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A cidade de Cartum, capital do Sudão, durante a guerra civil sudanesa no dia 19 de abril

Anadolu Agency via Getty Images

A cidade de Cartum, capital do Sudão, durante a guerra civil sudanesa no dia 19 de abril

Anadolu Agency via Getty Images

"Um homem manteve uma arma apontada na nossa direção." O relato de um português que esteve retido no Sudão durante 12 dias

João Soares esteve 12 dias no Sudão, 10 deles em plena guerra civil. Dos momentos tensos com as mílicias armadas às tentativas de evacuação falhadas, o português contou tudo à rádio Observador.

No dia 15 de abril, o Sudão despertou para uma guerra civil. O país tem assistido desde então a violentos conflitos entre as forças do general Abdel Fattah al-Burhan, líder de facto do país desde o golpe de Estado de 2021 , e um ex-adjunto que se tornou um rival, o general Mohamed Hamdan Dagalo, que comanda o grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês). Vários países realizaram já operações de evacuação dos seus cidadãos e Portugal não foi exceção – ainda que com a ajuda de países terceiros.

O português João Soares (41 anos) esteve 12 dias no Sudão, 10 deles em pleno conflito. Chegou a 12 e, três dias depois, o técnico de comunicações de Matosinhos abrigou-se com outras pessoas num hotel da capital do país, Cartum. Esta terça-feira, dia 25 de abril, regressou a Portugal.

Ao Observador, João explicou como se protegeu, conseguiu evitar os conflitos e que obstáculos teve de enfrentar até voltar a pisar solo português.

João Soares esteve 12 dias no Sudão. “Vi explosões a 50 metros”

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Como é que estão a ser estas primeiras 24 horas de regresso?
O regresso foi bastante intenso. Quando cheguei ao aeroporto não informei ninguém da hora da chegada porque não queria que estivessem à minha espera. Foi muito bom regressar a Portugal e para junto da minha família.

Chegou a Portugal, não avisou ninguém, foi para casa… Como é que foi esse momento de reencontro?
Primeiro, fui a casa e estive com a minha namorada. Depois, fui visitar a minha irmã, juntámo-nos todos e fomos à casa dos meus pais. Aí foi um momento mais forte: a minha mãe sofreu bastante com a minha presença no Sudão e estávamos todos reunidos para tentar atenuar aquele primeiro impacto.

Conseguiu falar com a família enquanto esteve no Sudão. Como é que esse contacto era feito?
Nos primeiros dias, sim, estive sempre em contacto. Apesar de termos ficado sem eletricidade, tínhamos um gerador a diesel que conseguíamos utilizar durante duas a três horas por dia, principalmente para carregar os telemóveis e mantermos as comunicações. O contacto com a minha família era sempre feito pelo WhatsApp, videochamada quando possível ou muitas mensagens. A partir do quinto dia, as comunicações por dados foram todas desligadas e fiquei sem poder falar com a minha família. Deixei de ter updates daquilo que se estava a passar ou daquilo que era comunicado fora do país. Foram os momentos mais difíceis pois gostava que a minha família soubesse que eu estava bem e isso não era possível.

Hoje terá uma primeira de noite de descanso depois de todos esses dias.
Sim! Acabei por ficar a dormir em Itália, mas também só dormi três horas porque regressei ao hotel por volta da 1h da manhã e, para apanhar o voo para Lisboa, saí de lá às 4 horas. Pouco descansei. Hoje [esta quarta-feira], quando acordei, reparei no silêncio e na calma, e foi uma sensação boa, de alívio.

O que é que quis fazer hoje (quarta-feira), neste primeiro dia de regresso depois de todo este conflito?
Primeiro, dei um beijo de bom dia à minha namorada. Depois, tomei um banho e fui tomar o pequeno-almoço com os meus pais.

O que é que o levou para o Sudão?
Eu trabalho com comunicações, mais concretamente com cabos de fibra ótica submarinos. Tinha uma operação a ser feita em Porto Sudão e entrei no país por Cartum, onde estava a aguardar as formalidades necessárias para chegar ao destino final. Entretanto esperava, rebentou a guerra. Cheguei no dia 12, penso que tenha sido quarta-feira, e os conflitos começaram no sábado.

Conseguiu-se ver as explosões e o fumo. Mantivemo-nos dentro do hotel em relativa segurança, de modo a não chamar muito a atenção. O estabelecimento passava despercebido, por isso estávamos relativamente seguros. Fechámos as portas e foi toda a gente para dentro.

Nesses primeiros dias já sentia alguma tensão?
Sim. Quando cheguei foram buscar-me ao aeroporto e deixaram-me num primeiro hotel para passar a primeira noite. Não tinha autorização para me deslocar e tinha de ficar a aguardar que as formalidades ficassem prontas para viajar para o Porto Sudão. Após esta primeira noite, recebi um relatório que apontava para possibilidade de conflito e blackout nas comunicações. Aí, tomei a decisão de mudar de hotel para um outro onde estavam mais cinco colegas, também eles pertencentes ao projeto. Consegui arranjar, com a ajuda do sítio onde estava, um táxi que me levou, com a segurança possível, para o hotel onde onde fiquei até ser extraído do país.

Nessa altura, visto que já se viviam momentos de tensão, não esteve nunca em cima da mesa a possibilidade de abandonar o país?
Não, porque a nossa intenção era que tudo estivesse pronto e, desse modo, irmos para Porto Sudão. Havia uma possibilidade de conflito, mas a informação que tínhamos era que a situação não iria escalar da maneira que escalou. Perante a possibilidade de confrontos, não queriam que saíssemos do hotel e queriam que estivéssemos relativamente prontos para ser evacuados em caso de emergência e nós mantivemos sempre o estado de alerta.

Falou com a sua família sobre a possibilidade de rebentar um conflito no país?
Não costumo falar muito do trabalho com a minha família. Viajo com alguma regularidade para países africanos e mantenho-me sempre em segurança, tento tomar as precauções devidas, mas não quis alarmar de forma alguma a minha família, também porque não sabia bem o que iria acontecer.

Quanto tempo iria ficar no Sudão?

Seria um projeto para talvez quatro semanas no máximo. Tinha ideia de viajar por volta do dia 7 ou 8 de maio, penso que seria a data no plano de trabalho.

O conflito começa de forma mais intensa no dia 15 de abril. Como percebeu que aquilo que se estava a passar era mais grave do que a tensão dos dias anteriores?
Por volta das oito e meia de sábado, apercebemo-nos do início dos conflitos ao ouvir explosões e tiroteios, com o barulho das metralhadoras. Começou de uma forma bastante abrupta e, a partir desse momento, conseguimos perceber que estávamos efetivamente numa situação de perigo – tudo aquilo que fora descrito como uma possibilidade estava de facto a acontecer. Mantivemo-nos sempre dentro do hotel, que ficava aproximadamente a dois quilómetros da zona de maior conflito. Ainda assim, ouvia-se tudo e era possível ver as explosões e o fumo. Procurámos não chamar muito a atenção. O meu grupo era constituído por mim e mais cinco gregos. O hotel fechou e tivemos a preocupação de verificar os mantimentos existentes. Tínhamos a expetativa de que o conflito demorasse dois ou três dias e depois acalmasse. Falava-se que no final do Ramadão as coisas iriam acalmar, mas tal não aconteceu.

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Veículos das milícias paramilitares destruídos na capital do Sudão

Anadolu Agency via Getty Images

Além desse grupo, havia funcionários do hotel?
Sim porque havia cinco ou seis que não eram de Cartum e, consequentemente, não se podiam deslocar – acabaram todos por dormir no hotel e comer lá. Felizmente tivemos sempre comida e água, a pior parte foi quando ficámos sem eletricidade e perdemos as comunicações. Penso que a eletricidade foi cortada no hotel logo no final do primeiro dia. Depois, cortaram em toda a Cartum. A nossa preocupação era em relação ao diesel para o gerador. Com a ajuda dos locais, conseguimos comprar no mercado negro, pagámos dezoito dólares por um galão, ou seja, aproximadamente quatro litros, e fomos gerindo. Normalmente, ligávamos das três às cinco da tarde. Na verdade, desligávamos o gerador antes de anoitecer também para não chamar a atenção.

Contou logo à sua família o início do conflito?
Sim, não dava para esconder porque surgiu nas notícias, a minha família sabia que eu estava no Sudão. Na verdade, foi até noticiado que não havia portugueses no país e alertaram-me para essa essa informação que eles sabiam errada. Tentei e consegui entrar em contacto com o gabinete de emergência consular pelo WhatsApp. Eles responderam-me, reencaminharam-me para o cônsul de Portugal no Sudão e, entretanto, recebi também um contacto por parte da embaixada de Portugal no Egito. Isto já terá sido no terceiro dia.

Foi a sua família que o contactou para saber se estava tudo bem?
Basicamente, sim. Eu não queria preocupar ninguém, só queria que a minha família soubesse que estava bem. Tenho ideia que foi a partir do terceiro dia, quando dou uma entrevista para a RTP, que os contactos com Portugal se intensificaram. Muitos contactos por WhatsApp, muitas chamadas, muitas mensagens no Instagram… e a partir desse momento começa a aparecer mais informação da guerra no Sudão em Portugal. Por norma, tenho ideia que as pessoas nem fazem ideia de onde será o Sudão. É um país fora da comunidade europeia, tem alguns portugueses, mas esta comunicação com os media foi fundamental para mim. Fui sempre apoiado pelo cônsul e também pela embaixada portuguesa no Egito.

Nesse primeiro contacto que teve com os diplomatas portugueses, o que é que lhe foi transmitido?
A partir do momento que estabelecemos contacto, foi criado um grupo no Whatsapp comigo, outros expatriados e elementos da embaixada de Portugal no Egito. Iam-nos dando um update, foram sempre bastante comunicativos. O que aconteceu é que, apesar da comunicação, a informação não era clara. Era “vamos aguardar” e “mantenham-se em segurança”. Nessa altura, ainda conseguíamos ter acesso às notícias e falava-se no cessar fogo, que as coisas estavam a acalmar, mas quem estava a viver a situação no local sabia que isso não correspondia à verdade. O prédio onde estava foi alvejado muitas vezes, nós sentíamos explosões muito próximas, algumas a 50-100 metros. O edifício abanava todo, sentia-se perfeitamente. Era importante revelarmos que aquilo que estava a ser difundido não correspondia à realidade pois, apesar de haver sempre contacto com as entidades, a informação disponível levava a que não estivesse a ser apresentado nenhum plano. Dada a situação, notava-se alguma ansiedade no seio do grupo.

Falava-me há pouco de terem que ir buscar gasolina. Tiveram de sair do hotel onde estavam…
O meu grupo nunca saiu do hotel, foram sempre os funcionários que conseguiam ter mais acesso — e de uma forma mais segura — a todos os recursos necessários. No grupo de Whatsapp, as pessoas iam partilhando as suas experiências, muitas das imagens difundidas também foram realizadas por mim, porque estávamos a ver tudo em direto. Eu estava numa zona dominada pelos paramilitares e via com regularidade as movimentações das tropas.

Era o que havia. Era frango com arroz e massa com frango, e era dentro disso. Não tínhamos acesso a fruta. Havia água, coca-cola e fanta de laranja

 Como é que ocupava estes dias em que, acredito, tenha dormido pouco?
Sim, tive bastante privação do sono porque à noite acabávamos por estar muito alerta. Primeiro, pelo barulho provocado por todos os disparos e explosões. Depois, porque havia a informação de que os paramilitares estavam a invadir alguns edifícios e não sabíamos se estávamos em perigo ou não. Durante o dia, conversávamos, às vezes íamos para o terraço escondidos para tentar perceber o que estava a acontecer… Enquanto tive internet, pedi a um amigo para me enviar uns uns livros para me entreter. Comuniquei sempre com os meus familiares e amigos, tive muito apoio de todas as formas e feitios. Era assim.

Como era a vossa alimentação? Havia muita variedade?
Basicamente, era frango com arroz e massa com frango. Não tínhamos acesso a fruta. Havia água, coca-cola e fanta de laranja. Quem cozinhava eram os funcionários do hotel e nós, às vezes, dávamos alguma indicação dentro do possível, pedíamos algo específico para não ser sempre igual.

A relação com o pessoal do hotel era boa?
Fomos sempre apoiados por eles. Eu gostava sempre de perguntar como é que estava a família deles, se estava a correr tudo bem, se estavam seguros e acabámos por criar ali uma certa relação. Passávamos todas as horas do dia juntos.

E os funcionários do hotel continuaram no Sudão?
Sim. Um dos funcionários do hotel era do Sudão do Sul. Consegui trocar umas mensagens com ele hoje de manhã e ele disse-me que tinha sido contactado pela embaixada dele para ser removido para o país de origem. Os restantes ficaram, são cidadãos sudaneses e não sei se há planos para os retirar. Mas deviam sair de lá o mais rápido possível.

Quando é que teve a informação de que poderiam ser retirados, que iam dar início a esse processo?
A primeira tentativa de evacuação surge no domingo de manhã. Recebi uma chamada às dez e meia da manhã, a dizer que tínhamos que ir para a embaixada francesa até ao meio dia. Já estávamos preparados, tínhamos uma mochila cada um, e tentámos de várias formas arranjar quem nos levasse para a embaixada francesa. Não conseguimos qualquer tipo de transporte, ninguém nos queria levar porque fica em Al Amarate, uma zona muito perigosa. Perdemos essa janela de oportunidade.

O que se seguiu?
Em contacto com o cônsul, foi criada mais uma janela ao final do dia. Já tínhamos arranjado uma pessoa que nos poderia levar. Porém, como esta informação chegou ao anoitecer, o motorista disse que não saía do hotel sem luz do dia, por causa da segurança, pelo que voltámos a perder essa janela de oportunidade. Nessa noite, ou seja, de domingo para segunda, o cônsul liga e manda-me estar preparado com os restantes colegas às quatro da manhã, que iria enviar um carro com um motorista. A essa hora estávamos todos prontos. Chegou um carro diplomático, com um motorista do cônsul, que foi a falar caminho quase durante o caminho todo. Fomos parados aproximadamente trinta vezes, em checkpoints. De manhã estive a confirmar a distância exata até ao local onde fomos evacuados: demorámos duas horas a fazer 34 quilómetros. Íamos com o carro a baixa velocidade, as janelas todas abertas, e éramos sete: eu, os cinco gregos e o motorista.

O que é que acontecia nesses checkpoints?
Nós estávamos numa zona paramilitar, estávamos sempre a falar com milícias armadas. A primeira paragem correu bem, éramos expatriados, podíamos continuar. A segunda paragem foi parecida, mas a terceira foi mais complicada. Fomos mandados parar com armas apontadas, mandaram desligar o carro, tudo em árabe. Deram instruções ao nosso motorista para sair do carro e levaram-no para cerca de uns 50 metros de distância, enquanto um homem mantinha uma arma apontada na nossa direção. Mantivemos a calma, por gestos demos a indicação para baixar a arma, que não havia necessidade mas ele ignorou. Mais tarde, um dos meus colegas disse-me que o nosso motorista foi agredido. Regressou ao carro, abriu a mala do carro, viram as nossas mochilas e mandaram-nos seguir caminho. Fomos parados várias vezes pelos paramilitares e conseguimos entrar na zona dos militares em segurança.

Como descreve o que foi vendo? E o que foi sentindo?
No caminho, era um bairro de lata de grandes dimensões, havia muito lixo a ser queimado, era um cheiro horrível. Havia casas e carros destruídos, um cenário de guerra basicamente. Nos primeiros checkpoints, senti grande tensão por parte dos paramilitares. Mas, conforme fomos entrando mais para a zona militar, notava-se uma abordagem completamente diferente já nos saudavam, já sorriam para nós. Nesse momento, víamos tanques e artilharia pesada. Continuámos o nosso caminho até uma base aérea e quando lá chegámos fomos identificados. A partir daí, percebemos que estávamos seguros, confortáveis e que íamos voltar para casa.

João Soares no Sudão

João Soares no aeroporto de Cartum

Imagem cedida ao Observador por João Soares

Esse foi o momento mais tenso de toda esta situação?
Foi um dos momentos mais tensos, sim. Nós, apesar das explosões e dos tiros, estávamos relativamente protegidos. No entanto, durante a viagem, a exposição era completamente diferente, estávamos muito mais vulneráveis, mas tentámos manter a calma dentro do possível. Antes de entrarmos para o carro, falei com os meus colegas e pedi para tirarem relógios, esconderem os telemóveis — tudo o que pudesse chamar a atenção era para esconder, para não criar nenhum tipo de oportunidade mais indesejada.

Mas o João estava em contacto com o cônsul ao longo da viagem. Escondia o telefone quando paravam?
Eu tinha o telemóvel em alta voz. Quando nos aproximávamos dos checkpoints, colocava-o de forma a que ninguém pudesse ver, principalmente a luz do aparelho. O motorista também tinha um telemóvel, mas daqueles rudimentares que ninguém ia querer roubar, e volta e meia o cônsul também ligava para ver se estava tudo bem e se estávamos em segurança. O cônsul foi a peça fundamental para a nossa retirada.

O grupo grego também estavam em contacto com diplomatas do seu país?
Estava, mas só mais tarde é que conseguimos ter uma perceção do que estava a acontecer. As três embaixadas por onde estava a passar quase toda a evacuação eram as embaixadas francesa, italiana e espanhola. Para nós, era uma situação complicada por não conseguíamos deslocar-nos até às mesmas. Quando eu falei com o cônsul, já no final do dia, ele estava preocupado porque que nós já tínhamos falhado todos os planos de evacuação que podíamos ter apanhado. “Eu vou ver o que é que eu consigo fazer, mantenham a calma que eu volto a entrar em contacto”, disse-me o cônsul. Depois, conseguiu elaborar este plano. Os gregos estavam em contacto com a sua embaixada e a indicação que tinham era para se deslocarem para a embaixada francesa, mas uma das vezes disseram-lhes mesmo para ficarem onde estavam se estivessem em segurança porque não havia lugar para eles naquele momento. Percebi, então, todo o esforço colocado neste plano de fuga personalizado que o cônsul conseguiu criar para nós.

Estiveram quase 12 dias neste hotel sem ninguém entrar ou sair. Houve algum momento de maior preocupação em que alguém estivesse a tentar entrar no hotel ou que sentissem explosões mais próximas?
Depois do segundo anúncio de cessar-fogo — porque nenhum foi cumprido –, o que aconteceu foi que as forças paramilitares se mobilizaram-se também para a zona onde estávamos e tinham antiaéreas relativamente perto. Essa era a nossa preocupação: conseguíamos ver os ataques dos caças do Sudão às zonas de conflito e, cada vez que eles faziam uma passagem, aquilo era uma limpeza numa área relativamente grande. Nós tínhamos esperança de estar fora dessa área que era um alvo e, quando eles começaram a recuar, já ficámos em zona de fogo cruzado. Tivemos algumas situações em que as caravanas paramilitares pararam mesmo à nossa frente. Nós estávamos sempre à espreita, esperávamos para ver o que se ia passar, se iam ou não entrar, o que é que íamos fazer, e esses momentos foram de grande nervosismo.

A saída aconteceu na segunda-feira de manhã. Falou com a sua família antes da fuga?
Não, porque não conseguia. Conseguimos uma pequena ligação por hotspot durante 30 minutos no dia anterior. A minha preocupação era dizer que estávamos todos bem, que já estava a ser contactado e já existiam esforços para a nossa evacuação e que assim que possível eu dizia alguma coisa. Foi a mensagem transmitida por mim e pelos colegas.

E quando é que foi esse “logo que possível”?
Quando eu falei com a minha família já estava em Djibuti.

O que é que encontraram no aeroporto, quanto tempo é que estiveram lá à espera de apanhar esse voo para Djibuti?
Quando chegámos ao aeroporto, estavam lá as forças internacionais, o que nos deixou bastante contentes. Tinham muita artilharia pesada, forças especiais, e nós éramos os únicos civis naquela área. A informação que eu tinha é que o nosso voo iria sair para Djibuti às sete horas da manhã. Entretanto, chegou um avião militar, as forças italianas entraram todas no aparelho e eu fui falar com um militar e disse-lhe que tinha informação de que seria evacuado para Djibuti. O militar perguntou-me quantos éramos, se estávamos armados, depois revistaram-nos e fomos autorizados a entrar no avião. Era uma aeronave militar, os bancos eram daqueles de rede nas laterais do avião, e fomos os seis em conjunto com as forças especiais. Até ao Djibuti penso que demorámos duas horas.

E o motorista que vos transportou para o aeroporto era sudanês?
Esse senhor foi o verdadeiro herói, porque tinha noção do perigo que iria correr e mesmo assim aceitou levar-nos. Entretanto, quando cheguei à base, veio um senhor da embaixada francesa falar comigo. Perguntou de onde tínhamos vindo e como o tínhamos feito. Quando lhe disse, ficou bastante surpreendido, perguntou quem é que nos ajudou e eu disse que tinha sido o cônsul de Portugal. Entrou em contacto com o cônsul e contou que também tinha uma pessoa barricada numa posição intermédia que precisava de ser evacuada. Sei que o cônsul se disponibilizou para ajudar. Foi buscar mais esse membro e ainda conseguiu colaborar com o resgate de mais duas pessoas, um francês e um senegalês que estavam inseridos no mesmo projeto que nós.

Tudo o mesmo motorista, que continua no Sudão…
Sim, tudo o mesmo motorista que continua no Sudão. Era muito difícil contactar com quem quer que fosse porque a língua era um entrave.

Do Djibuti foi para onde?
No Djibuti, foram-me colocadas duas opções pelo representante de Portugal no país: ficar até quinta-feira e esperar por um voo da Air France para Paris ou então ser transportado para a Etiópia logo que possível. No entanto, encontrei-me com um dos militares italianos que nos tinham dado “boleia”, pedi autorização para realizar a viagem com eles para Roma e foi aceite sem problema nenhum. Acabei por fazer essa viagem num avião de resgate militar em conjunto com os cidadãos italianos presentes no Sudão. Os colegas gregos foram apoiados pelo representante da embaixada grega, mas não lhe sei dizer qual foi o itinerário que fizeram. Sei que já estão em casa. Eu cheguei ao Porto por volta das 10hoo e eles chegaram à Grécia por volta das 07h00.

Como é que foi o momento de despedida no Djibuti?
Foi bastante simples porque são colegas com quem eu tenho uma relação, já trabalhei com  eles em vários projetos. Nesse momento, o sentido de humor já abundava, a alegria já estava em níveis completamente diferentes, foi uma despedida feliz.

E comunicou com a sua família em Djibuti?
Sim, de imediato. Quando chegámos a Djibuti, tínhamos acesso à internet por um canal militar que utilizámos. Liguei para a minha família a dizer que estava tudo bem,que estava em segurança e para não se preocuparem que eu iria ter a casa.

E do outro lado, a surpresa?
Toda a gente ficou mais aliviada, porque um dos momentos mais perigosos que iríamos passar seria a extração do hotel. A minha família ficou naturalmente bastante contente e eu também fiquei mais aliviado por poder partilhar essa notícia com a minha família. Já foi dia 24 de manhã.

Às quatro da manhã levantei-me e fui para o aeroporto, uma realidade completamente diferente, as pessoas não tinham ideia daquilo que eu tinha acabado de passar, e já não se falava na guerra do Sudão, aquilo não existia.

Chegou a Roma e ainda passou um dia na capital italiana….
Sim, porque à hora a que eu cheguei já não conseguia ter voos de regresso. Fui recebido também pelo representante da embaixada no aeroporto, que me ajudou-me tudo – hotel, voo, transporte. Conversámos um pouco e, se calhar, já era uma da manhã quando adormeci. Às quatro da manhã, levantei-me e fui para o aeroporto, uma realidade completamente diferente — as pessoas não tinham ideia daquilo que eu tinha acabado de passar e já não se falava na guerra do Sudão, aquilo não existia. De Roma fui para Lisboa e daí para o Porto. Em Roma, liguei para a minha família e expliquei que estava já no hotel. Só tinha conseguido dormir uma hora e meia ou duas na noite do resgate. Dormir bem, de facto, foi apenas de ontem para hoje. Cheguei ontem às 10h00, passei o dia com a minha família e agora as coisas já estão a voltar à normalidade felizmente.

Tem notícias dos outros portugueses do grupo de WhatsApp?
No final, apurou-se um total de 22 portugueses, sendo a maioria de pessoas com dupla nacionalidade, e ainda não chegaram todos a casa mas já saíram quase todos do Sudão. Ainda há muita gente em trânsito. Há um português que não saiu do Sudão, que se manteve lá, que estava em trabalho humanitário e queria manter-se no país a ajudar as pessoas.

Começou o período de retirada no domingo, dia 23, e chegou terça-feira, dia 25 de abril, a Portugal. Durante todo este período, e já contando também esta quarta-feira, quando é que se sentiu finalmente seguro?
Durante o trajeto para a base, quando passámos a zona das milícias paramilitares e entrámos na zona militar, a partir do segundo ou terceiro checkpoint, já toda a gente fazia piadas, já respirávamos melhor, já estávamos mais aliviados, sem dúvida. Esse foi o momento.

Agora que está em casa, em segurança e com a família, o que é que vai fazer nos próximos dias?
Aproveitei de manhã para ir cortar o cabelo e fazer a barba, que estava efetivamente com mau aspeto, e estou a aproveitar para passar mais tempo com a minha família e descansar. Trabalho como freelancer, já estive em contacto com a empresa. Mandaram-me descansar, se precisar de algum tipo de apoio está tudo disponível.

Esta foi a situação mais tensa que viveu em toda a sua vida?
Sim, sem dúvida. Não há nada que se possa comparar. Já estive em locais difíceis, como o Congo e a Nigéria, mas em cenário de guerra gostava de não repetir.

Vai continuar a trabalhar no estrangeiro?
Sim, sem dúvida.

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