Sai líder, entra líder mas a troca foi dolorosa para o PS , que se viu apeado de uma maioria absoluta que não deixou a marca de estabilidade. E algumas das cicatrizes que deixou são mesmo comuns ao novo líder, o ex-ministro Pedro Nuno Santos que tem esse processo de cura em mãos. Isto enquanto garante, ao mesmo tempo, que não é tão radical como o pintam, que será fiel a António Costa, mas só naquilo que traz boas memórias. Todo um jogo de equilíbrios que o novo secretário-geral do PS tem apenas dois meses e meio para aprimorar.
Avança para o terreno com a “geringonça” enfiada no bolso como solução, mas a dizer que a força do PS será determinante para que qualquer configuração parlamentar funcione como a de 2015. Promete pragmatismo, mas também promete “amor e carinho”. O Observador analisou os principais desafios que o novo líder do PS terá de ganhar para tentar chegar ao cargo de primeiro-ministro.
Enterrar o radicalismo
O episódio é antigo e, como Pedro Nuno Santos não se cansa de repetir, teve “um contexto”, mas nada a fazer: a frase que disparou em 2011 sobre querer pôr as pernas dos banqueiros alemães a tremer, ameaçando não pagar a dívida portuguesa, colou-se-lhe à pele e continua a ser usada como arma de arremesso dia sim, dia sim (incluindo pelos adversários internos, tendo José Luís Carneiro feito questão de a mencionar várias vezes durante a campanha). Essa ideia, misturada com o apreço pelos acordos à esquerda — que co-protagonizou como secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares — e as posições mais à esquerda que foi assumindo ao longo dos anos valeram-lhe o rótulo de radical, tornando-se o representante não-oficial da ala mais à esquerda do PS.
A dificuldade é evidente: chegado a uma campanha eleitoral que já não é pelo PS, mas pelo país, Pedro Nuno não poderá apresentar-se como um radical de esquerda, até porque sabe que as eleições se ganham ao centro, e é nesse eleitorado que tem de apostar. Já se percebeu que será uma das tarefas mais trabalhosas que terá pela frente: durante a campanha, o PSD colou-o ao “gonçalvismo”, Carneiro classificou as suas mostras de moderação como uma “operação de cosmética” e teve apoiantes a compararem os discursos de Pedro Nuno aos do tempo do “PREC”.
Será, como Carneiro chegou a dizer em entrevista ao Observador, tarde demais para corrigir a imagem que Pedro Nuno já foi criando junto do eleitorado? O até agora candidato à liderança do PS, e agora candidato a primeiro-ministro, arranjou uma fórmula para responder à questão durante a campanha, que repetiu no primeiro discurso enquanto líder: não é que seja radical; acontece é que tem “convicções” e isso, em Portugal, soa a radicalismo. Uma ideia que cola à garantia de que consigo o país não irá “arrastar os pés” e tomará decisões mais rápidas e mais firmes — os seus apoiantes garantem que é um “reformista”. O nos que leva ao segundo desafio.
Disfarçar as cicatrizes
Se a ideia de radicalismo pode ser a que é mais frequentemente apontada como um defeito a Pedro Nuno, em segundo lugar aparecerá a sua impulsividade. O agora líder do PS dirá que também é um resultado de mostrar que tem convicções, mas essa pressa em tomar decisões, e a forma como as tomou, levou-o ao ponto mais baixo da sua carreira política e à saída do Governo, numa série de episódios que até os seus apoiantes deixou “perplexos”.
Se Pedro Nuno Santos se quer mostrar como um homem “que faz”, os seus apoiantes guardam até a esperança de que um dos episódios mais problemáticos da sua era como ministro — o despacho sobre o novo aeroporto de Lisboa que assinou à revelia do primeiro-ministro, que o revogou em menos de 24 horas, e pelo qual teve de pedir desculpa — mostre que o defeito de Pedro Nuno foi apenas querer resolver, neste caso num dossiê que está parado há décadas. O próprio tem falado no assunto sem grandes arrependimentos, explicando que estava farto de esperar e de ver o país à espera e acusando, em contraponto, o PSD de “atirar grupos de trabalho para cima de comissões” e acabar por não decidir nada.
A isto junta-se a indemnização de Alexandra Reis, à qual deu luz verde numa mensagem escrita da qual se esqueceu, e cuja existência só viria a reconhecer semanas depois de sair do Governo. Ambos os episódios são recordados pelos adversários internos, mas também pela oposição: assim que foi eleito líder do PS, o PSD apressou-se a dizer que os socialistas candidatam assim a primeiro-ministro um nome que há uns meses “não servia para ministro”, e que não pode agora aparecer de “cara lavada” como se não tivesse responsabilidades (e trapalhadas) passadas.
Pedro Nuno terá ainda de explicar melhor a sua posição em relação à TAP — e se ainda é possível haver um recuo em relação à posição, assumida pelo Governo de António Costa, de venda da maioria do capital da empresa a privados, ideia de que o novo líder discorda — e na Habitação, pasta em que será confrontado com a crise aguda no setor, uma vez que durante a sua época como ministro tinha a Habitação sob sua alçada. O novo líder do PS diz que os episódios negativos fazem parte da história, mas que o que verdadeiramente importa é o “trabalho” que foi fazendo — mas a oposição terá o (recente) álbum de recordações aberto e pronto a mostrar durante a campanha, até porque a crise política que se precipitou de repente não deu tempo para que Pedro Nuno pudesse sarar melhor as feridas que traz consigo.
Assumir a geringonça, mas deixar no bolso para não espantar centro
Não esconde a sua parte favorita do legado de António Costa, a geringonça construída em 2015 para tomar o poder numa maioria de esquerda, depois de o PS ter ficado em segundo nas eleições. “De geringonça não teve nada, aquilo funcionou bem, foi estável e sólido”, sublinhou na noite em que venceu o partido, no mesmo discurso em que tentou que esse não fosse o selo que leva colado na testa para a campanha eleitoral que se segue.
É uma ideia que pode comprometer o tal necessário namoro com o centro e Pedro Nuno Santos apareceu nos últimos dias da campanha a tentar virar o bico a esse prego de duas maneiras. Atirar para o PSD o anátema da ingovernabilidade, e isto porque a solução de um acordo à esquerda que leva no bolso já mostrou funcionar, enquanto que aquilo que Luís Montenegro promete está a estreitar o caminho. “Como não é credível que o PSD tenha uma maioria absoluta, o que sabemos é que a vitória do PSD resultará numa ingovernabilidade”, afirmou no penúltimo dia de campanha, numa afinação cirúrgica do discurso.
A segunda maneira de tentar desviar atenções dessa exclusividade à esquerda que lhe coloca o centro em perigo é alertar que, se ganhar as eleições, terá de ter condições para executar o programa que levará a votos. Aliás, diz mesmo que “uma das principais razões para a estabilidade no primeiro governo foi com o PS a ter um grande resultado. Essa é a melhor maneira de ter estabilidade no país”. Depois disso, e consoante a “configuração parlamentar” tratará “de encontrar uma solução governativa mas a que melhor garanta o cumprimento do programa eleitoral do PS”.
E para começo de conversa levará no seu programa uma intenção muito clara que pouco agradará a PCP e BE. Os dois votaram contra o Orçamento para 2024 e Pedro Nuno Santos diz de forma taxativa que, se chegar ao Governo, o que entra em vigor a 1 de janeiro é para manter sem alterações. O seu foco, disse na noite da vitória, está na “execução deste Orçamento e na preparação do próximo”. À esquerda apenas o Livre de Rui Tavares se absteve, deixando a porta aberta a esse Orçamento ser a base dos primeiros meses de governação de um Governo PS.
Além disso, a promessa esbarra com uma das principais (e das poucas) promessas concretas que Pedro Nuno Santos traz na manga: a devolução integral do tempo de serviço que continua congelado para algumas carreiras da Administração Pública, onde se incluem os professores. A ideia é fazer esse caminho de forma faseada, sem precisar quando pretende começar e quando estará em condições de ter essa devolução concluída (diz que precisa de dados mais concretos, que a UTAO diz não ter meios para calcular). Ainda esta sexta-feira, em entrevista ao programa Vichyssoise da rádio Observador, o bloquista Jorge Costa mostrava-se pouco confiante nessa mesma promessa.
Nova geringonça? “Temos de debater termos desse acordo na campanha”
Afinal a ideia entra pelo menu do Bloco de Esquerda adentro e o partido de Mariana Mortágua tenta cerrar fileiras e afirmar que só “a força da esquerda” poderá garantir essa reposição. E Jorge Costa até atirou forte ao atual ministro da Educação, classificando de “um dos momentos mais embaraçoso dos últimos tempos” aquele em que João Costa, apoiante de Pedro Nuno, disse “que era possível ter feito a recuperação das carreiras dos professores, num momento em que ainda está em funções. Nunca tinha visto uma coisa destas e fiquei verdadeiramente envergonhado. Este tipo de contributos só levam as pessoas a desacreditar da política.” Mas, na verdade, aqui não parecem existir propriamente interesses opostos quanto à medida, apenas existem em matéria de disputa política: ambos querem o mesmo e ambos querem, com isso, cativar os professores nestas eleições.
Gerir o legado de Costa mas “com amor e carinho”
Há momentos do discurso de Pedro Nuno Santos em que parece enfiado numa camisa de sete varas. Como romper com o passado sem romper com o passado? O trabalho que foi feito precisa de ser protegido e preservado, mas também queremos dar um novo impulso para realizar o projeto social democrata que o PS tem para o país”, é a resposta que traz para essas questões. Conciliar os dois lado s será a empreitada que terá de começar já na campanha eleitoral, onde levará o PS atrás e onde também pretende ter António Costa presente (e nem descarta que o possa ter noutra campanha, a das europeias, como cabeça de lista). Arranjou uma expressão de compromisso, a do “novo impulso”, como quem promete manter o que foi feito e aproveitá-lo para o país que quer construir. De alguma forma, Costa deu-lhe a bênção, ainda antes das eleições, ao falar na necessidade de uma “energia renovada” no PS.
Mas na campanha eleitoral ficou claro que existe um grupo no PS, o de apoiantes de José Luís Carneiro, onde se desconfia dessa boa intenção de Pedro Nuno em relação à herança que carrega. Sobretudo em matéria de preservação das contas públicas em ordem e daquele item concreto que solta logo o fantasma da arca de Pedro Nuno: a redução da dívida. Foi, aliás, José Luís Carneiro um dos socialistas que veio lembrar, durante a campanha interna, que existia o tal momento do “não pagamos a dívida” , ao dizer, à porta de uma reunião da Comissão Nacional do PS, que “pagar o que devemos é essencial”.
Essa crítica à linha pedronunista prosseguiu no discurso da sua candidatura onde constava como apoiante o ainda ministro das Finanças. Fernando Medina não se evidenciou como trunfo, preferindo manter-se reservado no exercício do cargo que ainda tem em mãos e só veio a terreiro para dizer que na campanha houve “coisas que podiam não ter sido ditas” no “calor da disputa”, embora se mostrasse confiante na unidade que se seguiria no partido.
Mesmo que Costa venha prometer não vir em modo “assombração” para reclamar com o que Pedro Nuno venha a fazer diferente daqui para a frente, a verdade e que a gestão do legado da sua governação será um dos equilíbrios mais complexos. E no próprio partido existe toda esta desconfiança, como ficou exposto nesta campanha. Por agora, essa herança política vai sendo útil, sobretudo para Pedro Nuno usar como argumento contra o diabo que pode vir da direita, pronto a colocar “os resultados” obtidos em risco. A começar pelo caminho feito nas pensões (ler mais abaixo).
E quando já se percebeu que pretende usar e abusar dos resultados obtidos nos últimos oito anos, nessa frente mais política, há, no entanto, uma linha de Costa que parece apostado em mudar: a forma de relacionamento com os eleitores. Trouxe no seu discurso de vitória expressões a que o seu antecessor estava longe de usar, a começar pela descrição que teve durante a campanha e o “prazer de abraçar, agarrar, tocar milhares de militantes”. E a dada altura, precisamente quando falava nos mais velhos e dos oitos anos de atualizações das pensões de aumentos extraordinários das pensões mais baixas, prometeu “com amor e carinho estar ao lado de quem fez o país”. Isto além da assunção de querer “inovar” na organização interno do partido. Aí, também “não há uma rutura, mas há uma mudança”.
Colocar o PSD como o novo diabo
O adversário é evidente e Pedro Nuno Santos passou boa parte da campanha interna a dizer que era no PSD que queria focar os seus ataques. Na noite da vitória começou logo por atirar ao PSD e ao seu histórico de 19 líderes até hoje, frente à “estabilidade que caracteriza a liderança do PS”, que tem nele apenas o seu nono secretário-geral. Depois lembrou o voto contra da direita à criação do Serviço Nacional de Saúde, nos primórdios da democracia, para contrapor a defesa socialista de um “SNS público, universal e tendencialmente gratuito”. “Não está tudo bem, mas a nossa solução não é privatizá-lo“, afirmou em mais um contraponto com aqueles que dizem que querem complemantá-lo com o setor privado, ou seja, a direita.
Além disso, também recordou os “cortes nos salários e pensões” do período da troika, juntando um outro dado: mesmo assim a direita saiu do poder “com uma dívida pública maior em percentagem do PIB” do que aquela que herdou. Ou seja, o PS foi capaz de “ter as contas públicas certas, continuar a reduzir a dívida pública” sem aplicar a receita dos cortes. “Não estivemos a cortar salários, nem pensões, nem a reduzir a despesa social do Estado em nome da redução da dívida pública”, avisando para o que poderá vir do outro lado se a direita voltar ao poder.
E ainda nesta mesma frente, juntou os pensionistas, um eleitorado sensível que tem privilegiado o PS, depois dos cortes de que foi alvo na era Passos. Quanto ao PS, garante a segurança, diz: “Um líder do PS não tem de prometer fazer uma coisa diferente do que o PS fez quando se apresenta perante os pensionistas. Só precisa de dizer que quer continuar o trabalho que tem sido feito”.
A tudo isto Pedro Nuno ainda tem juntado a tal questão da ingovernabilidade que associa ao PSD, aproveitando o facto de Montenegro já ter clarificado o que estará disponível para fazer e o que não fará no dia seguinte às eleições de 1o de março, recusando formar Governo em segundo e bloqueando os acordos ao Chega. Embora aqui Pedro Nuno tenha dado um nó: tanto diz que não são credíveis estas juras do PSD, como afirma que elas provam como não tem capacidade para montar um Governo apoiado numa maioria estável. Prende o PSD por ter cão e prende-o por não ter.
Fazer a paz interna
A candidatura de Pedro Nuno Santos tentou saltar uma etapa — a da própria campanha interna — e apresentar-se diretamente como candidato da primeiro-ministro, mas José Luís Carneiro evitou a todo o custo fazer-lhe a vontade. Durante a campanha, o adversário principal atacou diretamente Pedro Nuno e até chegou a conseguir obrigá-lo a responder, contrariamente ao que eram os planos da candidatura. Depois de semanas em que Carneiro acusou o adversário de não conseguir apagar a imagem de radicalismo, de ter poucas propostas políticas ou de estar “acantonado à esquerda”, chega a hora que ambos prometeram que seria de paz e unidade interna, até porque há uma campanha de legislativas para preparar.
O outro dado que importa recordar é que Carneiro teve uma derrota honrosa — 36%, mais do que os anteriores candidatos derrotados — e isso entrega-lhe capital político suficiente para ser um rosto a ter em conta no futuro do PS, e o único rosto da ala moderada que decidiu ir a jogo. Os apoiantes começaram, em surdina, logo na noite deste sábado a recordar em conversa com o Observador que 36% não é uma percentagem que possa ser ignorada, e que essa ala do partido tem de ser respeitada no futuro, colocando o ónus dessa gestão no novo líder. E Carneiro pediu a Pedro Nuno que trabalhe pela “unidade” e pela sua “integração”, prometendo estar “atento”.
Não estando ainda definido de que forma é que Carneiro irá “andar por aí”, é certo que Pedro Nuno não tem nada a ganhar com um clima de guerrilha interna à porta de umas eleições nacionais já de si difíceis — por isso mesmo, fez questão de lembrar no seu primeiro discurso que, se o PS só teve nove secretários-gerais na sua história, ao contrário dos 19 do PSD, à sua capacidade de união o deve. Precisará de trabalhar agora para garantir que essa união fica garantida (e, quem sabe, que José Luís Carneiro assume alguma candidatura de relevo no futuro — autarquia do Porto, por exemplo?), para não ter de somar às dificuldades externas uma guerra interna.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre Pedro Nuno Santos.
Fazer um programa eleitoral sólido
A campanha interna expôs as dúvidas que parte do partido tem com o novo líder e uma dela é sobre a preparação para se apresentar para chegar a primeiro-ministro e formar Governo. António costa garante que tem “experiência governativa” para dar e vender — isto para atira ao PSD, numa comparação direta com Luís Montenegro que nunca passou por cargos de governação –, mas à sua volta terá os mais capazes?
A falta de propostas concretizadas foi sendo apontada amiúde pelo seu adversário José Luís Carneiro e Pedro Nuno Santos sente essa pressão. Tem as próximas semanas para preparar um congresso do partido, a 5, 6 e 7 de janeiro e, depois disso, uma corrida contra o tempo para pôr em pé um programa eleitoral. Não disse ainda como irá fazê-lo e se, neste curto espaço de tempo, terá capacidade para seguir a prática dos seus antecessores e chamar a sociedade civil, como forma de acrescentar experiência e pragmatismo à sua proposta, dar-lhe lastro e, pelo caminho, provar que tem um plano capaz de congregar cabeças além partido.
Até aqui contou com Alexandra Leitão para coordenar os contributos que chegaram à sua candidatura para constarem na moção de estratégia nacional. Mas o grupo terá, necessariamente, de alargar-se e os próximos dias mostrarão se Pedro Nuno conseguirá ir além do seu grupo de apoiantes, tanto no PS como no país. A estratégia ainda está por conhecer e o relógio já está a contar.