Passavam poucos minutos das nove da noite do dia 30 de julho de 2014, quando deu entrada no site da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), o comunicado com os resultados semestrais do Banco Espírito Santo (BES). Os números eram piores do que o cenário mais negro e anunciavam o maior prejuízo de sempre na história empresarial portuguesa: 3.600 milhões de euros.
Na mesma noite, o Banco de Portugal divulga um comunicado arrasador. Forçado a recuar nas garantias públicas dadas poucas semanas antes sobre a solidez do BES, assente na famosa almofada financeira, o órgão liderado por Carlos Costa intervém no banco perante a suspeita da prática de ilícitos criminais e afasta administradores que vinham da equipa de Ricardo Salgado. O economista Vítor Bento liderava a instituição há apenas duas semanas.
A partir deste dia, o destino do BES estava traçado. Perante a impossibilidade de captar investidores, as cotações afundaram-se mais de 50% nos dias seguintes, a resolução já estava em marcha. O ultimato do Banco Central Europeu (BCE), as conversas com Bruxelas, os conselhos de ministros por mail, os assessores financeiros e jurídicos a trabalhar em contrarelógio no fim-de-semana. Tudo para apresentar a solução ao país antes de os mercados abrirem. O domingo, 3 de agosto, ficou para a história como a data de resolução do BES, embora o anúncio tivesse resvalado para a madrugada segunda-feira.
A decisão foi experimental no quadro da união bancária europeia e as ondas de choque ao nível dos sistemas judicial e bancário continuam a fazer-se sentir. As réplicas de um sismo financeiro de forte intensidade, mas cujo grau ainda não está identificado.
E um ano depois, mesmo após uma comissão parlamentar de inquérito exaustiva, uma das perguntas mais óbvias continua sem resposta. Afinal, qual é a dimensão do buraco do BES? Quando foi nacionalizado, em 2008, o Banco Português de Negócios (BPN) tinha uma situação líquida negativa de 1.800 milhões de euros, que se foi degradando até à reestruturação que antecedeu a venda. Sendo o BES dez vezes maior do que era o BPN (em quota de mercado e clientes), pode-se esperar uma perda de dimensões épicas. A fatura do BPN está a ser paga pelos contribuintes e a do BES será paga por credores, acionistas e, possivelmente, a banca.
As contas do BES. Em fevereiro estavam por dias, mas só saíram em agosto
A primeira resposta vem no balanço zero do Banco Espírito Santo, divulgado precisamente no dia em que foram entregues as propostas finais para a compra do Novo Banco. Depois da resolução, o BES registou mais um prejuízo histórico (quase nove mil milhões de euros) e o que arrastou a situação líquida negativa para 2400 mil milhões de euros. Mas este ainda é um número provisório. A situação patrimonial pode ser agravada de forma significativa, reconhece o BES, em função das queixas e processos apresentadas por credores, clientes e investidores.
A conta final depende ainda do preço de venda do Novo Banco. Neste caso a défice para os 4900 milhões de euros injetados no capital do Novo Banco terá de ser assumido pelos restantes bancos.
As contas do BES foram divulgadas com vários meses de atraso. Na audição na comissão parlamentar de inquérito, a 5 de fevereiro deste ano, o presidente manifestava a expectativa de que as primeiras contas estariam em condições de ser divulgadas nos dias seguintes. É a “minha primeira prioridade”, disse Máximo dos Santos aos deputados, apontando para um prazo indicativo de 15 dias.
O gestor indicado pelo Banco de Portugal lembrava que o processo de apuramento dos resultados envolvia várias entidades: BES e o auditor, a KPMG, o Banco de Portugal e a PricewaterhouseCoopers (PwC), a auditora que fez a primeira avaliação de passivos e ativos no quadro da resolução, para além do Novo Banco.
“O BES tem estado a preparar, em articulação com o Banco de Portugal, a preparação do seu balanço, em função da medida de resolução aplicada ao BES a 3 de agosto de 2014 que determinou a transferência de determinados ativos, passivos e elementos extrapatrimoniais do BES para o Novo Banco, esperando assim poder contribuir para que os investidores e o mercado em geral possam ter acesso a informação mais completa e segura sobre a situação do BES.”
Este foi o primeiro esclarecimento dado ao Observador pela instituição. Numa segunda resposta de 17 de julho sobre a data da divulgação, o BES declarou que esperava “poder divulgar os documentos de prestação de contas relativos ao exercício de 2014 no mais breve prazo possível, contudo ainda não nos é possível indicar uma data.” Afinal, foi só sair a indicação de Máximo dos Santos seria reconduzido no cargo por mais um ano para as contas saírem, primeiro divulgadas pela TVI e dias depois comunicadas à Comissão de Mercado de Valores Mobiliários.
Máximo dos Santos deixou na sua audição no Parlamento algumas pistas que podem dar uma ideia do buraco da instituição à qual não gosta de chamar “banco mau”.
- O essencial dos ativos do BES são os créditos sobre as empresas do Grupo Espírito Santo e as participações acionistas e as filiais internacionais do Banco Espírito Santo (BESA, Espírito Santo Bank, Mosa Bank, Banco Espírito Santo e La Venetie, Banco Aman).
- A filial mais valiosa, o BESA (Banco Espírito Santo Angola), estava valorizada em 273 milhões de dólares, mas passou a zero depois da intervenção do Banco Nacional de Angola. A provisão para o financiamento ao BESA ficou no BES, mas o crédito propriamente dito (do qual foi possível recuperar 20%) foi para o Novo Banco.
- O passivo do BES inclui responsabilidades sobre créditos subordinados, incluindo obrigações desta categoria, passivos contingentes (a provisão de 668 milhões para o reembolso de papel comercial), que só se transformam em responsabilidades depois de decisões judiciais contra o BES, o empréstimo da Oak Finance de 834 milhões de dólares, cartas de conforto a entidades públicas da Venezuela.
- Máximo dos Santos reconhece que apesar de ter herdado a provisão, que tinha sido constituída por ordem do Banco de Portugal, o BES não tem recursos para pagar o papel comercial do GES vendido a clientes de retalho.
- A exposição direta do BES à dívida das empresas do GES era de 1.100 milhões de euros. O valor sobe para 1.600 milhões de euros quando incluímos a exposição das filiais.
- A percentagem de recuperação destes ativos é baixa. Em alguns casos (Rioforte) será de 15%, em outros será nula, em algumas empresas viáveis será mais significativa.
- Até fevereiro, o BES tinha reclamado créditos de 530 milhões de euros junto de empresas em processos de insolvência.
- Antes da resolução o BES tinha um capital próprio positivo de 2.800 milhões de euros. Os ajustamentos impostos pela PwC, que fez a avaliação preliminar dos ativos transferidos, tiveram um valor negativo de 3.500 milhões de euros. Desde então tiveram de ser registadas mais imparidades e provisões.
A metafísica dos prejuízos reais e potenciais
Se o apuramento dos resultados do Banco Espírito Santo se está a revelar muito mais difícil e demorado do que previa o seu presidente, então a comparação entre os prejuízos para acionistas e credores que resultam da resolução e de um potencial cenário de insolvência, “é um estudo quase metafísico”, admitiu Máximo dos Santos.
“É um estudo que eu acho de uma complexidade barroca, mas que seguramente é uma obrigação da lei, uma peça chave e que vai ter de ser feito para se apurar as contas”.
O ponto de partida serão as contas do próprio Banco Espírito Santo. A entidade independente que vai fazer a avaliação é a Deloitte, a escolha é do Banco de Portugal, mas a fatura (mais uma) cairá no BES. O prazo para concluir este estudo é o final do ano.
O estudo corre o risco de se revelar uma equação quase impossível. Antes de mais, porque não existe qualquer benchmark, nacional ou internacional, para este exercício. A resolução do BES foi uma estreia na união bancária europeia e vai servir de teste a este e muitos outros pontos. Por outro lado, a norma que define esta obrigação no Regime Geral de Crédito das Instituições Financeiras não estabelece qualquer procedimento ou critérios para a missão.
O que se sabe é que terá de ser feita uma avaliação do Banco Espírito Santo, e dos respetivos ativos, passivos e responsabilidades, no dia 2 de agosto de 2014, e partir daí para a construção de uma projeção fundamentada do que seria um processo de insolvência para credores e acionista, se a liquidação tivesse avançado. E depois comparam-se os números com o resultado da aplicação da medida de resolução para os credores. Os prejuízos que resultam da resolução têm de ser menores do que os infligidos por um cenário de potencial insolvência, que seria certamente a maior da história judicial portuguesa.
Ainda assim, há obstáculos a uma conta favorável para a resolução. O BES a 2 de agosto de 2014 tinha apresentado um prejuízo de 3.600 milhões de euros, vinha de uma desvalorização em bolsa de mais de 50% e apresentava uma crise aguda de liquidez que não lhe permitira continuar de portas abertas sem financiamento de emergência da ELA (linha do Banco Central Europeu). Mas tinha ativos. Depósitos dos clientes e as suas garantias, imóveis, participações financeiras, títulos vários, créditos fiscais.
Como se portaram as cotações do BES até à suspensão da cotação
E até os seus acionistas, apesar das perdas colossais do último mês, tinham alguma coisa. Quando foram suspensas, as ações do BES negociavam a 12 cêntimos, valorizando o banco em 675 milhões de euros. Os acionistas e os credores subordinados (onde se incluem transações com partes relacionadas) são os últimos elos da cadeia de credores numa insolvência.
Um dia depois, a aplicação da medida de resolução separou o banco bom do banco mau. Tudo o que era ativo, negócio e receita potencial ficou no Novo Banco. Tudo o que era passivo, responsabilidade, provisão e perdas relacionadas com o Grupo Espírito Santo, ficou no BES. Quando o principal ativo do BES são os empréstimos concedidos a empresas do Grupo Espírito, muitas das quais foram já declaradas insolventes, as possibilidades de recuperação de património são mínimas. O arresto de bens e participações do GES, ordenado pela justiça portuguesa, ainda cria mais entraves a um processo de recuperação, pela via da venda de ativos, que estava em curso.
Isso mesmo reconheceu o presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, Carlos Tavares, quando respondeu no Parlamento sobre as hipóteses de reembolso de papel comercial aos clientes de retalho, responsabilidade que, por ordem do Banco de Portugal, ficou no Banco Espírito Santo.
“Um ano depois, ainda não existem contas publicadas do BES, não têm o relatório dos auditores, mas conheço os grandes números e sei dizer que qualquer percentagem de reclamação de uma dívida que lá caia é ridícula ou irrisória”.
Não está, portanto, afastada hipótese de as contas concluírem que a resolução foi mais desfavorável do que teria sido a insolvência. É neste cenário que estão a apostar alguns dos processos que contestam os termos da resolução aplicada pelo Banco de Portugal e, sobretudo, a definição dos ativos que ficaram de um lado e do outro, ou dos que passaram do Novo Banco para o BES, já meses depois de aplicada a medida. Foi o que aconteceu ao empréstimo de 835 milhões de dólares, concedido pela Oak Finance ao banco português nos meses que antecederam o colapso. O veículo foi montado pela Goldman Sachs que depois o “vendeu” a investidores internacionais, onde estão fundos de investimento e fundos de pensões. Estes credores estão dispostos, e têm os meios para o fazer, a mover uma guerra sem quartel ao BdP.
E o que acontece se a avaliação der razão a estes queixosos? Sobra mais uma potencial bomba para o sistema bancário português. O Regime Geral das Instituições de Crédito é claro, quem tem de cobrir o prejuízo e indemnizar os investidores é o Fundo de Resolução.
“Caso a avaliação prevista no nº 14 determine que os acionistas, os credores (…) suportaram um prejuízo superior ao que suportariam caso não tivesse sido aplicada a medida de resolução e a instituição de crédito objeto de resolução entrasse em liquidação no momento em que aquela foi aplicada, têm os mesmos direitos a receber essa diferença do Fundo de Resolução”.
A venda do Novo Banco é outro fator que poderia aliviar esta fatura, mas apenas no cenário mais do que cor de rosa em que o encaixe fosse superior a 4.900 milhões de euros, o montante que o Fundo de Resolução injetou no capital do “banco bom”. O valor remanescente seria nesse caso entregue ao BES. Mas este não é um cenário provável.
A liquidação será sempre o destino do BES, mas o processo só poderá arrancar quando estiver concluída a alienação do Novo Banco e deixar de existir aquele que é agora um banco de resolução. Até lá, o BES não pode receber depósitos nem conceder crédito, mas mantém a licença bancária porque, no dia em que a perder, tal equivalerá a uma declaração de insolvência.
Mas as contas ao prejuízo e ao que ainda poderá ser recuperado, é apenas um das questões que ainda está em aberto. O Observador detalha outros cinco problemas por resolver, um ano depois.