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Alexander Hassenstein

Alexander Hassenstein

"Um dia vou ser uma mãe orgulhosa por poder mostrar o cartão da universidade": as novas vidas da refugiada olímpica Yusra Mardini

A sua vida deu um livro e um filme, o seu caminho foi uma luz de esperança para todos os refugiados. Hoje, Yusra Mardini, que estuda cinema e tem a sua Fundação, está em Paris-2024 num outro papel.

You shout it out
But I can’t hear a word you say
I’m talking loud, not saying much
I’m criticized
But all your bullets ricochet
You shoot me down, but I get up

I’m bulletproof, nothing to lose
Fire away, fire away
Ricochet, you take your aim
Fire away, fire away

You shoot me down, but I won’t fall
I am titanium
You shoot me down, but I won’t fall
I am titanium

A determinada altura do filme “As Nadadoras”, disponível na Netflix, Yusra Mardini e a irmã, Sarah, saltam e dançam na parte de cima de um edifício aberto em Damasco ao som de “Titanium”, de David Guetta e Sia, enquanto ao fundo se vão vendo explosões e a passagem de rockets pelos ares em mais um ataque de grande escala. “Ela ligou-me a dizer ‘Obrigada, obrigada mesmo por aquela cena. Foi exatamente assim que as duas nos sentimos nesse dia'”, contou Sally El-Hosaini, diretor da película, ao The Face. Nem tudo é uma cópia na íntegra da autobiografia “Butterfly: From Refugee to Olympian, My Story of Rescue, Hope and Triumph” mas a cena respeitou aquela que era a habitual playlist da nadadora quando vivia na Síria. Num par de segundos, a protagonista está definida. Na altura. Ontem. Hoje. Garantidamente amanhã.

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Quando queria apenas viver o sonho de representar um dia o seu país nos Jogos e alimentar a pouco secreta ambição do pai, Ezzat, em ver as três filhas nos patamares mais altos da natação (Shaed é mais nova), Yusra encontrou na guerra o única obstáculo até ao incontornável destino. Nem tudo o que está no filme aconteceu. Um exemplo prático: o centro de treinos aquático em Damasco onde treinava com a irmã às ordens do pai teve ataques com bombas nas proximidades, atingindo mesmo uma residência onde ficavam os atletas, mas nunca nenhuma bomba caiu na própria piscina enquanto a nadadora competia. Ali, era retratada a situação limite a que tinha chegado. Na dança com a irmã, sobressai essa vontade de ser feliz onde a felicidade se tornou proibida. Assim nasceu uma das histórias mais fantásticas que chegaram depois ao mundo olímpico.

"As Nadadoras", produção da Netflix, retrata a história da viagem de Yusra e Sarah Mardini de Damasco até à Alemanha em 25 dias

LAURA RADFORD/NETFLIX

No entanto, nem sempre Yusra foi apaixonada pela natação. Aliás, a certa altura quase odiava natação. Aos três anos, quando o pai tentava todas as formas de incentivo colocando-a na piscina onde também competiu, ia resistindo ao que na verdade se tornou uma tentação demasiado forte para resistir. O tio ia questionando se aquela era a melhor forma de incutir o gosto na filha, o tempo deu razão a Ezzat. Com cinco anos, Yusra já não se limitava apenas a flutuar e nadava, como a irmã. Aos nove, com o bichicho de competição enraizado, colocou num misto de sonho e objetivo a presença numa edição dos Jogos. Era das melhores no plano interno, começou a representar a Síria em provas internacionais, teve destaque nos Campeonatos do Mundo de Piscina Curta de 2012. Em 2015, começou a guerra no país. A luta pela procura de “paz” tornou-se uma autêntica odisseia mas nem por isso o sonho olímpico deixou de ser cumprido no Rio de Janeiro-2016.

A renitência dos pais com a fuga das filhas foi-se dissipando com o tempo. Yusra e Sarah viam as notícias de amigas que iam perdendo a vida ao mesmo tempo que tinham outras que mostravam nas redes sociais uma nova realidade como refugiadas. A mãe, Mervat, que era fisioterapeuta, começou a aceitar a ideia. Ezzat soube que o primo das irmãs também planeava rumar à Alemanha. Em paralelo, o facto de Yusra não ter 18 anos permitia que, chegando à Alemanha como desejado, pudesse colocar os papéis para trazer a família. A decisão estava tomada. Contudo, aquilo que poderia ser feito em alguns dias tornou-se uma maratona de quase um mês com a agravante que hoje tenta combater: a perceção negativa sobre a figura dos refugiados.

De Damasco foram para Beirute, no Líbano. Do Líbano chegaram à Izmir, na Turquia. Foi aí que arriscaram a sorte que tantas vezes acaba por tornar-se uma tragédia, conseguindo lugar num bote cheio de 20 pessoas que iria para Lesbos, na Grécia. A determinada altura, entre o drama que já se vivia naquela embarcação pela fragilidade a que a vida de todos estava exposta, o motor parou. 20 pessoas ficavam entregues ao seu destino no meio do mar Egeu entre ondulações e um natural medo que criava mais peso num barco de borracha que era tudo menos um exemplo de segurança. Aí, Yusra Mardini ouviu o tiro interno para a corrida de uma vida. Atirou-se à água para começar a nadar em frente e levar consigo a embarcação, teve a irmã Sarah a fazer o mesmo do outro lado com ajuda de mais duas pessoas. Três horas e meia depois, aquilo que devia ter demorado apenas 45 minutos começava a chegar ao fim quando avistaram finalmente a terra sonhada.

"Aquilo que tive em 2016 foi incrível. Tinha 18 anos, a atenção dos media foi de loucos. Tivemos 300 ou 400 emails numa noite. Foi tudo diferente mas também me ajudou a perceber que ganhar uma medalha seria algo incrível mas que aquilo que tinha de fazer a partir daí era muito maior do que isso."
Yusra Mardini, em entrevista ao Observador

Yusra não mais esqueceu essa viagem, das ondas gigantes que enfrentou aos abraços a todos os sobreviventes no final, passando pelas marcas de sal que tentou tirar quando finalmente encontrou uma torneira com água. Yusra não mais quis esquecer as marcas que foi vendo quando chegou a Lesbos, de outros refugiados que não conseguiram ter o mesmo destino daquela pequena embarcação e acabaram por perder a vida. É por eles que hoje fala, luta, apela. E tudo porque, depois de passagens por Macedónia do Norte, Sérvia, Hungria e Áustria, numa odisseia onde chegou a estar dois dias sem comer, a chegada a Alemanha e uma feliz coincidência lhe abriram as portas para realizar aquele que nunca deixou de ser um sonho: chegar aos Jogos Olímpicos.

Gostava de nunca ter passado por aquela experiência, mas foi aquela experiência que mostrou a força que tinha para resistir a tudo o que pudesse parecer impossível. Fechada com a irmã, com o primo e com alguns amigos que entretanto foi conhecendo num dos vários pavilhões criados na altura para refugiados enquanto todos os papéis para a regularização da situação, um tradutor egípcio em Berlim conseguiu chegar à fala com um pequeno clube local de natação, o Wasserfreunde Spandau 04. Foi aceite e começou a trabalhar com um novo treinador, Sven Spannekrebs, a certa altura sem a irmã que desistiu de forma natural da natação por não aguentar as dores que tinha por uma grave lesão num ombro. Queria fazer mínimos pela Síria, acabou por ser convidada para representar a primeira equipa de refugiados nos Jogos de 2016. Ainda esteve reticente por “respeito” ao país, acabou por aceitar. No Rio de Janeiro, ganhou a sua eliminatória dos 100 metros mariposa nas eliminatórias e foi saudada como uma campeã olímpica pelo 41.º lugar geral. Em Tóquio-2020, desta vez sem público, voltou a ser a grande figura de um conjunto de refugiados que ficou.

Yusra Mardini teve sempre como treinador o pai antes da viagem até à Alemanha, onde conheceu Sven Spannekrebs, do Wasserfreunde Spandau 04

Getty Images for IOC

“Comecei na natação porque basicamente tenho uma família de nadadores. O mau pai também era, os meus tios também eram… Era quase uma espécie de mandamento dentro da nossa família, começar a nadar desde miúdos. Comecei com três anos, então apenas a boiar e na parte de lado da piscina a tentar dar as primeiras braçadas, depois quando tinha iniciei mesmo a natação e os treinos. Mais ou menos com nove anos comecei a sonhar com os Jogos. Adorava ver o Michael Phelps a competir e comecei a investir mais a sério no desporto. Foi nessa altura que fui conseguindo também marcar mais rápidas do que raparigas que eram mais velhas do que eu e que tinham recordes. Era o meu sonho chegar aos Jogos, era o sonho do meu pai que não teve essa oportunidade, e tudo começou com apenas nove anos”, recorda em entrevista ao Observador.

“A determinada altura, eu e a minha irmã percebemos que tínhamos mesmo de deixar a Síria porque não nos estávamos a sentir mais seguras. Acordávamos, fazíamos as mesmas coisas vezes sem conta mas não víamos um futuro, não sabíamos se estaríamos seguras quando deixávamos o apartamento, não tínhamos a certeza sequer se iríamos voltar ao final do dia para ver aqueles que quem mais gostávamos. Éramos novas, éramos ingénuas, o que honestamente também ajudou muito na tomada de decisão. Falámos entre nós, falámos com os nossos pais. No início disseram que não, porque era muito perigoso e também caro. Demorou até ao meu pai aceitar mas lá acabou por confiar em nós. Havia muitos, muitos jovens a deixar o nosso país por causa do regime e também fomos. Demorámos 25 dias entre Damasco e a Alemanha mas foi tão simples como isso, já não nos sentíamos seguras no nosso país e tínhamos mesmo de ir embora”, salienta a nadadora.

Há uma série de questões que Yusra já responde quase de forma automática. A insegurança que ia sentindo na Síria, o dia em que a família perdeu a casa, a vida de nadador do pai na Jordânia por receber mais, o dia em que se teve de esconder debaixo da secretária da escola, o perigo que representava a piscina por parecer uma base militar vista de cima. Por outro lado, os 1.001 sentimentos que teve naquelas três horas e meia de luta pela vida, a perceção que encontrou em alguns momentos da viagem de Damasco a Berlim como se a figura de refugiado fosse equivalente a criminoso, o dia em que a afugentaram de um restaurante da Grécia mesmo tendo dinheiro para pagar o que consumia antes de uma rapariga lhe oferecer uns ténis e água. E, numa outra vertente, a recusa que deu a alguns produtores que queriam fazer um filme da sua história ainda antes dos Jogos do Rio-2016 por querer estar concentrada na prova mesmo correndo o risco de ver passar um comboio que poderia não dar uma segunda oportunidade. Hoje, a síria é muito mais do que isso.

Yusra Mardini, que tem um dos projetos da sua Fundação ligado ao COI, irá acompanhar como repórter os Jogos de Paris-2024, com enfoque na equipa de refugiados

Richard Bord

“Aquilo que tive em 2016 foi incrível. Tinha 18 anos, a atenção dos media foi de loucos. Tivemos 300 ou 400 emails numa noite. Foi tudo diferente mas também me ajudou a perceber que ganhar uma medalha seria algo incrível mas que aquilo que tinha de fazer a partir daí era muito maior do que isso. Estive também em Tóquio, onde fui porta-estandarte, e agora terei outro papel em Paris-2024. A Europa é hoje como uma casa para mim, vivo na Alemanha há oito ou nove anos. Costumo ir a Paris na Fashion Week. Estou ansiosa por ver tantos edifícios e marcos históricos com provas olímpicas. Mensagem para as pessoas em relação à equipa de refugiados? Que possam abrir o coração e a mente, vejam como conseguem competir e ouçam as histórias que têm. É isso também que vou estar a fazer: garantir que as pessoas conhecem as suas histórias. Foi o desporto que me permitiu manter a saúde mental no meio de tudo o que vivi. Só porque pertencem a uma equipa de refugiados não quer dizer que tenham perdido os seus sonhos, pelo contrário”, frisa.

Yusra tornou-se a embaixadora mais nova de sempre da UNHRC (Agência da ONU para os Refugiados) e é nessa condição que tem percorrido vários países de quase todos os continentes. Por um lado, é a maior das inspirações para todos. Por outro, consegue que muitas mais histórias ganhem o espaço que em condições diferentes não teriam. No entanto, não fica por aí. E sendo certo que estará em Paris como embaixadora mas também repórter a acompanhar a equipa de refugiados, mantém uma forte ligação com a moda (já desfilou em algumas das maiores passerelles e tem ligação com várias empresas), não perde a ambição de criar a sua própria marca e quer continuar os estudos, não só nesse mundo mas também na indústria do cinema – sem deixar de manter a atividade física, quatro dias por semana e com incursões também pelo pilates.

"Porquê a escolha do cinema? Honestamente, e em termos de estudos, porque sempre quis contar histórias. Eu contei a minha história, felizmente a minha história tornou-se conhecida, mas existem tantas histórias de refugiados por contar ainda, tantas coisas que as pessoas não têm consciência em relação a essas histórias e é incrível ter essa possibilidade."
Yusra Mardini, em entrevista ao Observador

“Estava a pensar nisso outro dia… Vou ser uma mãe orgulhosa, por poder contar aos meus filhos tudo o que fui conseguindo. Vou poder mostrar com orgulho o meu cartão da Universidade da Califórnia do Sul, como eu cheguei lá. Decidi arriscar vários passados que muita gente teria receio de tomar nas suas vidas. Porquê a escolha do cinema? Honestamente, e em termos de estudos, porque sempre quis contar histórias. Eu contei a minha história, felizmente a minha história tornou-se conhecida, mas existem tantas histórias de refugiados por contar ainda, tantas coisas que as pessoas não têm consciência em relação a essas histórias e é incrível ter essa possibilidade. Nem todas são positivas, claro, mas elas existem e se forem contadas podem conseguir fazer a diferença, só precisam de ter atenção e encontrar as pessoas corretas para contar”, refere.

“Tenho esperança de poder trazer à tona essas histórias com a atenção que merecem, por forma a influenciar também a indústria do cinema e demais produções. Moda? Basicamente é uma das coisas que me traz mais alegria, só a possibilidade de poder marcar presença em semanas da moda e perceber como é toda a indústria fashion. Teve um grande significado quando fui convidada a desfilar. A primeira vez que fui modelo foi pela Casablanca, curiosamente em Paris. Foi muito engraçado. Fui também porque existia uma mensagem de paz e para os refugiados, foi incrível. Percebi o poder da moda e como pode influenciar o mundo de uma forma positiva. Depois disso, fiz alguns desfiles para a Boss, conhecida também por ser uma marca inclusiva. Um dia adorava ter a minha própria marca porque é algo de que gosto muito mas também porque me permite ligar às pessoas e retribuir o que fui tendo”, explica na mesma conversa com o Observador.

Yusra Mardini, aqui com a irmã Sarah e o treinador Sven Spannekrebs, durante o Festival Internacional de Cinema de Toronto em 2022

Por fim, um outro sonho entretanto realizado: a Fundação Yusra Mardini. “Tive a sorte de poder competir em dois Jogos Olímpicos e ver um filme da minha história ser feito, o que é raro. Percebi que isso me deu uma plataforma para poder retribuir e ajudar todos os refugiados no mundo. Pensei naquilo que mais me ajudou e isso entronca na educação e no desporto. Foi por isso que decidi lançar a Fundação com o meu treinador, o Sven. Estamos nesta altura com três projetos nesse sentido, um deles com o Comité Olímpico Internacional. É um projeto de reinstalação, onde os atletas refugiados com bolsas são realojados onde vivem. Alguns deles vão aos Jogos e depois regressam aos campos. Poucas pessoas sabem mas nem todas vivem em países desenvolvidos. Por vezes fogem do Sudão para o Quénia e o Quénia tem o maior campo de refugiados do mundo. Assim, alguns deles competem e depois voltam para o acampamento. O nosso objetivo é realojar os atletas e dar-lhes a oportunidade de obter uma nova cidadania noutras condições”, explica.

“Há uma universidade canadiana e a Refuge Foundation, estamos a trabalhar neste projeto de reinstalação de atletas. Temos outros dois projetos – um deles é ensinar os refugiados a nadar em Lesbos, a ilha onde cheguei vindo da Turquia, e vou voltar pela primeira vez este verão por causa do projeto, e também em Atenas. O nosso terceiro projeto será ensinar os refugiados a nadar em França. Isto também está de acordo com os Jogos Olímpicos, faz muito sentido. Estamos ainda em fase de desenvolvimento, temos uma base pequena mas estamos no bom caminho”, acrescenta a esse propósito Yusra Mardini, que esteve também nos últimos dias a preparar o trabalho de cobertura que terá em Paris-2024 junto da equipa de refugiados e que pode abrir outras portas para novos projetos pessoais e profissionais no futuro de alguém para quem não há impossíveis e que continua a funcionar como símbolo e exemplo para milhões de pessoas por todo o mundo.

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