Título: Pedro Theotónio Pereira — O outro delfim de Salazar
Autor: Fernando Martins
Editora: Dom Quixote
Páginas: 1216
Preço: 37,70€

A capa de “Pedro Theotónio Pereira: O Outro Delfim de Salazar”, de Fernando Martins (Dom Quixote)

Vamos ser tão claros quanto conseguimos: este livro é extraordinário e dificilmente se terá escrito uma biografia melhor em Portugal na última década. Não é apenas pela quantidade assombrosa de informação sobre Theotónio Pereira, sobre o Estado Novo e sobre as relações entre Portugal e Espanha durante a Guerra Civil; é sobretudo pela fineza do entendimento, quer das posições do biografado (como no caso da célebre polémica com os livros de António Botto), quer da conjuntura política em que Theotónio Pereira se mexeu.

Theotónio Pereira formou-se em Matemática já com a ideia de seguir carreira na Fidelidade, em que a família detinha uma posição importante, no ramo dos seguros de vida. É nesta sua especialização que, nas suas memórias, o próprio baseia o convite que lhe é feito por Salazar para o governo. Salazar, insatisfeito com o sistema de seguros deixado pela I República, quereria reformá-lo e chamaria para isso Theotónio Pereira.

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Ora, o que este livro nos mostra é que o contexto desta chamada é muito mais profundo e revela bem os equilíbrios em que assentou o Estado Novo.

Theotónio Pereira foi, na sua juventude, um militante destacado do Integralismo Lusitano; foi como Integralista que presidiu à Junta Escolar de Lisboa, que chefiou a Associação académica responsável por apreender os livros de António Botto e que escreveu os seus primeiros textos. Ora, acontece que, dentro do Integralismo Lusitano — e este é também um grande livro sobre a História do Integralismo, mesmo que só indiretamente e no princípio trate dele — se formou, ao longo dos anos vinte, uma divisão entre a Junta Central, o órgão de chefia de que faziam parte Afonso Lucas e Hipólito Raposo, e os mais jovens seguidores de António Sardinha. Por uma série de circunstâncias, de que o pacto de Paris, que na prática neutralizou a atividade monárquica por ordem dos dois ramos pretendentes ao trono, é talvez o maior símbolo, a linha sardinhista estava destinada a ganhar mais importância. Não só porque Sardinha tinha uma apetência mais doutrinária do que política, mas também porque este lado levou a que a sua atividade não se ressentisse tanto com o marasmo provocado pelo pacto de Paris.

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Sardinha, que com a morte prematura se tornou o símbolo maior do Integralismo, apostou mais na teorização do modelo de sociedade de que a monarquia seria um correlato natural do que propriamente na restauração da monarquia. É assim natural que os seus seguidores, embora convictamente monárquicos, percebessem que o grosso das suas convicções, mais do que no problema da chefia de Estado, radicava na transformação das bases da sociedade. É isto que permite que a ala sardinhista do Integralismo, já habituada a algumas pontes de entendimento (até a Seara Nova, onde Raúl Proença viria a atacar ferozmente o Integralismo, é referida no livro!), não visse com maus olhos a entrada no governo de Salazar.

É aliás, bem explicado o envolvimento desta fação monárquica no golpe 28 de Maio, com um papel modesto embora revelador da sua capacidade de aproveitar as conjunturas para, num jogo de compromissos, ir transformando a sociedade naquilo que queria.

Ora, e se é verdade que, a certa altura, Salazar parece dominar todas as correntes ideológicas que formam o Estado Novo, também é verdade que, de todos os seus principais ministros, Theotónio Pereira é aquele que mais se esforça por fazer do regime mais do que uma coligação negativa, contra a primeira república ou os vários tipos de esquerdismo, e mais como um corpo consistente. É Theotónio Pereira quem monta a organização corporativa do Estado Novo, é ele o responsável pelo sistema social dos primeiros anos e será também ele o responsável pela execução de uma parte fundamental da política externa portuguesa que constituirá uma das grandes bandeiras do Estado Novo durante a segunda Guerra Mundial.

Se é verdade que o sistema corporativo do Estado Novo era bastante brando e que, na prática, dependia mais do Estado do que desejavam os seus maiores doutrinadores, também é verdade que havia nisso uma dimensão propositada. A preocupação de ter um corporativismo português, diferente do italiano, que integrasse a dimensão cristã e a liberdade individual, é uma das grandes preocupações, quer de Theotónio Pereira, quer do seu companheiro da revista Ordem Nova a quem, com algum exagero, claro, poderíamos chamar o teórico da obra de Theotónio Pereira — Marcelo Caetano.

Diziam as más línguas que, depois do seu papel na edificação do Estado Novo, Theotónio Pereira tinha sido enviado como agente especial junto do Governo de Franco, ainda na Guerra Civil, para afastar um possível concorrente de Salazar do centro dos acontecimentos; ora, se isto fosse verdade, a candidatura de Theotónio Pereira ao lugar de Salazar devia ter saído reforçada e não enfraquecida.

A situação que Theotónio Pereira encontra em Espanha é aquela que seria natural dadas as circunstâncias: Franco tem uma enorme proximidade com os Embaixadores italiano e alemão, e a relação com todos os outros faz-se, mutuamente, a contra-gosto. É Theotónio Pereira que, também devido ao carácter específico do regime português, consegue de certa forma criar algumas pontes de entendimento. A missão portuguesa, que passava essencialmente por tentar criar um bloco ibérico neutro dentro da conjuntura internacional, será bem-vista também pelos futuros aliados, que acabam por ver em Theotónio Pereira o único agente possível para afastar a Espanha de Itália e da Alemanha. O bom sucesso de Theotónio Pereira será, assim, não só responsável pela posterior neutralidade portuguesa durante a segunda Guerra Mundial, que Salazar aproveitou politicamente, como pela criação da convicção, nas potências estrangeiras, de que de facto era possível um certo entendimento com Portugal.

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O princípio do Estado Novo deu-nos uma plêiade de diplomatas, de Armindo Monteiro a Teixeira de Sampaio, deste a Marcelo Mathias, difícil de igualar; mas se é verdade aquilo que, na correspondência com Salazar, Marcelo Mathias afirma, que a situação portuguesa encontrava muito mais simpatias entre as potências ocidentais do que a situação espanhola, isto não se deve apenas à maior instrução ou habilidade diplomática dos seus representantes; o trabalho de Pedro Theotónio Pereira foi, em grande parte, responsável por arrancar um aliado à Alemanha e a Itália e isso deu ao governo português um capital internacional que durou muitos anos.

Pedro Theotónio adoeceu relativamente cedo e isso impediu-o de ter um papel muito ativo na fase final do Estado Novo. Esta biografia traz-nos umas tímidas manifestações de apoio ao seu amigo de juventude Marcelo Caetano, mas estas são, nota-se, já dadas com a benevolência de quem considera a sua obra cumprida e se limita a observar os caminhos que ela toma.

Pedro Theotónio Pereira esteve nas bases do Estado Novo e nos maiores palcos da política internacional. Só percebendo a sua dimensão é que se pode perceber a dimensão do elogio, quando dizemos que talvez não merecesse uma biografia destas. É que o cuidado é tal, o entendimento da política da época tão arguto, a informação tão copiosa, que se torna quase cómico que uma figura, embora importante, de segundo plano da política portuguesa tenha uma biografia destas quando tantas das principais figuras não têm ainda nem metade.