Em matérias de amor, não falta quem diga que os opostos se atraem — e foi precisamente dessa forma que Donald Trump tratou de explicar o estado da sua imprevisível relação com o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un. Em pouco tempo, os dois líderes espantaram o mundo ao passarem de trocas de ameaças de ataques nucleares sem fim para demonstrações de estima mútua.
“Eu andava a ser muito duro e ele também. Era isto o tempo todo. E depois apaixonámo-nos. Não, a sério! Ele escreveu-me cartas lindas. Apaixonámo-nos!”, disse o Presidente dos EUA, frente a uma plateia que, perante a imagem ali apresentada, se soltou em gargalhadas.
Talvez fossem gargalhadas de alívio. Em 2017, o ano da tomada de posse de Donald Trump, a Coreia do Norte fez 16 lançamentos de teste de mísseis balísticos e ainda de outro com capacidade para conter uma bomba de hidrogénio. Não era só a frequência dos testes que assustava, mas também o seu alcance. Alguns deles, se fossem lançados de forma a terem uma trajetória mais plana, poderiam atingir qualquer cidade dos EUA. A obsessão de Pyongyang era tão grande que, ainda em 2013, quando Donald Trump era apenas uma estrela de reality-shows, o regime produziu e lançou um vídeo em que um norte-coreano sonhava com a destruição de Nova Iorque através de um míssil.
“Ontem à noite, tive um sonho lindo. Dei por mim a subir no espaço, a bordo do míssil Eunha 9”, lê-se nas legendas do vídeo, em que o “We are the World” tocado num piano simples serve de pano de fundo. “Na América, consigo ver fumo preto. Parece que o ninho do Diabo, que habitualmente causava guerras de invasão e assédio, está finalmente a arder sob as chamas por mim causadas.”
https://www.youtube.com/watch?v=hK8zQIsMmnk
Aquele “sonho” parecia cada vez mais próximo de se realizar quando, no início de 2018, Donald Trump e Kim Jong-un trocavam acusações e mediam o tamanho e eficácia dos seus botões de ativação do arsenal nuclear. Mas, em pouco tempo, deu-se uma das mais bruscas travagens da História recente da diplomacia. Kim Jong-un recebeu em Pyongyang uma delegação enviada pelo seu homólogo sul-coreano, Moon Jae-in. Regressados à Coreia do Sul, os homens de Moon Jae-in apanharam um voo para Washington D.C. para falar diretamente com Donald Trump. O motivo era inédito: Kim Jong-un queria convidar o Presidente dos EUA para um encontro em território neutro.
Histórica, mas vaga — a primeira cimeira prometeu, mas cumpriu pouco
Ainda antes de acontecer, a cimeira já era histórica. E históricas foram também as fotografias entre os dois líderes, com as bandeiras de cada país alternadas no fundo, enquanto se cumprimentavam com uma mão e seguravam na outra o acordo assinado por ambos.
Naquela singela página, liam-se quatro pontos:
- Os Estados Unidos e a República Popular Democrática da Coreia comprometem-se a estabelecer novas relações entre EUA-DPRK, de acordo com o desejo de paz e prosperidade dos povos dos dois países.
- Os Estados Unidos e a República Popular Democrática da Coreia vão unir esforços para construir um regime de paz duradouro e estável na península da Coreia.
- Reafirmando a declaração de Panmunjon de 27 de abril de 2018, a Coreia do Norte compromete-se a trabalhar em direção à desnuclearização completa da península da Coreia.
- Os Estados Unidos e a República Popular Democrática da Coreia comprometem-se a recuperar os prisioneiros de guerra/desaparecidos em combate que restam, incluindo a repatriação imediata daqueles já identificados.
A linguagem era propositadamente vaga. Após várias décadas de silêncio (nos melhores casos) e ranger de dentes (nos piores) entre os dois países, aquele início de diálogo era pouco ambicioso por definição — tal como a maioria dos pontos acordados. Dos quatro, apenas dois são concretos: o terceiro (que afirma o compromisso com a “desnuclearização da península da Coreia”) e o quarto (que versa sobre a recuperação dos restos mortais de prisioneiros de guerra norte-americanos na Coreia do Norte).
Afinal, quanto vale o acordo de Trump e Kim? Pouco, dizem os especialistas
Este último ponto, de valor simbólico e, também, de logística fácil, foi cumprido logo a 26 de julho, com o repatriamento dos restos mortais de 55 soldados norte-americanos que morreram na Guerra da Coreia. O terceiro ponto, porém, está muito longe de ser cumprido, como veremos mais à frente.
Para os especialistas contactados pelo Observador, a cimeira de Singapura ajudou a criar um apaziguamento que o encontro Hanói pode, agora, ajudar a cimentar — mas isso não significa, de todo, que o problema norte-coreano desapareceu.
“Temos visto uma redução geral da tensão, mas ainda há progressos substanciais por conseguir no que diz respeito à desnuclearização. Isto não é nenhuma surpresa, tendo em conta a dificuldade que é conseguir dissuadir a Coreia do Norte de apostar em armas nucleares”, diz ao telefone com o Observador Mintaro Oba, ex-diplomata dos EUA, que geriu o dossier da Coreia do Norte no segundo mandato de Barack Obama.
É uma análise semelhante à que faz Naoko Aoki, investigadora na RAND Corporation, especialista no tema da segurança nuclear no contexto norte-coreano. “A boa notícia é que as tensões foram reduzidas e a diplomacia continua, mas ainda há muito a fazer na frente da desnuclearização”, sublinha, num e-mail enviado ao Observador.
Trump diz que Coreia do Norte já não é ameaça nuclear, mas nem nos EUA acreditam nisso
Mal aterrou em Washington D.C. de regresso de Singapura, em junho de 2018, Donald Trump escreveu um tweet auto-congratulatório, no qual fazia uma afirmação ambiciosa e, acima de tudo, discutível. “Toda a gente se sente mais segura desde que eu tomei posse. Já não há uma ameaça nuclear da Coreia do Norte”, escreveu Donald Trump.
Just landed – a long trip, but everybody can now feel much safer than the day I took office. There is no longer a Nuclear Threat from North Korea. Meeting with Kim Jong Un was an interesting and very positive experience. North Korea has great potential for the future!
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) June 13, 2018
Esta afirmação tem sido, desde então, alvo de diferente críticas e correções. Ainda este domingo, em vésperas da cimeira de Hanói, a frase de Donald Trump foi cobrada ao Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, que tem estado na linha da frente das negociações com o regime norte-coreano, tendo inclusivamente viajado para Pyongyang em duas ocasiões. Numa entrevista em estúdio na CNN, o jornalista Jake Tapper perguntou diretamente a Mike Pompeo se acreditava que a Coreia do Norte ainda é uma ameaça nuclear.
“Sim”, foi a resposta pronta do chefe da diplomacia norte-americana, que se apressou a dizer, erradamente, que Donald Trump não tinha dito que a Coreia do Norte já não era uma ameaça nuclear. “O que ele disse foi que os esforços que foram feitos em Singapura e o compromisso que o Presidente Kim fez reduziram substancialmente o risco para o povo americano”, acrescentou Mike Pompeo.
Secretary of State Mike Pompeo says he believes North Korea remains a nuclear threat and disputes the fact that President Trump thinks otherwise. “What he said was … the efforts that made in Singapore … have substantially taken down the risk to the American people.” #CNNSOTU pic.twitter.com/APnZifBTEj
— CNN (@CNN) February 24, 2019
Convencer a Coreia do Norte a não ter armas nucleares tem provado ser tão difícil quanto dizer a uma família que vive na Sibéria que não lhes faz falta ter aquecimento no inverno. Ter um arsenal de armas nucleares é, para o regime eremita, uma prioridade máxima e inabalável desde a sua fundação, em 1948, nos primórdios da Guerra Fria. Entre a década de 1950 e até meados da década de 1980, o regime então liderado por Kim Il Sung, avô de Kim Jong-un, recebeu ajuda da União Soviética para construir reatores nucleares e também para fazer os seus próprios mísseis nucleares. Na década de 1970, também a China colaborou com a Coreia do Norte para aquele regime poder fabricar mísseis balísticos. E entre a década de 1980 e 1990, também o Paquistão ajudou neste objetivo.
Todos aqueles conhecimentos transferidos foram bem recebidos pela Coreia do Norte que, na década de 1990, já agia de forma autónoma no fabrico das suas próprias armas — e, por sua vez, ajudava já outros regimes, como o sírio, a construir os seus próprios reatores.
Este longo caminho da Coreia do Norte teve um ponto alto em 2006, altura em que, sob a liderança de Kim Jong-il, pai do atual líder, foi feito o primeiro lançamento-teste com um míssil nuclear — repetido, depois, em 2009. E, já com Kim Jong-un como líder máximo, a Coreia do Norte continuou na mesma linha: um teste em 2013, dois em 2016 e um em 2017. A cada teste novo, a potência ia aumentado. O último ultrapassou as 100 quilotoneladas de TNT — cinco vezes mais do que a explosão nuclear de Nagasaki, a mais potente até à data.
Para a Coreia do Norte, que teve no seu território soldados norte-americanos aquando da Guerra da Coreia (1950-53), ter um arsenal nuclear é um seguro de vida contra novas intervenções militares. E, em 2019, essa certeza fica mais clara à medida que os EUA repetem que todos os cenários estão na mesa no que toca à Venezuela, incluindo uma intervenção militar — o que dificilmente aconteceria com tanta ligeireza se Caracas tivesse capacidade de resposta a este nível. “A situação na Venezuela torna ainda mais claro para a Coreia do Norte o valor de um programa nuclear como dissuasor de uma intervenção dos EUA”, diz Mintaro Oba. “Em Pyongyang, eles entendem isto muitíssimo bem.”
Por isso mesmo, o acordo de Singapura falava da “desnuclearização da península da Coreia” e não da “desnuclearização da Coreia do Norte”. Tecnicamente, a Coreia do Norte é o único país da Península da Coreia a ter armas nucleares, uma vez que a Coreia do Sul não possui armamento deste tipo. Porém, a realidade militar daquela região é mais complexa do que à primeira vista possa parecer, já que ali estão estacionados 28.500 soldados norte-americanos e, ali por perto, no Japão, outros 50 mil. Tendo em conta que os EUA são, em si, uma potência nuclear e têm meios para atacarem dessa forma a Coreia do Norte, o acordo de junho de 2018 não cobra apenas uma concessão de Pyongyang — também os EUA teriam de abdicar da sua aliança militar com Seoul e abandonar aquela região.
“A Coreia do Norte não vai concretizar nada sem antes ter concessões por parte dos EUA”, sublinha Mintaro Oba. Mas esse é um desfecho fora de questão, garantem os EUA. E, assim sendo, a Coreia do Norte vai continuar — como continua — a desenvolver o seu programa nuclear — uma realidade que contradiz o aparente otimismo de Donald Trump e que é confirmada por vários relatórios, tanto de think tanks privados como dos serviços de intelligence dos EUA.
De acordo com o Worldwide Threat Assessment de 2019, um relatório anual elaborado em conjunto pelas 16 agências de segurança dos EUA, no que toca à desnuclearização, a Coreia do Norte prega uma coisa e faz outra. “Pyongyang não tem feito qualquer teste de mísseis balísticos ou nucleares há mais de um ano, declarou o seu apoio à desnuclearização da península da Coreia e tem desmantelado algumas partes da sua infraestrutura de armas de destruição maciça”, lê-se no relatório. “No entanto, a Coreia do Norte mantém as suas capacidades em termos de armas de destruição maciça e a comunidade de intelligence [dos EUA] continua a entender que é improvável que venha a desistir de todas as suas armas de destruição maciça, sistemas de lançamento e capacidade de produção.”
Mais à frente, embora tome nota da explosão de um centro de testes nucleares, evento para o qual Kim Jong-un convocou um grupo de jornalistas internacionais para que servissem de testemunhas, o relatório diz que os serviços de informação dos EUA continuam a “observar atividades que não condizem com uma desnuclearização total”.
Além disso, de acordo com um relatório de novembro de 2018 do think tank Center For Strategic & International Studies (CSIS), a Coreia do Norte tinha, então, 20 bases construídas para o lançamento de mísseis balísticos e nucleares por todo o país, sem que estas fossem conhecidas no exterior. Num novo relatório, já de janeiro de 2019, o CSIS entrava em mais detalhes sobre uma dessas bases, possivelmente uma das mais importantes, a de Sino-ri, localizada a apenas 212 quilómetros da Zona Desmilitarizada da Coreia, uma faixa de território entre as duas Coreias a cargo das Nações Unidas.
Esta é a face menos conhecida — até porque o regime não a mostra — da continuação do programa bélico da Coreia do Norte. E tudo isto acontece ao mesmo tempo tem feito anúncios que podem levar a algum otimismo, como o desmantelamento da estação de lançamento de satélites de Sohae. “O desmantelamento da plataforma de Sohae, embora atraia muita atenção mediática, deixa uma sombra sobre a ameaça para as forças militares dos EUA e da Coreia do Sul que representa esta e outras bases não declaradas para o lançamento de mísseis balísticos”, lê-se no relatório de janeiro do CSIS.
Por isso, entre aqueles que seguem a Coreia do Norte de perto, o espaço para otimismo é pouco. “A Coreia do Norte não está sob nenhuma obrigação explícita que a impeça de produzir combustível para armas nucleares ou para abdicar das suas armas nucleares e sistemas de lançamento”, sublinha Naoko Aoki. “Embora Kim Jong-un tenha dito no seu discurso de Ano Novo que a Coreia do Norte não ia produzir ou testar mais armas nucleares, a verdade é que nós não sabemos ao certo o que isso significa.”
O que pode sair de Hanói?
Em Singapura, reinou a paixão. Dali resultou um encontro necessário, mas mais simbólico do que prático, onde uma simples página e quatro pontos vagos serviram para assinalar um momento histórico. Agora, em Hanói, terá de haver lugar para a razão e para acordos tangíveis, mesmo que mais modestos no seu alcance.
É nessa direção que apontam os especialistas contactados pelo Observador. “No mínimo, os dois lados têm de chegar a acordo sobre quais são as exigências a nível de segurança que têm de ser abordadas para podermos avançar”, diz Naoko Aoki. Quanto à desnuclearização prometida, a investigadora da RAND Corporation põe água na fervura e acalma as expectativas. “Se vier a acontecer, vai demorar muito tempo. Há muitas questões a determinar, incluindo quais os passos que devem ser dados primeiro e o que é que os norte-coreanos podem receber em troca”, diz.
Uma das concessões que a Coreia do Norte esperará de Washington será o levantamento ou alívio de algumas das sanções que asfixiam a economia de Pyongyang.
Na semana passada, a NBC divulgou uma carta enviada pelo embaixador da Coreia do Norte nas Nações Unidas, Kim Song, onde este admitia que era “urgente” haver “ajuda” a nível alimentar para a Coreia do Norte. A carta, que tem um tom e um conteúdo raros, foi obtida pela NBC News através da delegação daquele país nas Nações Unidas. Por isso, mais do que a admissão de uma verdadeira crise, pode ser apenas uma manobra política — uma forma de pressão para o fim das sanções, pelo impacto na vida dos norte-coreanos.
A apontar nesse sentido está a insistência em denunciar as sanções ao longo daquele documento. Referindo várias consequências práticas das sanções, a carta termina dizendo: “Tudo isto são exemplos relacionados com as restrições de entrega de materiais agrícolas. No seu todo, demonstram que a ajuda humanitária das agências das Nações Unidas é terrivelmente politizada e provam o quão bárbaras e desumanas as sanções são”.
Mintaro Oba guarda algum ceticismo quanto à redução de sanções de Washington em relação a Pyongyang, pelo menos de forma imediata. “Os EUA estão à espera que a Coreia do Norte dê alguns passos concretos para aliviar as sanções e a verdade é que a Coreia do Norte ainda não fez nenhum compromisso substancial no que diz respeito ao seu programa nuclear”, diz o ex-diplomata do tempo de Barack Obama.
“Não guardo muito otimismo para a possibilidade de haver bons progressos desta cimeira. Isto não passa do pagamento de uma prestação para um bom relacionamento entre os EUA e a Coreia do Norte”, sublinha Mintaro Oba. O amor está no ar, portanto, mas ainda tem de ganhar forma. E mesmo que, de Kim, Trump consiga pouco mais do que palavras e declarações de intenções, já diz o ditado: quem feio ama, bonito lhe parece.