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Simon Sebag Montefiore: "É sensato falar de progresso técnico da Humanidade, mas o progresso moral é duvidoso"

Simon Sebag Montefiore gosta de escrever biografias: de cidades, famílias, heróis, vilões. Agora, escreveu uma história do mundo como uma sucessão de biografias. Entrevista de José Manuel Fernandes.

Mais uma História do Mundo? Apesar da dimensão imponente – 1296 páginas –, o que é que Simon Sebag Montefiore nos teria para dizer de novo? O que é que O Mundo — Uma História da Humanidade poderia acrescentar a uma narrativa tantas vezes já visitada. A ideia, explicou-nos o autor, foi “olhar para as famílias e para os indivíduos, para a forma como se interligam e afetam os grandes momentos históricos”.

Ou seja, colocar as personagens no centro do relato, falar-nos das suas ambições e obsessões, da sua grandeza e dos seus excessos, permitir que os sigamos como pessoas, falando das suas famílias e das suas interações. Em vez de relatar os acontecimentos, em vez de se ocupar das “estruturas”, o autor de obras consagradas como Jerusalém: A Biografia, Os Romanov (1613-1825); (1826 -1918), e ainda Estaline — A Corte do Czar Vermelho, este livro fala de pessoas, e de pessoas, e de pessoas. E ao falar de pessoas fala de poder, e do que ao longo de milénios se fez e faz para alcançar o poder e manter o poder.

Por isso nela reencontramos líderes poderosos, como Alexandre o Grande e César, como Átila, Ivan o Terrível ou Gengis Khan, ou mesmo como os mais modernos Hitler, Thatcher, Obama e até Putin e Zelensky, mas também criadores e descobridores, como Sócrates, Miguel Ângelo, Shakespeare, Newton, Einstein ou os nossos Vasco da Gama e Afonso de Albuquerque. Ao mesmo tempo descobrimos figuras bem menos conhecidas, como Hongwu, o fundador da dinastia Ming, ou Zenobia, uma princesa árabe que desafiou Roma.

Simon Sebag Montefiore esteve em Lisboa esta semana e conversou com o Observador sobre o livro, mas também sobre a Rússia (e a guerra na Ucrânia) e Israel (e a guerra com o Hamas). Esta é a síntese dessa conversa.

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A capa da edição portuguesa de "O Mundo: uma História da Humanidade", de Simon Sebag Montefiore (Crítica)

Escreveu um livro em que todos os eventos são contados através de perspetivas pessoais, é uma história de pessoas. É de certa forma uma perspetiva anti-marxista do mundo? O marxismo gira em torno de estruturas, da luta de classes – e aqui só há pessoas…
É um livro anti-marxista, mas é também, espero eu, anti-todas as ideologias usadas para escrever a história do mundo. Não é sobre o marxismo, não é conservador, não é progressista… A ideia é olhar para as famílias e para os indivíduos, para a forma como se interligam e afetam os grandes momentos históricos. É também uma história de ideias e de progresso científico, no fundo é esse o sentido do livro.

Porquê olhar para a história através deste prisma? Acha que as pessoas são elas próprias mais importantes do que qualquer corrente económica ou sociológica?
Não necessariamente. Como disse, todas essas grandes temáticas – a sociologia, a antropologia, a economia, a política, a religião – são contadas através das pessoas, e das famílias, especificamente. As famílias são usadas como um “gancho”, ou uma “âncora”, para abordar estas temáticas tão vastas e complexas.

Se a sua história é, como já vimos, uma espécie de história antimarxista da humanidade, acha que mesmo assim podemos falar de progresso? Ou de um sentido de destino para um mundo mais perfeito e igualitário?
Tentei evitar essas análises monocausais ou ideológicas que se sobrepõem aos fatores extremamente complexos que formam a história humana. Penso que é sensato falar de progresso técnico, mas o progresso moral é duvidoso.

Sendo a história da vida real realmente assim – muitas vezes cruel e violenta –, como podemos construir um mundo que respeite os direitos humanos?
É claro que os seres humanos são venais, gananciosos, avarentos, corruptos e ambiciosos, mas também são gentis, generosos, amorosos, criativos, flexíveis. Os direitos humanos são essenciais: é a ala política da decência que faz parte da natureza humana.

"O sexo faz parte da família. E a violência faz parte da política. A violência e, especialmente, a guerra são as grandes superpropulsoras na história. Há muitas mudanças que acontecem por causa da hiper-engenhosidade e da urgente criatividade que a guerra impõe."

Mesmo assim, este seu O Mundo foi por vezes descrito como uma Guerra dos Tronos da vida real. Concorda? A história da vida real é realmente cheia de sexo, violência e obsessão pelo poder?
Sim, de certa forma é. Prefiro chamar-lhe torneio de poder ou gosto antes da frase do Papa Júlio II: chamou à geopolítica “O Jogo do Mundo”. O Mundo apresenta os brutais jogos de poder de Guerra dos Tronos – uma acusação cínica da natureza humana, cheia de dinastias perversas e de tios e irmãs assassinas. Mas o meu livro é também uma celebração do amor e da família e está cheio de poesia, de música, de arte, de belas palavras – toda a glória do engenho humano, da criatividade, da flexibilidade e da empatia. Tudo isso quase não existe em Guerra dos Tronos, mas faz muito parte da minha história do mundo.

Sei que alguns críticos dizem que ela tem muito sexo e violência, mas a verdade é que o sexo faz parte da família. E a violência faz parte da política. A violência e, especialmente, a guerra são as grandes superpropulsoras na história. Há muitas mudanças que acontecem por causa da hiper-engenhosidade e da urgente criatividade que a guerra impõe. É por isso que uma história do mundo não pode ignorar estes fatores.

Quanto à obsessão pelo poder na natureza humana, ela está claramente sempre presente na política e é um catalisador que muda os acontecimentos o tempo todo: basta olhar para as carreiras de Trump ou de Netanyahu para vermos como essa obsessão pelo poder é importante, para não dizer determinante.

Mesmo assim, quando fala das pessoas e das famílias, aquilo que aborda não tem só a ver com dinâmicas de poder – explora também os temas íntimos, relacionados com sexo, ou com dinheiro, por exemplo.
Tentei com este livro criar algo que combinasse a perspetiva de um fã de história global e que ao mesmo tempo tivesse uma certa intimidade biográfica. Muito frequentemente, os livros de história estão tão distantes de nós que, às vezes, parece que estou a ler um relatório laboratorial sobre a espécie humana. Por isso usei as famílias, as biografias e as personagens para me tentar aproximar mais destes momentos, tentar dar-lhes vida. Depois as dinâmicas familiares também me interessaram como uma forma de abordar o tema. Há uma série de escolhas que têm de ser feitas num livro destes, o que incluir, o que retirar… E, por outro lado, quero que seja uma boa leitura, algo que dê prazer a quem lê, por isso também trabalhei muito a questão do estilo literário. Claro que depois pode-se criticar cada uma das escolhas que fiz. O mais difícil é sempre tentar equilibrar as coisas.

Faz parte de uma família muito conhecida. No livro fala das ligações que tem à Península Ibérica; sei também que tem ligações a Jerusalém, há lá um moinho com o nome da sua família. De que forma é que a história da sua família influenciou o livro?
A ideia de família é a pedra basilar da existência humana, é uma ferramenta útil para narrar e descrever o desenvolvimento de Estados e reinos. É uma ideia que, honestamente, não tem nada a ver com a minha família, seja ela conhecida ou não. Mas já que fez a pergunta, não, a minha família não foi um fator de influência para o livro, tirando algumas menções quando estas são relevantes para o texto. Por exemplo, no seguimento dos pogroms de Quixineve, em 1903, a minha família abandonou a Lituânia, e o Império Russo, em 1904. Posso ir inserindo um bocadinho de mim enquanto autor, é divertido. Mas nenhuma das decisões que tomei no livro tiveram por base a minha família, ou a minha experiência, por assim dizer.

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"Os Romanov foram a família de construção do império mais bem sucedida dos tempos modernos. Os Genghizids a mais bem sucedida da Idade Média. Os Kims da Coreia do Norte são a família mais poderosa"

Centrou o livro na história das grandes famílias, e é interessante pensarmos na forma como estas foram influenciando o curso da história da humanidade ao longo do tempo. Atualmente, nas democracias, já não será um pouco diferente? Não será mais comum ver alguém sem ligações familiares subir e ter uma grande influência no seu país e no mundo?
Talvez. Mas repare, Adolf Hitler não era de uma grande família. Nem o era o General Santa Anna [líder mexicano no século XIX], ou Josef Estaline. A ascensão de pessoas que vêm do nada não tem só a ver com as democracias. Até porque, em muitas democracias e autocracias atuais, as famílias continuam a ser muito importantes. O conceito de família tem um lado positivo, que é o facto de ser fluído. Há a família biológica, certo, mas há também dinastias, para além de que as famílias políticas também são construções sociais que foram criadas pela comunidade. Posso perfeitamente usar o conceito de família para descrever Hitler. Quem leu o livro sabe que uso o pai de Hitler como um exemplo daquilo que eram os serviços alfandegários austro-húngaros. Barack Obama não veio de nenhuma dinastia política, mas uso a história do pai dele para descrever a independência do Quénia. Por isso a família é útil. Uso-a de forma fluída, quando me convém, e isso em nada contradiz o facto de que muitas das grandes dinastias caíram depois de 1918, do fim da Primeira Guerra.

Mas não haverá algo a dizer sobre o lugar que algumas destas figuras importantes ocupam, e sobre a forma como estar no sítio certo molda a história? Por exemplo: seria possível que a Revolução de Outubro acontecesse sem Lenine?
Se seria possível? Não, creio que Lenine foi bastante essencial para a Revolução de Outubro.

Foi crucial. Mas, depois da revolução, veio Estaline. Acha que podia ter sido outra pessoa, alguém que criasse um outro sistema?
Lenine e Estaline foram importantes por razões diferentes, mas foram ambos essenciais para aquilo em que a União Soviética se tornou. Outubro de 1917 não acontecia se Lenine, com toda a sua força de caráter, não estivesse convicto de que havia uma oportunidade para tomar o poder. Depois, outros no lugar de Estaline teriam mudado as políticas de coletivização entre 1929 e 1933, e acabariam todos depostos. Mas Estaline, devido ao terror que orquestrou em 1937 e 1938, garantiu que não havia ninguém em posição para o fazer.

E Hitler? Muitos historiadores consideram que a Segunda Guerra Mundial foi, de alguma forma, uma “continuação” da Primeira Guerra. Se Hitler não estivesse no poder, teria acontecido a mesma guerra mas com outras pessoas?
Acho que poderia ter acontecido. Havia condições para uma guerra “revanchista” em que a Alemanha, e talvez a Rússia, tentassem inverter o rumo dos acontecimentos. Mas teria sido uma guerra muito diferente, com outra natureza. Uma das temáticas que o livro aborda é o facto de que, quanto mais intolerante um império era, menos tempo durava, e vice-versa. Por exemplo, império Nazi foi um dos mais curtos da história da Europa. Durou cerca de três anos, precisamente por causa da natureza extremamente intolerante do Nazismo.

"[Sobre a Rússia:] A Ucrânia ainda pode obter uma vitória militar, mas o mais provável é existir um impasse entre os dois lados. [Sobre Israel:] Não vejo que o Hamas vá ter um papel em negociações futuras. Por outro lado, é difícil conceber um líder que tenha sido mais catastrófico para o seu próprio país do que Benjamin Netanyahu."

O império Soviético também era extremamente intolerante e durou muito mais tempo…
Sim, é verdade. Mas é um caso diferente, porque não era um império de conquista. A União Soviética herdou o Império Russo, que, ele próprio, ficou muito mais fraco quando se tornou intolerante.

Olhando para a geopolítica atual, temos a guerra na Ucrânia e a crise no Médio Oriente. Que lugar ocupam os indivíduos-chave nessas crises? Seriam crises diferentes sem Putin ou sem Zelensky?
Sim, seria diferente. Tanto quanto sabemos, a guerra na Ucrânia foi uma decisão unilateral de Vladimir Putin. Há até aquele comentário feito pelo ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, que disse que os únicos conselheiros de Putin foram Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande e Catarina, a Grande. Por isso sim, Putin é uma personagem decisiva. Assim como também o é Zelensky, que revelou um caráter “churchilliano” com aquele “momento 1940”, o momento em que decidiu ficar em Kiev em vez de procurar abrigo no exílio.

Pelo que conhece da história russa, tem alguma ideia do que pode acontecer depois de Putin? A Rússia pode tornar-se uma democracia? Mais tarde ou mais cedo?
Não há razão para que a democracia não floresça na Rússia, exceto o seu habitual recurso à autocracia que tem acontecido repetidamente. Especialmente depois de períodos de instabilidade – depois da crise de 1605 [guerra com a Polónia e tempo de Ivã, o Terrível], depois de 1917, depois de 1991. Mas, para que isso aconteça, a autocracia putinista tem de ser desacreditada. Neste momento, a Rússia recuperou a sua força militar e estabilizou a frente ucraniana. A Ucrânia ainda pode obter uma vitória militar, mas o mais provável é existir um impasse entre os dois lados, ambos exaustos, negociando novas fronteiras que são, na verdade, linhas de armistício. Isto seria semelhante a Israel vs árabes 1948 e Índia/Paquistão. Putin reivindicaria a vitória e seu sistema poderia resistir e até sobreviver a ele…

E no Médio Oriente, quais são as questões decisivas, quer em termos de políticas, quer de indivíduos?
Em termos políticos e pessoais, o Hamas é decisivo. O ataque de 7 de outubro foi obviamente planeado pela liderança local do Hamas, ainda que não saibamos ao certo que indivíduos desempenharam um papel. Seja como for, não vejo que o Hamas vá ter um papel em negociações futuras. Por outro lado, é difícil conceber um líder que tenha sido mais catastrófico para o seu próprio país do que Benjamin Netanyahu.

Porque é que diz isso?
É muito pouco usual vermos alguém que, tanto a nível macro como micro, cometeu erros tão graves e tomou decisões tão erradas. A ideia da reforma judicial fraturou de forma desastrosa o país. O ênfase dado à coligação com Ben Gvir e os seus aliados foi outra decisão catastrófica que dividiu o país. E depois há o semear de divisões e a promoção da violência na Cisjordânia e, claro, a 7 de outubro, a decisão de colocar grande parte do exército na Cisjordânia e não no sul do país. Netanyahu adotou ainda uma política de tolerância para com o Hamas ao mesmo tempo que enfraqueceu a Autoridade Palestiniana, o que mais uma vez foi catastrófico. Mesmo no próprio dia do ataque, a liderança do país ficou paralisada, fez muito pouco. É atipicamente desastroso.

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"A ideia de família é a pedra basilar da existência humana, é uma ferramenta útil para narrar e descrever o desenvolvimento de Estados e reinos", diz o historiador

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Li também o seu outro livro, o Jerusalém. Uma das coisas que mais me impressionou ao ler a biografia dessa cidade foi a quantidade de vezes que ela foi destruída e que sangue foi derramado nas ruas – que o sangue literalmente escorreu pelas suas calçadas. Acha que pode voltar a acontecer?
Pode sempre acontecer, mas não acho que vá acontecer. Acho que o essencial é que, depois da guerra terminar, Israel tenha um governo responsável, que não passe por Netanyahu e Ben Gvir, e que a Autoridade Palestiniana também construa uma nova liderança, que seja suficientemente credível em negociações futuras. Claro que não estou a dizer que vai haver uma solução de dois Estados no dia a seguir ao fim da guerra. Mas é essencial encontrar um caminho que passe por negociações.

Mas é incrivelmente difícil implementar uma solução de dois Estados. Como é que se conseguem separar aqueles dois povos quando estes estão tão misturados?
É muito difícil, não há dúvida. Uma das razões pelas quais escrevi o Jerusalém foi para mostrar que ambas as partes têm posições justas e legítimas, e isso também complica muito as coisas. É um grande desafio, mas é a única solução. A divisão do território é o único caminho. Não podem viver juntos, têm de viver separados, mas têm de partilhar a terra.

Uma última questão: se tivesse de escolher uma família, e apenas uma família, a que mais influenciou o destino da Europa, que família escolheria? Os Habsburgo? Os Romanov? Os Bourbon?
Os Romanov foram a família de construção do império mais bem sucedida dos tempos modernos. Os Genghizids [a família de Gengis Khan] a mais bem sucedida da Idade Média. Já quanto aos nos nossos tempos eu diria que os Kims da Coreia do Norte são a família mais poderosa, e não só hoje como sempre: são a única família na história a possuir um arsenal nuclear.

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