Passavam poucos segundos desde o início da peça quando jovens do movimento Climáximo irromperam pelo palco do Teatro São Luiz, em Lisboa. Num domingo de outono, ativistas escolheram interromper a peça Europa, de David Greig, para “fazer uma intervenção sobre o significado” do próprio espetáculo “no estado atual do mundo perante a crise climática”.
Das várias ilações que retiramos deste episódio, elencamos duas: que cada récita é única e irrepetível, e que estar na sala de teatro — seja em cena ou fora dela — pode ser um gesto político. Nos últimos 12 meses se nota como o repertório clássico perdeu espaço nos palcos portugueses em prol de criações originais sobre temas fraturantes: o colonialismo, o racismo, as assimetrias sociais, a democracia. Talvez estejamos perante uma “necessidade de criação de manifestos, de confirmação de intenções”.
Tal como o teatro não é a realidade sem nuances, também uma lista é o resultado de um exercício discutível. O que se segue são os dez espetáculos de que mais gostámos e que vimos sobretudo nos grandes palcos, sobretudo em Lisboa e no Porto, por força das agendas institucionais e inegável enviesamento regional. Este não é, portanto, um retrato do país, mas uma amostra do que melhor se fez no último ano.
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▲ Depois de "Lua Amarela", os Artistas Unidos voltaram a David Greig com "Europa" (à esquerda). "Blackface" (à direita) é a primeira criação de Marco Mendonça.
Europa
De David Greig, encenação de Pedro Carraca, Artistas Unidos, São Luiz Teatro Municipal
Europa, escrita pelo escocês David Greig em 1994, surge como resposta à guerra civil nos Balcãs e às forças da globalização. Resulta que a peça não perdeu atualidade, pelo contrário, como prova esta revisitação dos Artistas Unidos, na primeira grande produção após a morte do seu fundador, Jorge Silva Melo. Numa pequena cidade fronteiriça habitam personagens que vivem nas franjas, entre refugiados e outros desamparados que definham cedendo aos discursos de grupos extremistas anti-democráticos. Um elenco exemplar leva a bom porto as mais de duas horas de um espetáculo violento, mas precioso, que nos faz questionar: que Europa queremos? Como se escuta em palco: “Não podemos deixar este sítio para os lobos”. JM
Blackface
De Marco Mendonça, TBA — Teatro do Bairro Alto (Alkantara Festival)
A piscar o olho ao formato da stand-up comedy, Marco Mendonça viu no humor o veículo perfeito para um monólogo em que defende que o blackface é uma prática racista, por sinal bem presente no meio audiovisual português. Distanciando-se de uma figura evangelizadora ao implicar-se no espetáculo, Mendonça desmonta o racismo com um texto direto (não confundir com simples), desempoeirado, que parte de uma reflexão sobre o passado para chegar à discussão sobre o presente. É o próprio que assume querer “contribuir para uma discussão, um pensamento, uma reflexão”. A solidez desta primeira criação antecipa que o continuará a fazer. JM
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▲ "Ink" (à esquerda), criação Dimitris Papaioannou que passou pelo Rivoli, no Porto. Já "Guião para um país possível" (à direita) estreou-se em Viana do Castelo e prepara-se para correr o país em 2024.
Ink
De Dimitris Papaioannou, Rivoli
Não é de agora que as criações de Dimitris Papaioannou se tornaram marcantes – e daquelas que esgotam instantaneamente por onde quer que passem. Ink, a mais recente criação do artista grego, junta elementos simples, mas marcantes: água, dois intérpretes, um polvo e um jogo de contrastes entre luz e som. São parte de uma analogia à ordem e ao caos, num mundo dominado por aqueles que subjugam e os subjugados que lutam contra essa realidade. No fim, saímos com a certeza de ter absorvido a experiência única de entrar num lugar que tem tanto de onírico quanto de real e próximo da vivência comum a cada ser humano. RRG
Guião para um país possível
De Sara Barros Leitão, Cassandra, Teatro Municipal Sá de Miranda
Sara Barros Leitão tem uma relação séria com arquivos. Reafirma-o em Guião para um país possível, ao desafiar-se a não escrever uma única palavra e antes cosendo todas as que foram ditas em intervenções parlamentares desde o 25 de abril. As frases sucedem-se, nada nos é explicado. E, ainda assim, tudo nos é familiar e reconhecível. Mais do que um habilidoso exercício de dramaturgia — o de orquestrar discursos e insultos, apartes e interjeições — a criadora disseca as evidências como quem procura uma explicação para o que acontece no maior dos palcos, o da democracia. Celebremo-lo. JM
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▲ Ricardo Neves-Neves casa a comédia do original com uma estética e trejeitos pós-modernos em "Noite de Reis" (à esquerda). "Everywoman" (à direita), de Milo Rau, um ponto alto do Festival de Almada.
Estelle Valente
Noite de Reis
De William Shakespeare, encenação e dramaturgia de Ricardo Neves-Neves, Teatro da Trindade
Quem disse que a comédia já não ocupa o mesmo lugar nos palcos que outrora? Mais: quem disse que não é possível reinventar-se perante um texto de Shakespeare? Felizes somos nós por vivermos no mesmo tempo que Ricardo Neves-Neves, o encenador e dramaturgo português que nos últimos anos não só singularizou um estilo e uma poética teatral facilmente reconhecível, como surpreende na forma como se agiganta perante um dos mais celebrados textos do dramaturgo inglês. Noite de Reis casa a comédia do original com uma estética e trejeitos pós-modernos que lhe conferem uma profunda capacidade de nos fazer gargalhar – para bem dos nossos pecados. RRG
Everywoman
De Milo Rau e Ursina Lardi, encenação de Milo Rau, Centro Cultural de Belém (Festival de Almada)
Convidado pelo Festival de Salzburgo para encenar Everyman, Milo Rau começou por recusar. O provocatório encenador suíço, nome incontornável do teatro contemporâneo, acabaria por aceder, convocando a atriz Ursina Lardi, colaboradora habitual, para com ele escrever Everywoman, que passou por Lisboa à boleia do Festival de Almada. O espetáculo cruza o vídeo com a representação ao vivo para discutir a morte. Sabemos como uma mulher quer morrer: no verão, depois de uma tempestade, a ouvir Bach. Tudo sem sentimentalismo, sem racionalizar em extremo o fim inevitável. O equilíbrio é difícil, mas possível — ou não defendesse Milo Rau que “é para isso mesmo que existe o teatro”. JM
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![Ensaio de imprensa da peça "Fonte da Raiva", com texto e encenação de Cucha Carvalheiro, com estreia marcada para o dia 01 de fevereiro, no teatro São Luiz, em Lisboa, 30 de janeiro de 2023. ANTÓNIO COTRIM/LUSA](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:2000:1125/c:2000:1125:nowe:0:104/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2023/02/01113709/40224128.jpg)
▲ "MOMO" (à esquerda) é a primeira peça em três anos de Ohad Naharin, célebre coreógrafo israelita. "Fonte da Raiva" (à direita) fala-nos do passado colonial português.
Ascaf
MOMO
De Ohad Naharin, Rivoli
Vivemos tempos turbulentos. A guerra, a ascensão de radicalismos políticos e as formas de poder autoritárias assombram-nos diariamente. É também sobre isso que se debruça Ohad Naharin, célebre coreógrafo israelita, com MOMO, a sua primeira criação em três anos. Um jogo de ambivalência entre dois elencos, trabalhados separadamente, e que se encontram em palco para nos dar um espetáculo intenso marcado por alegorias. Entre a tirania e a opressão, dá-se espaço para uma ideia de coletivo que singra pela empatia e por fim, pela libertação dos corpos, que não existem uns sem os outros. É o seu derradeiro manifesto contra os dogmas instituídos. RRG
Fonte da Raiva
De Cucha Carvalheiro, São Luiz Teatro Municipal
A história de um país e as memórias familiares quando reunidas numa só casa podem constituir um combo poderoso que comunica com diferentes gerações de espetadores. De forma singela e elegante, Fonte da Raiva, a peça com encenação de Cucha Carvalheiro fala-nos do passado colonial português, da resistência contra a ditadura e dos laços que contam a história de uma família entre a pobreza e os tempos sombrios vividos. Num diálogo entre tempos, aborda-se a memória como o mais importante mecanismo para evitarmos que a história se repita. Esta fonte serve por isso como carta ao futuro, que não pode nem deve ser esquecida. RRG
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▲ Em "Pêndulo", Marco Martins abre a ferida que é o trabalho doméstico, levando mulheres (não-atores) a palco. "Gust9723" (à direita), peça-chave de Francisco Camacho, a que voltou 26 anos depois.
Pêndulo
De Marco Martins, Arena Ensemble, São Luiz Teatro Municipal
São mulheres, sobretudo imigrantes, que alimentam a indústria do serviço doméstico e dos cuidados domiciliários na Grande Lisboa. O trabalho é precário, quase sempre mal pago, não raras vezes informal. É este mundo silencioso, invisível (ou que ninguém quer ver?) que o cineasta e encenador Marco Martins revela recorrendo a intérpretes não-profissionais. A crueza dos testemunhos confronta-nos, desafia-nos. “Ainda não estamos exaustas. Ainda estamos de pé”, dizem, triunfantes, em palco. Pêndulo é abalo de consciência, justiça poética e a confirmação de Marco Martins como voz singular da criação teatral contemporânea portuguesa. JM
Gust9723
De Francisco Camacho, Rivoli
Se em 1997, a criação de Francisco Camacho marcou o panorama da dança portuguesa, volvidos 26 anos a sua revisitação serve como prova do talento deste coreógrafo e de toda uma geração de criadores que deram (e continuam a dar) cartas nas artes performativas. Gust9723 é uma daquelas peças que não se esquece. Aborda o lado marginal e decadente que existe na sociedade, a noção de livre vontade, a discriminação e as questões de género. Em 2023, permanecemos naquele mesmo campo descampado e pós-apocalíptico, que mais de duas décadas depois, nos continua a questionar sobre o que é realmente a condição humana. RRG