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"Gust9723": o mesmo vento nos mesmos corpos, 26 anos depois

Este artigo tem mais de 6 meses

Em 1997, o coreógrafo Francisco Camacho e o dramaturgo André Lepecki inspiraram-se na obra de Jeff Wall para criar “Gust”, uma das peças mais icónicas da dança portuguesa. Agora, regressa aos palcos.

O desafio para voltar a esta peça, conta Francisco Camacho, surge “por um lóbi dos próprios intérpretes originais que queriam remontar a peça”
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O desafio para voltar a esta peça, conta Francisco Camacho, surge “por um lóbi dos próprios intérpretes originais que queriam remontar a peça”

Claudio Marques

O desafio para voltar a esta peça, conta Francisco Camacho, surge “por um lóbi dos próprios intérpretes originais que queriam remontar a peça”

Claudio Marques

Estamos perante um descampado de terra e alguma vegetação selvagem. No início escuta-se aquilo que parecem ser sons provindos de um terramoto ou de um vulcão em estado de erupção. Tudo o que se passa depois neste campo desabrigado inspira ares de uma realidade pós-apocalíptica. Que lugar ocupam os corpos que sobrevivem a este tipo de catástrofe? Como é que estes podem improvisar a salvação dos que daí surgirem? As perguntas que em 1997 levaram o coreógrafo Francisco Camacho e o dramaturgo André Lepecki a criarem “Gust” são as mesmas que mapeiam agora a remontagem desta peça que se tornou icónica no panorama da dança portuguesa. Passados 26 anos, os dois criadores regressam aos palcos com uma nova versão, desta feita intitulada “Gust9723”. Será apresentada primeiro no Teatro Rivoli, no Porto, dias 15 e 16 de setembro e, de seguida, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, a 23 de setembro.

Em palco estão 15 pessoas, intérpretes da sua passagem por este campo, cujos corpos deambulam sob uma intensa rajada de vento. O seu título original remete para uma fotografia colorida exibida numa caixa de luz do artista canadiano Jeff Wall, “A Sudden Gust of Wind” (1993), na qual se retrata uma paisagem plana e aberta onde quatro figuras, em primeiro plano, surgem congeladas enquanto se confrontam com uma súbita rajada de vento. Tal como naquela foto, em “Gust” corpos movem-se devido a causas e forças externas, complicando a noção de livre vontade. Francisco Camacho imaginou esses corpos-projéteis habitando uma paisagem desolada, construindo por entre escombros e sombras de mundos imaginários um lugar onde o acidente traz consigo a promessa da desejada mudança.

Ao regressar a “Gust”, 26 anos depois, Francisco Camacho teve a possibilidade de voltar a ver como é que aquela realidade agreste ressoa nos corpos dos bailarinos. Num dos aspetos mais importantes da remontagem está o facto de ter voltado a trabalhar com muitos dos intérpretes que fizeram parte da estreia. Seis do elenco de 1997 (Begoña Méndez, Carlota Lagido, Filipa Francisco, Marta Coutinho, Miguel Pereira, Rolando San Martín), e nove que se juntam agora ao projeto (Beatriz Marques Dias, Beatriz Valentim, Bruno Senune, Francisco Rolo, Hugo Marmelada, João Oliveira, Magnum Soares, Mariana Tengner Barros, Sofia Kafol).

“Quando a possibilidade ganhou força, havia esta ideia e curiosidade de ver como aqueles corpos encaravam a peça tantos anos depois. É por isso que acolhe esse salto temporal, desde logo no título, sendo que o que estes corpos viveram entretanto se irá refletir em palco”, diz ao Observador. Mantém-se a estrutura, com algumas alterações, os gestos e alguma da banda sonora que encadeou o seu desenho original. Há lugar para a utopia, que já na altura se impunha simbolicamente, mas pelo caminho surgem outras questões, que parecem agora mais destacadas do que nunca, como as questões de género ou de discriminação.

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No fim, tal como em 1997, importa o gesto único de dar as mãos e formar coletivo contra as adversidades

Claudio Marques

Se em 1997 a peça encarava um subtexto que relacionava temas como a marginalização na sociedade, a violência entre pessoas ou os problemas de foro psicológico, hoje em dia “Gust” parece ser ainda mais atual nessas premissas e nas que surgiram pelo caminho trilhado. “Não sei se aquele tempo já era mais ou menos bizarro do que o atual, mas antes havia uma promessa de desenvolvimento e progresso, que hoje parece ter caído por terra”, sugere o coreógrafo. Camacho relembra que naqueles anos surgiram os primeiros apoios para a criação no setor da cultura e que a peça foi feita um ano antes da Expo’98, em Lisboa. “Era bastante diferente ser-se um criador naquela década em comparação com a realidade atual, com muito fracos apoios”, salienta.

Mas há ainda outros elementos. No seu entender, com as guerras e outro tipo de catástrofes que nos rodeiam – nomeadamente as alterações climáticas (tendo em conta esse lado ambiental que a peça pode sugerir) – existe uma consciência maior sobre essas várias temáticas, ainda que seja sempre um campo aberto à interpretação. “Venho de uma geração que estava, por exemplo, a descobrir e a abrir o espectro da sexualidade, mas não era um dado adquirido. Há também o meu conhecimento de adulto e o impacto que estas problemáticas têm na minha própria mundividência alteram a minha perceção”, sublinha.

Um futuro reimaginado

O desafio para voltar a esta peça, conta Francisco Camacho, surge “por um lóbi dos próprios intérpretes originais que queriam remontar a peça”. O criador que tinha seguido por outros caminhos diz que houve da parte de Filipa Francisco e de Carlota Lagido, duas das suas musas em termos coreográficos, a capacidade de colocar o “motor em funcionamento”. Voltar a “Gust” traduz-se também por isso numa ida ao passado, mas que conta igualmente um pouco daquilo que foi o percurso de muitos destes intérpretes que se tornaram criadores em nome próprio. “Muitos são hoje coreógrafos e bailarinos consagrados, daí que a peça tenha ficado como marca de uma geração que iria continuar a criar ao longo das décadas seguintes”.

Por outro lado, sustenta o coreógrafo, a peça foi importante pela sua dimensão. “Não é todos os dias que se faz um espetáculo com estas dimensões. Para muitos deles nunca tinha existido a possibilidade, até então, de partilhar o palco com tantos bailarinos. Na altura, fizemos uma audição onde apareceram muitas pessoas e isso foi bastante importante também para mim como criador ao ver aquela vontade de criar em coletivo”, sintetiza. Na altura, “Gust” era enquadrável enquanto “devising performance”, uma vez que toda a peça se construiu sem um guião pré-definido e ao longo de um processo intensamente colaborativo de meses com muito espaço para a improvisação. O desafio que agora se coloca é o de dar corpo também a uma obra estreada quando muitos ainda eram criança e alguns ainda nem sequer haviam nascido. E, para todos, “o desafio de re-habitar uma peça criada e dançada pela primeira vez, literalmente, num outro mundo, num outro planeta”, explica o criador na sinopse de “Gust9723”.

Nessa mesma sinopse, voltamos a seu princípio: “Em 1997, construiu-se ‘Gust’ sobre os escombros e as sombras da paisagem imaginária representada na foto de Wall. Por sua vez, Wall construíra essa foto inspirado numa gravura japonesa do século XIX. Desde sempre passados refuturados. Futuros repassados. Já ali, na sempre fugidia origem, o movimento oscilando entre o coreografado e o espontâneo. Nessa oscilação, cada acidente fortuito, abraçado como acontecimento, promete a inesperada mudança”. Numa outra imagem de referência surge “Radeau de la Méduse” de Géricault, onde o desespero na iminência da salvação se encena. “Géricault tomou a vasta superfície da tela e a transformou em palco para reencenar um acontecimento histórico onde forças da natureza condicionam as ações dos corpos em situação-limite, à mercê dos elementos”.

26 anos depois, esse guião de elementos está mais definido, mas “Gust9723” continua a possibilitar um vasto campo de interpretações, encarando a potencialidade de colocar os corpos novamente numa forma de sobrevivência precária e extrema, em que a redenção – e consequente salvação – dependerá dos caprichos do clima, dos ventos e da vontade de viver. No fim, tal como em 1997, importa o gesto único de dar as mãos e formar coletivo contra as adversidades. Assim se arrepia caminho para um outro futuro, por mais décadas que passem.

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