“Estamos a tomar medidas, em particular nas criptomoedas ou cripto ativos para que não possam ser usados para contornar as sanções financeiras decididas pelos 27 Estados-membros”. A afirmação foi feita por Bruno Le Maire, ministro da Economia francês, salientando, por outro lado, que as sanções aplicadas até agora foram efetivas e desorganizaram o sistema financeiro russo, paralisando a capacidade do banco central de proteger o rublo.

Não foi a primeira voz a falar da necessidade de controlar, também, o fluxo das criptoativos. Já antes, o vice-primeiro-ministro ucraniano da Transição Digital, Mykhailo Fedorov, apelou a que se sancionassem também estes ativos. A União Europeia e os Estados Unidos avançam nesse campo, por forma a que não sirvam de escapa às sanções. Esta quarta-feira a Comissão Europeia realçou, para não haver dúvidas, de que os ativos incluídos nas sanções e nas transferência limitadas são também os virtuais.

Já existe legislação para criptoativos no que respeita ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, mas muitas das entidades de negociação de criptomoedas encontram-se sedeadas fora do espaço europeu. Ainda assim, Pedro Farrim, advogado associado da Rogério Alves & Associados, acredita que se houver um comando para bloquear contas nas exchanges [corretoras de criptomoedas], elas respeitarão as sanções.

A Coinbase, uma dessas plataformas, já disse ter bloqueado 25 mil endereços ligados a pessoas e entidades russas que, explicou, “acreditamos que estão associados a atividade ilícita, muita da qual identificámos através das nossas investigações proativas”. Numa informação disponibilizada no blog da Coinbase, Paul Grewal, responsável pelo departamento jurídico, assume que muitas destas contas foram bloqueadas antes da invasão da Ucrânia.

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Já a Binance declarou que bloqueará as contas dos oligarcas alvo de sanções, mas que não irá congelar “unilateralmente” os endereços de todos os utilizadores russos. “É suposto que as criptomoedas deem maior liberdade financeira às pessoas em todo o mundo. Decidir unilateralmente banir o acesso das pessoas às suas criptomoedas seria desafiar a razão pela qual as criptomoedas existem”, declarou um porta voz da Binance citado pela CNBC.

E também a Kraken, outra exchange, declarou que não pode bloquear contas sem uma decisão legal que o sustente, segundo uma mensagem feita no Twitter pelo seu presidente.

Estas plataformas — quer de custódia de carteiras quer de câmbio — podem, mesmo, vir a enfrentar algum tipo de sanções. Nos Estados Unidos, um grupo de senadores democratas levantaram a voz de preocupação sobre o perigo de as criptomoedas minarem as sanções contra a Rússia. E o próprio Executivo de Joe Biden já admitiu poder avançar nesta matéria.

E foi novamente pela voz da Coinbase que, através do seu presidente executivo, Brian Armstrong, veio a nova defesa: “Todas as companhias norte-americanas têm de cumprir a lei — as sanções aplicam-se a todas as pessoas e empresas dos Estados Unidos. Seria impensável pensar que a Coinbase não segue a lei”, mas, acrescenta, “não penso que haja um risco muito elevado de os oligarcas usarem as criptomoedas para fugirem às sanções. Por ser um registo aberto, tentar esconder uma série de dinheiro através das cripto seria mais localizável do que usar dólares americanos, dinheiro, arte, outro ou outros ativos”.

E dá um outro argumento. Hoje em dia há muitos russos a usarem criptomoedas no dia a dia, devido à desvalorização do rublo. “Muitos deles serão contra o que o seu país está a fazer, e banir as cripto também os afetaria”.

Mas o governo ucraniano, através do seu ministro da transição digital, Mykhailo Fedorov, fez mesmo o pedido para que estas plataformas (exchanges) bloqueassem os endereços dos utilizadores russos.

De acordo com uma notícia da Coindesk, o ministro ucraniano escreveu a várias plataformas: Coinbase, Binance, Huobi, KuCoin, Bybit, Gate.io, Whitebit, além da ucraniana Kuna.

Caroline Malcolm, diretora de política internacional da Chainalysis, garante que a empresa está a monitorizar as transações russas

Ao Observador, Caroline Malcolm, diretora de política internacional da Chainalysis (empresa que analisa criptomoedas), realça que muitos sugeriram que as criptomoedas eram uma forma dos russos evitarem o impacto das sanções.

“No entanto, a realidade é que, tal como no sistema financeiro tradicional, o ecossistema das criptomoedas pode avançar com medidas para detetar e monitorizar as transações das carteiras identificadas e que são associadas a entidades e indivíduos”, diz Caroline Malcolm.

E acrescenta: “Até ao momento, não houve novas sanções relacionadas com o conflito que incluam endereços de criptomoedas. Também vimos pela história como as sanções efetivas podem servir para travar a atividade de criptografia de entidades e indivíduos específicos, por exemplo, nos negócios russos como a exchange Suex que foi sancionada pela OFAC em setembro de 2021″.

A Suex foi sancionada em setembro pela OFAC (Office of Foreign Assets Control, que é a agência do Departamento do Tesouro norte-americano responsável pela aplicação das sanções) por alegada intervenção na lavagem de dinheiro obtido em resgates com ciberataques.

Conta a Chainalysis que no passado houve movimentos sancionatórios sobre dois tipos de designações: os serviços sediados em jurisdições específicas sujeitas a sanções, como o Irão; e as entidades que constam em listas de embargos com quem não se pode negociar. Neste momento, no caso da guerra na Ucrânia, as sanções estão focadas em indivíduos e entidades e, para Caroline Malcolm, tem sido claro quer para os Estados Unidos quer para a União Europeia que as sanções se aplicam às criptomoedas tal como a outro tipo de fundos ou ativos. Pedro Farrim acrescenta que há softwares de controlo de contas catalogadas como de potencial risco e, logo, que permite não aceitar transações envolvendo-as.

Dependendo da extensão da sanção pode não ser fácil implementá-la

Apesar de já ter sido referida várias vezes a possibilidade de se aplicar uma sanção às criptomoedas, a sua implementação pode não ser fácil, além daquilo que já foi sendo feito por entidades com custódia de carteiras de criptomoedas como o bloqueio de endereços que sejam identificáveis como pertencentes aos oligarcas alvo de sanções.

Mas se a ideia fosse alargar a restrição há muitas questões que se colocam. Desde logo a anonimização que a detenção destas moedas virtuais pode ter — o que as identifica é um endereço — ou também a cadeia até se chegar a elas.

“Para se implementar a sanção, tem de haver um focus nos prestadores de serviços de ativos virtuais que permitem trocar moeda fiduciária por criptomoeda, em particular aquelas com alta liquidez”, começa por descrever ao Observador Allison Owen​, analista do Centro para o Crime Financeiro e Estudos de Segurança do think tank britânico RUSI (Royal United Services Institute), acrescentando que estes prestadores têm, depois, de contar com o bloqueio dos fornecedores de internet, a due dilligence do cliente e a monitorização das transações”. E, admite este analista, “há sempre forma de contornar o bloqueio de IP com o uso de VPN [rede virtual privada]”.

Por outro lado quem faça transações que sejam ponto-a-ponto (designada P2P ou peer to peer) também pode ficar fora dos radares. Ainda que as operações não sejam totalmente anónimas. No caso da bitcoin, a mais conhecida criptomoeda, a própria rede explica que esta moeda virtual “não é anónima e não consegue garantir o mesmo nível de privacidade que o dinheiro. A utilização de bitcoins deixa registos públicos. Há vários mecanismos de proteção da privacidade dos utilizadores e há mais em desenvolvimento”.

No entanto, recorda Ricardo Evangelista, analista da ActivTrades, que a comunidade das cripto “tem um apego muito forte a valores libertários e por isso estas restrições são mal vistas” por ela.

Pedro Farrim explica, por outro lado, que todo o sistema das cripto baseia-se em códigos informáticos, por isso, pode haver sanções que nem sequer são possíveis de aplicar, já que, por exemplo no caso da bitcoin, alterar o código informático tinha de ser aprovado pela maioria dos utilizadores. Por isso o jurista admite que estabelecer medidas sobre os prestadores de serviços (de custódio ou de câmbio) poderá acontecer, mas em relação ao resto do ecossistema “não será fácil”.

Qual a importância da Rússia neste mundo das criptomoedas?

A questão de se colocar sanções no mundo das criptomoedas foi levantada depois de se registar grandes movimentações neste universo depois do início da invasão russa. O volume de negociação de bitcoin e de tether (uma stablecoin, ou seja, uma moeda virtual com paridade com um ativo real, neste caso o dólar) em rublos, segundo dados da Kaiko, atingiu o máximo no último sábado.

Ainda assim as negociações na Rússia só são uma fração do volume total transacionado de bitcoins globalmente. A média de transação diária está entre os 20 e os 40 mil milhões de dólares. No dia 5 de março, o volume total BTC/RUB (bitcoin com rublo) foi de 14,2 milhões de dólares, segundo a Bloomberg. Só três exchanges globais oferecem pares de criptomoedas com rublos — Binance, Yobit e LocalBitcoins.

Na Binance, o volume médio transacionado no par de criptomoedas com rublos subiu de 11 milhões de dólares antes da invasão para cerca de 35,8 milhões, segundo a Block.

São dos poucos ativos a nível internacional trocáveis por rublos por parte dos russos, que veem a sua moeda desvalorizar. O rublo caiu já 50% este ano face ao dólar. Os investidores estão a “tentar livrar-se dos rublos”, devido à sua “dramática desvalorização, depois das sanções”, destacou Bendik Schei, analista na Arcane Research, citado pela CBS MoneyWatch, acrescentando que “face à atual situação do mercado, não me surpreende ver investidores — pelos menos os que estão na Rússia — à procura de stablecoins“. Mas dificilmente será o banco central.

As sanções internacionais impedem que o banco central russo transacione as suas reservas externas denominadas em dólares, euros, libras, iene, entre outras moedas.

Rússia está isolada financeiramente. A economia é uma arma?

As reservas do banco central russo atingem os 630 mil milhões de dólares, estando 497 mil milhões no exterior e, como tal, uma boa parte bloqueadas (já que algumas estão em países que não impuseram sanções, como a China). Muito menos relevância tem o rublo digital, cuja que não está desenvolvido o suficiente, acrescenta Allison Owen. Antes da invasão da Ucrânia, o banco central russo admitiu limitar a mineração e a utilização de criptomoedas no país, ainda que em 2020 lhes tenha dado valor legal, apesar de as ter banido como meio de pagamento. Mas não colocou qualquer limite à posse.

Aliás, em 2017 não foram poucas as notícias dando conta que estava em construção o Centro de Mineração da Rússia, cuja intenção era minerar bitcoin de forma a que a Rússia ficasse o detentor dominante. O projeto foi iniciado por Dmitry Marinichev, um aliado de Putin.

Segundo a Chainalysis, “a adoção e a literacia das criptomoedas são elevadas tanto na Rússia como na Ucrânia”. A empresa faz um ranking de adoção global das cripto e estes países estão, respetivamente, na 18.ª e 4.ª posições. Pelo que Caroline Malcolm diz ao Observador que “será de esperar que os cidadãos se virem para as cripto face à desvalorização da sua moeda”. A Chainalysis diz monitorizar de perto a atividade destes ativos devido à associação a grupos russos de cibercrimes — em 2021, os ataques de ransomware ligados à Rússia correspondeu a cerca de 74% dos pagamentos que foram identificados. “Estamos a avaliar para ver se a imposição das sanções trouxeram alterações”.

Ainda assim acredita-se que as movimentações de criptomoedas na Rússia nos últimos dias não deverão estar ligadas ao banco central, já que seriam precisos volumes muito grandes. E em relação à bitcoin, da qual há o maior volume de transações, existe um número limitado. E criar novas também não é um processo fácil, ainda que a Rússia seja dos países com maior mineração. Era o terceiro no final do ano passado, atrás dos Estados Unidos e do Cazaquistão.

O Irão também tem crescimento em termos de mineração de criptomoedas. E é esse, aliás, um dos argumentos para se admitir que a Rússia também poderia começar estes ativos como forma de contornar as sanções. É que, no Irão, a criação de cripto aumentou com o embargo a que está sujeita. A Elliptic, uma consultora de criptoativos, estima que 4,5% da mineração de bitcoin fosse no Irão (dados de meados do ano passado).

O Irão facilmente gera eletricidade suficiente para a mineração. A Rússia a este fator, que também tem, junta um outro — o clima frio.