levantam-se, gritam… A Coreia do Sul, para mim, foi a mais arrebatadora. Foi uma loucura completa. Assinei camisolas do Cristiano Ronaldo, bandeiras portuguesas, vendi para aí uns 400 discos só numa noite e fiz dois concertos. Foi lindo, adorei a Coreia. A América Latina também é espetacular. São pessoas quentes, pessoas que vivem, que sentem.
Também atuaste, em 2021, na cerimónia que assinalou a Presidência Portuguesa da União Europeia. Começas a sentir-te uma embaixadora do fado e até do país?
Posso dizer que sim. Nunca tinha pensado nisso, mas é verdade. Isso foi lindo. Fui eu, a Carminho, o Camané e a Ana Moura. É isso que quero, ser reconhecida nesse sentido, porque também levo o fado a todo o lado, mereço esse reconhecimento e é bom. Não gosto muito de pensar assim, na verdade. Mas sim.
Depois deste álbum, desta “emancipação”, daqui para a frente, o que é que se segue?
Agora é abrir um novo capítulo da minha vida. Fiz agora os meus 30 anos, quero continuar a minha vida como estou, acreditando que o meu futuro vai ser cada vez melhor. Quero continuar a trabalhar, a levar a minha mensagem e a minha missão ao resto do mundo e nunca baixar os braços, nunca desistir. O fado dá-me muita força. Não sei explicar, mas não sei estar de outra forma na vida a não ser esta. Às vezes estou com os meus amigos e eles dizem “vamos sair à noite” — odeio sair à noite, odeio discotecas. Querem ir a um bar, querem ir jantar fora, vamos. Mas se me disserem “vamos a uma casa de fados”… não sei, é a minha forma de ver a vida.