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Um ano inteiro à procura de respostas nos livros: estes são os 45 que mais gostámos de ler em 2020

Biografias, romances e banda desenhada. Ensaios, antologias e poesia. O Observador faz as obrigatórias contas literárias e é este o resultado: os nossos livros favoritos ao longo do ano.

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A matemática pode parecer estranha, mas é factual: em 2020, venderam-se menos livros. A pandemia chegou para fechar livrarias e nem com as feiras do livro a retoma aconteceu na totalidade. Ao mesmo tempo, este terá sido o ano em que mais lemos. O ano em que o livro (como a cultura em geral) foi o nosso melhor amigo, uma relação que manifestou de forma mais intensa, nervosa e necessária. Nem sempre seguindo a atualidade, nem sempre seguindo as tendências, mas com uma média de páginas superior, mais pessoal, menos partilhada.

O balanço literário do Observador, assinado por quem por aqui habitualmente escreve sobre literatura, é disso reflexo: a unanimidade não está nos títulos, aí não existe de todo. O encontro de vontades está na procura heterogénea, na surpresa da diversidade e também na busca por respostas, que por norma só encontramos nos livros. E estes são os nosso 45 favoritos do ano.

Alexandre Homem Cristo

O Crepúsculo da Democracia
Anne Applebaum
(Bertrand)

Mais do que outro livro sobre as fragilidades das democracias liberais, este é uma reflexão acerca de como o pensamento político das elites evoluiu nos últimos 20 anos, na Polónia e noutras democracias ocidentais. A partir de episódios pessoais, Applebaum procura sistematizar e aprofundar os motivos que levaram tantos, no seu amplo círculo de relacionamentos, a abandonar a defesa dos valores liberais e a abraçar as tentações autoritárias. Uns por sede de poder, outros por desistência. Tenho dúvidas sobre os fatores que identifica, mas a certeza de que retrata bem o ar deste tempo que vivemos — em que amizades se convertem em inimizades, em que o radicalismo passou a ser tolerado, e em que os valores democráticos são submetidos às conveniências partidárias.

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Applebaum e as democracias iliberais: o autoritarismo e o papel dos intelectuais

Failure to Disrupt: Why Technology Alone Can’t Transform Education
Justin Reich
(Harvard University Press)

A tecnologia gera um entusiasmo por vezes eufórico sobre o seu potencial de transformar as nossas vidas. A educação foi, nos últimos 20 anos, uma das áreas onde essa promessa revolucionária mais se manifestou, prevendo-se múltiplas inovações nas formas de ensinar e aprender. E, em 2020, com uma pandemia que fechou escolas durante meses, garantiram-nos que havia chegado a oportunidade para acelerar a digitalização do ensino. Ora, o livro de Justin Reich ajuda-nos a desmistificar o verdadeiro impacto da tecnologia na educação, distinguindo o que é eficaz do que apenas é giro de implementar nas escolas. Como? Olhando aos factos de inúmeras experiências e casos práticos que testaram as várias vias de utilização da tecnologia na educação. Se quiser saber, o balanço é este: mesmo que a tecnologia seja uma mais-valia, é um erro fatal acreditar que a evolução da educação está dependente de ferramentas digitais.

Dez Lições para um Mundo Pós-pandemia
Fareed Zakaria
(Gradiva)

Apesar de o título adotar a formulação de um balanço, o maior mérito do livro está no enquadramento dos grandes desafios políticos e sociais contemporâneos — e a discussão de possíveis rumos para os enfrentarmos. Sem respostas impostas, a reflexão de Zakaria sobre os desafios que a pandemia expôs é aliciante porque construída a partir de evidências e sempre sustentada na fidelidade aos valores republicanos das democracias liberais. Destaque para dois temas: a argumentação de Zakaria sobre a globalização, que considera imparável apesar da ascensão dos nacionalismos; a sua reflexão sobre a reorganização urbanística das cidades face às mudanças sociais e laborais em curso — um tema muito pouco discutido em Portugal.

Os Ursos Não Leem
Emma Chichester
(HarperKids)

O ritual familiar de contar uma história antes de dormir tornou este livro aquele que mais vezes li em 2020. É uma história infantil sobre um urso que, aborrecido por só fazer coisas de urso e curioso com um livro encontrado na floresta, decide ir viver na cidade para aí aprender a ler. Divertido, é um livro sobre a coragem de vencer as limitações que nos são impostas, como a deste urso que recusa a premissa de que os ursos não conseguem ler (spoiler alert: ele vai conseguir). As peripécias associadas à sua decisão desvendam uma reflexão bela e subtil, mas valiosa, sobre o arriscar seguir os nossos sonhos, rejeitar determinismos de nascimento, abraçar as nossas diferenças e aprender a confiar nos outros.

As escolhas de Alexandre Homem Cristo

Ana Bárbara Pedrosa

O Livro do Deslembramento
Ondjaki
(Caminho)

Com O Livro do Deslembramento, o autor angolano regressa num estilo que já é conhecido, sem por isso deixar de surpreender. A voz da criança que narra é credível e literária e o fio da narrativa é o de uma intimidade familiar, em que o leitor entra porque alguém deixou a porta aberta. E, de repente, aparece Angola no que é pequeno, a cozinha de uma casa, e finalmente no que é grande, sem deixar de ser o palco da vida individual para se tornar num trauma ou num evento histórico ou num pretexto.

Ondjaki: “As memórias dos outros também são as minhas”

Hipnose
Paulo Moura
(Suma de Letras)

Paulo Moura traça cenários com a intimidade de quem os pisou. Em Hipnose, sobressaem as décadas de experiência de escrita, os olhos que apanham o que escapa aos outros e a mão acutilante de quem vê a graça nas coisas sem precisar de convencer ninguém. A literatura portuguesa tem ido buscar cenários para lá das fronteiras, entregando aos leitores romances insípidos com um olhar de turista que finge ver por dentro. Com Paulo Moura, passa-se o contrário, e entrega-nos um livro de alguém que não viveu com o rebanho.

Não Mais Amores
Javier
(Alfaguara)

Não Mais Amores reúne todos os contos do escritor espanhol numa obra que a sós já é uma literatura. Aqui encontramos os temas que são caros ao autor, e o seu estilo obsessivo e hipnótico causa a estranheza habitual. A inquietação permanente das obras de Marías inquieta o leitor numa leitura que é uma vertigem, e esta obra apresenta ainda um universo caleidoscópico, com personagens díspares e surpreendentes. Nas situações apresentadas, paira a angústia de uma decisão, e é isso que o leitor encara, enquanto tenta formular uma hipótese ao mesmo tempo que o drama das personagens o engole.

Javier Marías e o desconcerto dos leitores

O Fim
Karl Ove Knausgård
(Relógio D’água)

O livro mais aguardado de 2020 chegou a Portugal no fim do ano. A obra colossal do autor norueguês culmina com o maior volume da série, 1088 páginas do feitiço do costume. Não há, na literatura mundial, nada que se compare a Knausgård: a sua estética é inovadora, o seu conteúdo também. Nenhum outro autor de auto-ficção conseguiu um projeto tão abrangente: ao invés de despejar factos, o autor pôs-nos a seguir a sua cabeça. Os milhares de páginas publicados pela Relógio d’Água têm reflexões várias sobre a vida, o tempo, os traumas, o quotidiano e a memória. Knausgård vai ao detalhe da sua vida, mas nós também lá estamos.

A luta de Karl Ove chegou ao fim, mas Knausgård não acabou

Escrever
Stephen King
(Bertrand)

A obra já tem 20 anos, mas foi agora publicada pela Bertrand. Aqui, Stephen King disserta sobre a escrita, dando particular ênfase às formas de lhe tirar o pó. Dando exemplos que mostram a eficácia de descomplicar, também se torna evidente que o que é simples dá muito trabalho. Stephen King põe o leitor no centro da narrativa, sendo para ele que escreve, e não para o seu ego. Um livro importante para quem quer pensar a arte e a tarefa de narrar.

As escolhas de Ana Bárbara Pedrosa

Carlos Maria Bobone

Pedro Theotónio Pereira, o Outro Delfim de Salazar
Fernando Martins
(D. Quixote)

É uma das melhores biografias saídas nos últimos anos. Quem quer perceber como Portugal conseguiu manter a neutralidade na Segunda Guerra, influenciando a posição espanhola, ou de que forma o Estado Novo foi acomodando as várias correntes de oposição à Primeira República tem neste livro um estudo capital.

Como contar a história de uma vida política

O Infinito num Junco
Irene Vallejo
(Porto Editora)

Mais do que uma história da leitura ou do livro, é uma pouco canónica história da sede de conhecimento, nas suas desformalizações mais variadas: da vontade orgulhosa de possuir todo o saber, à obsessão pelas lendas, este livro trata da construção do livro tal como o conhecemos através da história da Antiguidade.

Irene Vallejo e uma lição sobre o mistério da leitura

A Psicologia das Multidões
Gustave Le Bon
(BookBuilders)

Apesar de escrito no século XIX, foi um dos livros mais influentes sobre a política do século XX. Isto porque Le Bon explora a possibilidade de haver um comportamento próprio da massa, que torna todos os movimentos associativos, não uma expressão de uma soma de individualidades, mas a expressão de um sentimento independente das vontades individuais. Importante para perceber um dos problemas da democracia e o modo como se desenvolveu a política no século dos grandes movimentos de massas.

O Osso do Meio
Gonçalo M. Tavares
(Relógio D’Água)

Gonçalo M. Tavares regressa ao universo em que se dá melhor, o universo de o Reino, em que surgiram livros como Jerusalém ou Aprender a Rezar na Era da Técnica. Quem gosta da técnica narrativa em que o enredo se vai desvendando, das tinetas semi-loucas e da abstração curta, tem neste livro um bom exemplo do estilo de Gonçalo M. Tavares

O Bode Expiatório
René Girard
(Edições 70)

Foi editado pela primeira vez em Portugal um dos livros fundamentais de Girard em que este, a partir dos mitos gregos e assírios, bem como de crónicas medievais, desvenda a existência, na política, de um estrutura de culpabilização que será ritualizada pela democracia. É interessante não só o mecanismo, com as suas ligações com algumas das ideias principais de Girard — desejo mimético, violência que surge da igualdade… – como a análise literária de Édipo, por exemplo.

Como sacrificar alguém em Democracia

As escolhas de Carlos Maria Bobone

Joana Emídio Marques

Eneida
Virgílio
(Cotovia)

E assim chega ao fim a editora mais importante da cultura portuguesa das ultimas décadas: a Cotovia. Assim, em grande, com a tradução da Eneida de Carlos Ascenso André, uma das obras fundacionais da civilização ocidental, o canto de Virgílio, a aventura de Eneias que, tal como a Íliada e a Odisseia, instaurou  uma forma narrativa da experiência humana e da sua escrita, que molda o nosso olhar até hoje. Não ouvimos nenhum dos nossos políticos citar Virgílio, mas já houve tempos e estadistas que se preparavam para dirigir um povo, lendo estas obras. Não deixaria de ser curioso saber quantos dos nossos governantes leram Homero, Virgílio, Ovídio, Horácio, Apuleio, Catulo, Milton, Ibsen… e outras obras basilares da nossa cultura traduzidas e editadas pela Cotovia ao longo dos anos. Talvez nunca um tempo tenha exigido tanto de nós e nos tenha oferecido como consolação por perdas e danos, a história do homem que, carregando o seu velho pai às costas, fugiu de Tróia em chamas e foi fundar outra cidade, dar início a outro mundo, Eneias. O que inspirou Camões e a nossa própria narrativa do destino mítico português, seguido de perto por Vénus e Baco. Fiquemos agora a aguardar que o catálogo da Cotovia não se perca e volte a ficar disponível em breve.

Carlos Ascenso André: “A ‘Eneida’ é a obra-prima da literatura ocidental, sobretudo pela capacidade que tem de nos colocar em antevisão”

Assim Nasceu uma Língua
Fernando Venâncio
(Guerra & Paz)

Outra das obras que marcaram o ano foi o ensaio Assim Nasceu Uma Língua do linguista Fernando Venâncio, sobre as origens e a história da língua portuguesa desde a sua formação até hoje. Um livro fascinante, culto, complexo, mas, ao mesmo tempo didático, acessível a qualquer falante do português. Recheado de exemplos e curiosidades, não teme polémicas nem humor e mostra que aquilo a que hoje chamamos “minha pátria”, a língua portuguesa, é uma derivação do galego, a sua origem matricial, mas que ao longo do tempo teve conúbios de toda a espécie com o castelhano, o francês, o árabe. Afinal, como afirmou o seu autor, “o nosso idioma surgiu e fez-se grande e sólido quando Portugal ainda não existia. Nós herdámo-lo e fizemo-lo ainda maior.” A obra foi distinguida com o prémio de Ensaio da Associação Portuguesa dos Críticos Literários.

“É promíscua e é liberal”: afinal de onde vem a Língua Portuguesa?

A Propósito de Nada
Woody Allen
(Edições 70)

Devemos dar os parabéns à editora Edições 70 por ter tido a coragem de publicar esta autobiografia, não obstante muitas editoras estrangeiras terem cancelado a sua publicação devido à polémica história de Woody Allen com os filhos, a histeria feminista #metoo que se infiltrou no olhar, no pensamento e na justiça. Mais do que o seu valor como obra (é muito divertida, Woody Allen escreve bem, dá-nos saudades dos seus filmes) é também o seu direito a que se conheça e se oiça o seu lado da história. E, num tempo em que a pós-verdade e as bolhas digitais criam um pensamento que não precisa de assentar em factos para se constituir como válido, em que o jornalismo prefere cavalgar as ondas mediáticas em vez de investigar a fundo as questões, é importante conhecer a versão e os factos, os muitos factos assombrosos que Allen vai apresentando e que, efetivamente, lhe têm garantido sempre a absolvição.

Woody Allen: uma vida memorável, para sempre refém de um pesadelo

Poemas Escolhidos
Rosario Castellanos
(Antígona)

Em ano de pandemia e confinamento, peste e morte, a editora Antígona fez sair com demasiada discrição a primeira tradução para português de uma das mais importantes vozes da poesia mexicana: Rosário Castellanos (1925-1974). Como é que foi preciso passarem 46 anos para os leitores de poesia em Portugal poderem ler Castellanos é um daqueles mistérios que abundam na nossa cultura. O México não é Frida Kahlo, com os seus vestidos de flores, as suas tranças e os seus amores. Há outro México de uma outra forma de beleza ferida, de luta, disforia e superação que é o de Rosário Castellanos. A obra, uma tradução de Jorge Melicias, foi recebida por um silêncio quase total dos críticos e media, algo que nos devia envergonhar por basta colocar o nome desta poeta no Google para vermos a sua importância. São 56 cantos, considerados os mais emblemáticos do seu trabalho poético, de uma beleza que não nos quer salvar de nada:

“Viu-me como se através de um vidro
ou do ar
ou de nada
E então percebi: eu não estava ali
nem em nenhuma outra parte
nem nunca tinha estado nem estaria
E foi como o que morre na epidemia
sem identificação, e é lançado/à vala comum”

Aurora Para os Cegos da Noite
Diogo Vaz Pinto
(Maldoror)

Outro livro saído durante o março do nosso confinamento e recebido por um silêncio total foi este Aurora Para os Cegos da Noite. Diogo Vaz Pinto reúne à sua volta o círculo de inimigos mais assertivos e ativos de que se tem memória na última década. Não por falta de leitores, não por falta de valor poético, mas porque ele representa uma capacidade de escrita, um talento muito acima da média. É como se a cada novo livro, ele nos acenasse do pódio, quando nós ainda estamos a dormir nas bancadas sonhando cortar a meta. Com uma poesia muito prolixa e digressiva, este é o seu livro menos frontalmente agressivo, mas não menos combativo. Não é a atualidade, nem o presente, porque o tempo como nós o pensamos já não existe. Existe só um estuário onde estamos presos, colados a milhões de pessoas, a detritos de toda a espécie, Diogo Vaz Pinto compreende e materializa, como poucos, este pesadelo de já não nos podermos mover, porque estamos colados uns contra os outros, colados às imagens, aos objetos que produzimos sem cessar e só um apocalipse nos poderia salvar. Contrariamente à distopia de Ray Bradbury, nesta obra, ninguém queima livros, mas também ninguém os decora, ninguém os lê, tudo se tornou indiferente e a indiferença é o nosso grande inferno. Ao contrário dos seus outros livros, como Ultimato, o poeta já não quer declarar nada, porque sabe que já nenhuma palavra tem força para fazer mundo e é com melancolia que vê crescer mais uma aurora, mais um dia em vão:

“Como hábitos que temos sós
porcarias sem valor
que nos tornam ávidos, mudos,
capazes de chorar sem aviso.
Uma gente perdida, virando
em direcções que aos outros escapam,
detalhes que ficam de um rosto
como de uma época:
o sorriso delinquente e o olhar disperso
entre o vislumbre de uma cidade
e o golpe frio
e talentoso da flor perfumando
a sua agonia.”

As escolhas de Joana Emídio Marques

João Pedro Vala

Leonardo da Vinci
Walter Isaacson
(Porto Editora)

A biografia exaustiva de Leonardo da Vinci escrita por Walter Isaacson é, acima de tudo, um elogio da curiosidade. Leonardo da Vinci foi um dos maiores génios da história da humanidade não só pelo muito que fez ou pelo que começou e deixou a meio, mas acima de tudo pela sua incrível capacidade de fazer perguntas diante do espanto causado pelo mundo. Além disso, importa recordar que Leonardo da Vinci foi um dos primeiros a defender cordões higiénicos para prevenir a propagação de pandemias. O presente ideal para dar àquele primo sempre pronto a explicar-nos como é que o mundo funciona e que está convencido de que isto do vírus é um esquema arquitetado por George Soros para arruinar o Natal.

Walter Isaacson, biógrafo de Leonardo da Vinci: “Leonardo guardou o quadro da Mona Lisa até morrer”

Balada para Sophie
Filipe Melo e Juan Cavia
(Tinta da China)

O duo Filipe Melo e Juan Cavia parece incapaz de criar más novelas gráficas. Balada Para Sophie é a história de um homem amargurado por ter tido um sucesso estrondoso que nunca o satisfaz e de que não se sente merecedor. É a história de um homem incapaz de perdoar os próprios erros e de se reconhecer, enfim, como apenas humano. E é, com certeza, uma das poucas coisas boas que 2020 nos trouxe.

Monstros, deuses e nós em “Balada Para Sophie”

Caronte à Espera
Cláudia Andrade
(Elsinore)

Cláudia Andrade continua lamentavelmente a ser não só ignorada pelos leitores, mas também (o que talvez seja pior) aclamada pela crítica. Caronte à Espera é um romance extraordinário de uma escritora com uma capacidade notável de ver a existência humana como infalivelmente atabalhoada, sublime e comovente. Estas listas valem o que valem e a literatura não é uma competição, mas Cláudia Andrade está a ganhar.

A graça do suicídio, segundo Cláudia Andrade

Odisseia
Homero
(Cotovia)

A Odisseia não é, nem nunca foi, em nenhum sentido da expressão, um livro do ano. É um livro de sempre. A presença da obra maior de Homero nesta lista, na extraordinária tradução de Frederico Lourenço, serve apenas para homenagear a Cotovia, que, depois de trinta e dois anos de serviços ímpares à literatura, irá fechar portas. Ficam os livros, de Milton e Virgílio, de Abel Barros Baptista e Jez Butterworth. Até que também eles desapareçam.

Teoria Feminista
bell hooks
(Orfeu Negro)

Em Teoria Feminista, de 1984, bell hooks apresentou dois argumentos fortes que são contraintuitivos e que retiram uma espécie de universalidade amorfa a que alguns querem subjugar o feminismo. bell hooks explica que ser feminista não implica apenas defender uma igualdade de homens e mulheres perante a lei e que a luta feminista deve ser sempre articulada com uma luta de classes bem como com uma luta antirracista. Talvez haja vantagens em ler o livro inteiro em vez de esperar pelos resumos transmitidos em tweets inflamados.

O feminismo como luta anti-capitalista

As escolhas de João Pedro Vala

José Manuel Fernandes

A Luz de Pequim
Francisco José Viegas
(Porto Editora)

Quem procura um romance policial ficará desiludido, apesar de haver um crime e um inspetor, o inevitável Jaime Ramos, agora já entradote e a começar a entrar em conflito com os novos hábitos e hierarquias da Judiciária. Mas o crime aqui é apenas um pretexto para nos encontrarmos com um Porto e um Douro que não são o dos turistas e com personagens que têm histórias de vida complicadas e mal resolvidas. Peguei nele por recomendação de Rentes de Carvalho, que o considerou como “o melhor romance, português ou não, que em muito tempo me foi dado ler”, e não me arrependi.

Três Retratos: Salazar, Cunhal, Soares
António Barreto
(Relógio D’Água)

A maior parte dos textos que compõem este volume já tinham sido publicados na imprensa (sobretudo no Público) ou como entradas do Dicionário de História de Portugal, mas aos revê-los e editá-los profundamente, sobretudo ao acrescentar um longo primeiro capítulo, Retratos, Personalidades e Heróis, Barreto ajuda-nos a compreender melhor três dos portugueses que mais influenciaram o nosso século XX naquilo que tinham de comum e de diferente – e também, através deles, ajuda-nos a entender Portugal e os portugueses.

Por onde vai a Banca em Portugal?
Jorge Braga de Macedo, Nuno Cassola e Samuel da Rocha Lopes
(Fundação Francisco Manuel dos Santos)

Já se escreveram muitos livros sobre o que se passou no sistema bancário português e há milhares de páginas de inquéritos à forma como caíram alguns bancos. Mas neste livro – um grosso volume resultado de um estudo encomendado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos – não se pretende recontar essa história, mas, a partir da experiência vivida, propor um novo modelo se supervisão financeira em Portugal. Depois de tudo o que falhou, dificilmente podemos deixar de considerar novas propostas, sobretudo quando solidamente fundamentadas.

A Grande Escolha – Mundo Global ou Países Fechados
Adolfo Mesquita Nunes
(D. Quixote)

Dir-se-ia que os tempos não sopram de feição aos defensores da globalização, e por isso mesmo mais notável é que o autor se tenha abalançado a remar contra a maré numa altura destas. Escrito de forma muito acessível, este livro desafia muitas ideias feitas – o mundo está melhor do que se pensa, não está tão desigual como se julga, sem globalização a pandemia teria sido ainda pior – ao mesmo tempo que não ilude os problemas e não deixa de sugerir soluções. Uma obra corajosa e oportuna.

Meia-noite em Chernobyl
Adam Higginbotham
(Desassossego)

Quem viu a série “Chernobyl” no canal HBO talvez ache que pode dispensar a leitura deste livro, mas engana-se. A série condensa nalguns personagens o que fizeram várias figuras e a trama foi mais densa e complexa, mesmo que a moral seja a mesma: só o secretismo e a propaganda que eram a marca de água do regime soviético, a par com o absoluto desprezo pela vida humana, permitem explicar a dimensão de um desastre que acabaria por precipitar o fim da URSS. Uma história que começa também num dia 25 de Abril, só que de 1986, e que neste livro é reconstituída como nunca ninguém antes fizera.

As escolhas de José Manuel Fernandes

Nuno Costa Santos

O Mundo à Minha Procura
Ruben A.
(Assírio & Alvim)

Um sentimento fica depois da leitura: o da liberdade. Pessoal, literária. Ruben A., oriundo da alta burguesia e figura que conviveu com as nobrezas, nunca fez parte. O seu descomplexado estilo de escrita e o género autobiográfico contribuíram também para o tornar uma ave rara no contexto literário português. “Dos quarenta aos cinquenta, limpa-se a casa”. E foi o que realizou em três volumes, afirmando-se contra a chatice,  nomeando o amor como motor primeiro, admitindo engulhos e emotivos renascimentos. “Corri o risco – e quantos não tenho já corrido na vida?! — de enfrentar mais uma vez as intempéries do estabelecido”. Felizmente o fez, em nome de uma chama única.

Os cem anos do interminável mundo de Ruben A.

As Ruas Demoradas
Mário Machado Fraião
(Instituto Açoriano de Cultura)

Poesia reunida por Victor Rui Dores, construída com versos limpos, desprovidos de verbo supérfluo, e mantendo quase sempre uma referência geográfica e identitária: a Ilha do Faial, em particular a cidade da Horta. Lê-la é revisitar essa ilha, caminhar, debaixo do voo das ganhoas e dos garajaus, sobre as águas marinhas da marina. Olhar para a montanha em frente e escutar a voz da infância: “Meu pai falava/ encostado à janela frontal ao Pico/ — Acerca destas ilhas é que deves escrever”. Prestar grato tributo às vozes de Vitorino Nemésio, Pedro da Silveira ou Dias de Melo, e ainda acompanhar o seu enamoramento, cheio de olhos verdes, ao som de Leonard Cohen ou Jacques Brel.

Observação da Gravidade
André Osório
(Guerra & Paz)

Livro de estreia feito de exímia carpintaria literária. Em “observação da gravidade”, olhar é um modo de perceber o peso das coisas para o exceder. O quotidiano serve para afirmar outra coisa. Entre recordações sobre a apanha de conquilha com um avô, a conversa com um tu amoroso que ilumina e acolhe e a cumplicidade com escritores, compositores e artistas plásticos, André Osório assume o naufrágio das folhas mas detém-se na cintilação dos dias. A casa é “seiva de um tronco/por abrir”. O movimento de abrigar consiste num ato “não de morte, mas de vida”. E as manhãs “recomeçam sempre num mergulho”.

Da poesia
Hilda Hilst
(Companhia das Letras)

“(…) Talvez eu seja/ O sonho de mim mesma (…)”. Uma boa forma de fazer uma aproximação ao imaginário de Hilda Hilst é assistir ao filme “Hilda Hilst Pede Contacto”, disponível, por exemplo, no Filmin. Aí está a sua propensão para comunicar com um mundo outro. O volume “Da poesia”, edição brasileira, foi editado em 2017 mas só agora chegou às mãos deste escriba, em edição de 2020. Sendo uma literatura além do óbvio, fazendo misteriosas combinações, traz um superior travo oculto, atravessado de amor, morte e vitalidade. “(…) Talvez não seja/ E ínfima, tangente/ Aspire indefinida/ Um infinito de sonhos/E de vidas”.

1984: A Novela Gráfica
George Orwell, adaptado e ilustrado por Fido Nesti
(Alfaguara)

Ler – e ver – uma distopia num ano distópico podia ser considerado um gesto masoquista se não estivéssemos na presença de uma adaptação de rasgo de uma obra-prima intitulada “1984” e inventada por um senhor chamado George Orwell. A adaptação é concebida para novela gráfica e vem com a assinatura do talentoso Fido Nesti, capaz de nos transportar pela imagem para um afamado universo sufocante. A única sugestão a fazer, caso haja reedição, é a de aumentar a letra dos textos espalhados. Um mundo em que o leitor não consegue ler por causa do diminuto tamanho da letra também constitui uma distopia. Evitemo-la, por enquanto.

As escolhas de Nuno Costa Santos

Rita Cipriano

Tyll
Daniel Kehlmann
(Riverrun/Bertrand)

Daniel Kehlmann, conhecido por Measuring the World, uma recriação das vidas de duas figuras importantes do Iluminismo alemão, voltou a inspirar-se num passado histórico para o seu mais recente romance. Tyll, nomeado para o International Booker Prize de 2020, é a história de Tyll Ulenspiegel, uma figura do folclore alemã que terá vivido na primeira metade do século XIV, mas que autor alemão colocou mais à frente no templo, em plena Guerra dos Trinta Anos, para abordar questões como o fanatismo religioso, a violência, a guerra e a condição humana. Tyll, um bobo e um trapaceiro, que aparenta ter dotes de mago, é historicamente uma figura escorregadia, característica que Kehlmann aproveitou para o seu romance. Tal como a figura que retrata, a estrutura narrativa de Tyll não tem contornos definidos — vai  andando para trás e para a frente, revelando diferentes personagens e intrigas políticas, como num ato de magia. Este vai e vem dá a ideia de um diálogo constante entre vários tempos — entre o tempo em que se passa o romance; o tempo antigo e pagão, dos feitiços e magias; e o tempo moderno, com a sua sede de liberdade e individualidade.

De algum modo, Tyll parece reunir em si todos estes períodos — é um indivíduo do seu tempo, um saltimbanco transformado pela magia da floresta e dos livros do seu pai, mas a sua personalidade é tão insólita que parece apenas encaixar no século XXI. É fácil acreditar que se confundiria mais facilmente com a confusão dos tempos modernos do que com o fumo dos tiros de canhão de um antigo campo de batalha. Libertário, apátrida e irreligioso — Tyll é, na inteligente construção de Kehlmann, um símbolo do homem moderno, irrequieto, desprendido — e sempre em busca da liberdade.

“Tyll”. A Guerra dos Trinta Anos vista por um bobo mágico que não tem medo de rir da morte

Hurricane Season
Fernanda Melchor
(Fitzcarraldo Editions)

Hurricane Season, o primeiro romance da mexicana Fernanda Melchor a ser traduzido para inglês (ainda sem tradução para português), foi um dos finalistas do International Booker Prize de 2020. Baseado numa história verídica, um crime violento ocorrido numa vila não muito longe da terra natal de Melchor, Veracruz, o romance gira em torno de uma figura misteriosa e enigmática, conhecida como a Bruxa, que alimenta a imaginação do povo de La Matosa. O livro abre com a descoberta macabra do seu corpo, que boiava num canal entre os juncos e os sacos de plástico, por um grupo de crianças assustadas. A partir daí, Melchor vai desvendando a história desta figura e os motivos que levaram à sua morte, num vai e vem temporal que se vai tornando psicologicamente mais denso e perturbador à medida que o romance avança. O ambiente mágico vai-se dissolvendo, e a verdade crua e dura das personagens que enchem Hurricane Season vai surgindo. Estas personagens quebradas pelo contexto social em que vivem servem a Melchor para abordar problemas bem reais como a violência, a misoginia e a superstição. Violento, mas extremamente belo, Hurricane Season é um retrato do que existe de pior no ser humano, mas também da capacidade que este tem de suportar e sobreviver às piores atrocidades.

Violência, misoginia e superstição: o México de Fernanda Melchor

A Paixão
Jeanette Winterson
(Elsinore)

A Paixão é, para muitos, a melhor obra de Jeanette Winterson. Editado em 2000, o livro chegou este ano a Portugal a reboque da publicação, em 2019, de Frankissstein, nomeado para o Booker Prize. Tal como Frankissstein, é possível encontrar em A Paixão, uma história de amor passada no tempo de Napoleão Bonaparte, temas que são muito caros a Winterson e que atravessam toda a sua obra — o amor, as questões de género e a complexidade do ser humano, sempre diferente, nunca igual. No centro da narrativa está o doce e inocente Henri, um soldado que não matou um único homem durante a guerra mas que perdeu a conta às galinhas que estrangulou, e a sua paixão irremediável por uma veneziana inconstante de cabelo ruivo. Tal como a cidade que a viu nascer, Villanelle é sempre diferente, nunca igual. A dualidade da sua vida expressa-se também através da forma como ama, indiferente a géneros e formas. Henri é apanhado nesta teia, da qual, tal como a guerra, não consegue escapar. No final, perde-se no fundo de si mesmo, à procura de um lugar onde possa curar todas as feridas. A metáfora parece ser óbvia: no amor como na guerra, há cicatrizes que são incapazes de sarar.

Amor e guerra no tempo de Napoleão Bonaparte

Rapariga, Mulher, Outra
Bernardine Evaristo
(Elsinore)

Rapariga, Mulher, Outra, da anglo-nigeriana Bernardine Evaristo, é um livro com muitas vozes e muitas vidas, quase todas de mulheres negras e de filhas de imigrantes que se mudaram para o Reino Unido à procura de uma vida melhor. No seu centro está Amma, personagem em direção à qual todas as outras acabam por convergir. Dramaturga negra e lésbica. Amma consegue, após uma longa carreira de parcos sucessos, estrear uma peça no National Theatre, em Londres, sob uma retumbante chuva de aplausos. A sua melhor amiga, com quem chegou a criar uma companhia de teatro independente, a Bush Women Theatre Company, foi vítima de violência psicológica por parte da companheira abusiva, Nzinga, de quem se vê obrigada a fugir, mas conseguiu vingar nos Estados Unidos da América.

No seu conjunto, estas e outras personagens formam um retrato da sociedade britânica atual, multifacetada e multicultural, mas onde existem problemas graves como o preconceito racial e social, o machismo, a homofobia e a violência doméstica, que a vencedora do Booker Prize em 2019 procura desmascarar através de uma linguagem coloquial e fluida, que agarra desde o primeiro instante. Ao mesmo o tempo que o faz, Evaristo mostra como noções conservadoras e mal informadas sobre raça, classe social, género ou sexualidade podem minar a forma como nos entendemos — ou devemos entender — uns aos outros. Uma reflexão sobre o seu passado e um olhar mais ou menos esperançoso sobre o futuro, Rapariga, Mulher, Outra é uma leitura essencial e muito esclarecedora acerca da maravilhosa diversidade do mundo, da busca pela verdadeira identidade e do direito inquestionável a tê-la.

“Rapariga, Mulher, Outra”: contra o preconceito e pelo direito de se ser quem é

Antologia Poética, Alejandra Pizarnik
Ed. Ana Becciú e Patricio Ferrari
(Tinta-da-China)

Alejandra Pizarnik é um dos nomes mais importantes da poesia argentina do século XX. Nasceu em 1936, em Avellaneda, na região metropolitana de Buenos Aires, e suicidou-se em 1972, com uma overdose de barbitúricos durante uma saída de fim de semana do hospital psiquiátrico em que estava internada. Tinha 36 anos, vários livros de poemas publicados e mais do que uma mão cheia de inéditos em castelhano e francês. Alguns destes, e também alguma da sua mais significativa produção poética, integram esta nova antologia em português, que procura apresentar Pizarnik no seu todo e em todas as suas vertentes. Esta não é a primeira antologia de Pizarnik a ver a luz do dia em Portugal (tinha sido editada uma em 2002, pela Estratégias Criativas), mas é “a primeira desta envergadura”. A seleção e prefácio são de Ana Becciú, responsável pela edição de três volumes de poemas pela editora Lumen de Barcelona, e Patricio Ferrari, que editou e ajudou a traduzir um volume de poesia francesa lançado em 2018 pela nova-iorquina New Directions.

Há muito para dizer sobre Pizarnik, mas talvez o melhor seja recorrer às palavras dos editores, que a conhecem melhor do que ninguém — “fugazmente prolífica, lúcida, hábil na sua incapacidade quotidiana, Alejandra é uma poeta sem concessões, em perpétua construção literária, uma poeta das grandes emoções que não passam; que, pelo contrário; fortalecem” — e aos seus versos:

“Eu canto.
Não é invocação.
Só nomes que regressam”

O Amor em Portugal na Idade Média
Ana Rodrigues Oliveira
(Manuscrito)

Na Idade Média, a palavra “amor” não era apenas utilizada no sentido de “paixão”, implicava muitos outros significados e sentimentos além daqueles que hoje lhe associamos. Era paixão, sim, mas também estabilidade, cumplicidade, amizade, companheirismo e tolerância. Podia ser um sentimento partilhado entre irmãos, pais, mães, amigos e amantes. Na pena dos cronistas, o amor entre casais podia ser cego, como o de D. Fernando por D. Leonor Teles, mas também racional e ponderado, como o de D. João I por D. Filipa de Lencastre. O primeiro era capaz de levar o reino à ruína, o segundo de gerar coisas extraordinárias. Para a Igreja, e também para a legislação da época, tinha de ter regras e penas duras para quem não as cumprisse.

Todos estes significados tornam o amor na Idade Média um tema “escorregadio” e “difícil”, e talvez por isso não sejam abundantes os trabalhos que o abordam. Mais uma razão para a pertinência de O Amor em Portugal na Idade Média, um excelente trabalho da investigadora Ana Rodrigues Oliveira que mostra que, apesar das diferentes interpretações, o amor medieval não era assim tão diferente, talvez à exceção de um ponto, como a própria admitiu em entrevista ao Observador no início deste ano: “Hoje tudo é livre — o amor é livre, as relações são livres, as pessoas praticamente não arriscam. Na altura, arriscavam, inclusivamente a própria vida”.

O amor na Idade Média estava cheio de regras, mas “as pessoas arriscavam e arriscavam muito”

As escolhas de Rita Cipriano

Vasco Rosa

Tipos Curiosos. Pequena história das letras
Ricardo Henriques, Madalena Matoso e Rúben Dias
(Imprensa Nacional e Pato Lógico)

Não acredito que haja tipomaníacos de palmo e meio, e capazes de perceber o alcance deste belíssimo livro. Mas esta admirável obra — sem dúvida, do melhor que a Imprensa Nacional faz e poderia fazer no cumprimento da sua função primordial — é soldado valente no justo combate à iliteracia tipográfica (escrita em tipo) na era do papel impresso e da informação digital, e pelo bom gosto no design de comunicação vertido em tantos meios e modos do nosso viver quotidiano (que a cena da capa reconhece)… Equilíbrio perfeito entre texto, ilustração e jogo cromático. Um sério candidato a um prémio internacional. Aposto nisso!

Tempos Modernos: cerâmica industrial portuguesa entre guerras
Rita Gomes Ferrão, António Miranda e outros
(Museu Nacional do Azulejo)

A pretexto duma coleção privada de grande qualidade, exposta em Lisboa e Matosinhos, este livro-catálogo é uma revisitação muito oportuna da concreta atenção dos fabricantes portugueses (ou luso-britânicos…) de louça aos modismos internacionais, e de como foi que — “pela cozinha” — se introduziram na vida quotidiana e na decoração doméstica dos nossos avós e pais objetos quase-notáveis que hoje são disputados em leilões online à escala global, e como por aí se faz atualmente uma nova história das artes decorativas europeias e norte-americanas. Muito agradável o design de Maria João Ribeiro.

Luxo doméstico, coleccionismo privado

& etc: Magazine das artes, das letras e do espectáculo 
Aníbal Fernandes, Rocha de Sousa e outros
(Jornal do Fundão e Canto Redondo)

Justíssimo reconhecimento do valor, originalidade e liberdade (ou demanda dela) deste suplemento cultural de um jornal de província que se tornou uma referência no cenário nacional (e primeiro degrau para uma revista e depois editora lisboeta) e agora revive nesta edição facsimilada integral — tecnicamente bem sucedida —, com depoimentos dos seus protagonistas sobrevivos e outra documentação histórica de valor. (Irá este resgate estender-se à revista homónima de Vítor Silva Tavares, um “quinzenário cultural” com 25 números publicados em 1973-74? Seria um bom desafio para 2021.)

“& etc…” e a liberdade em guarda

A Visagem do Cronista. Antologia de crónica autobiográfica portuguesa (séculos XIX-XX), 2 vols.
Carina Infante do Carmo
(Arranha Céus)

São mais de 150 autores, brevemente representados (um escrito apenas) — e por isso, em muitos casos, creio que drasticamente escolhidos — nestas mais de 900 páginas de franco e esforçado elogio do género literário crónica, para mais num foco tão específico como o da autobiografia. A folhear a gosto, mas também aberto a surpresas, e depois juntar na estante a trabalhos congéneres de Ernesto Rodrigues e Fernando Venâncio.

Depois da Estrada; Caminhar Oblíquo; Viagem Maior
Duarte Belo e Mário Abreu
(Museu da Paisagem)

Não um livro, mas um tríptico que num só ano, de forma inesperada e voluntariosa, nos dá testemunhos do que podemos chamar, usando expressão consagrada, “identificação dum país”. São relatos de viagens solitárias por caminhos secundários ou de pé posto ao longo de paisagens naturais e humanas quase sempre em perda ou abandonadas, por lugares antigos que já quase ninguém habita ou por onde já ninguém passa. Um documento importante, que convida a pensar uma nação sem rei nem roque.

As escolhas de Vasco Rosa

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