São 9.800 quilómetros de distância até Roma: o antigo secretário particular do Papa Bento XVI, o arcebispo alemão Georg Gänswein, que depois da renúncia de Ratzinger entrou em rota de colisão com o Papa Francisco, poderá ser enviado para a Costa Rica como embaixador da Santa Sé. Uma transferência que, a confirmarem-se as informações preliminares que já começaram a circular nos meios eclesiásticos, poderá ser entendida como um exílio para Gänswein. Com a morte de Bento XVI, o arcebispo tornou-se um real incómodo para o Papa Francisco no Vaticano.
A informação surgiu inicialmente na terça-feira no portal de informação religiosa espanhol Religión Digital, um dos mais reputados meios de comunicação mundiais dedicados à Igreja Católica.
No entanto, a especulação sobre o destino de Gänswein já se arrastava praticamente desde a morte de Bento XVI, em 31 de dezembro de 2022, e intensificou-se em meados de janeiro, depois de o antigo secretário particular de Ratzinger ter publicado um polémico livro que se abateu com estrondo sobre o Vaticano, ao revelar a existência de uma relação tensa entre os dois papas, que ao longo da última década conviveram de modo aparentemente civilizado no Vaticano.
No livro, Gänswein, que durante quase três décadas foi o secretário de Ratzinger, quer como cardeal quer como Papa, dá conta de um clima de desconfiança entre Bento XVI e Francisco, dos erros que Ratzinger apontou ao sucessor (incluindo na limitação das missas em latim) e do modo como Francisco afastou Gänswein das suas funções no Vaticano, remetendo-o apenas para o cargo de cuidador de Bento XVI.
Logo em 9 de janeiro deste ano, poucos dias antes de o livro ver a luz do dia, o Papa Francisco reuniu-se em privado com Gänswein no Vaticano — uma reunião sobre a qual nada se sabe, a não ser a sua mera referência na agenda oficial do Papa, e que alimentou a especulação em torno da possibilidade de Gänswein ser enviado para longe de Roma.
É que, com o livro publicado este ano, o arcebispo alemão transformou-se abertamente naquilo que já se admitia que pudesse vir a ser: um novo pólo em torno do qual gravitam os bispos e cardeais mais tradicionalistas, descontentes com o rumo que Francisco tem imprimido à Igreja Católica. Aliás, Gänswein tem mesmo sido apontado como a personagem que, num próximo conclave, será a figura-chave para organizar, nos bastidores, uma campanha destinada a eleger um cardeal da ala conservadora como sucessor de Francisco, angariando os votos dos mais descontentes.
Desde a morte de Bento XVI, o futuro de Gänswein tem sido uma incógnita. Sabia-se que já tinha saído do Mosteiro Mater Ecclesiae, o convento nos jardins do Vaticano onde viveu com Ratzinger até ao último dia, para se mudar para um apartamento dentro do Vaticano — tornando-se, assim, no primeiro oficial de alto nível da Cúria Romana a pagar uma renda para viver dentro do Estado da Cidade do Vaticano, ao abrigo de uma nova lei aprovada recentemente pelo Papa Francisco para acabar com esses privilégios para os cardeais e outros altos funcionários da Santa Sé.
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Agora, segundo noticia o Religión Digital citando “fontes eclesiásticas”, Georg Gänswein deverá ser nomeado, nas próximas semanas, como núncio apostólico na Costa Rica, ou seja, embaixador da Santa Sé naquele país. A Santa Sé até já terá pedido às autoridades da Costa Rica o placet — ou seja, a autorização formal para que Gänswein seja nomeado para o cargo. O portal de notícias explica ainda que, caso seja cumprido o protocolo diplomático de não haver resposta formal a este pedido, considera-se que há uma aprovação tácita do nome de Gänswein e a Santa Sé poderá depois fazer o anúncio formal.
De acordo com o Religión Digital, a Costa Rica é conhecida no meio eclesiástico como uma “nunciatura de descanso”, ou seja, uma espécie de prateleira dourada onde um determinado clérigo pode ser colocado sem que sobre ele recaia uma carga de trabalho excecionalmente complexa. Um dos principais motivos é o facto de a Constituição costa-riquenha determinar que a Igreja Católica é a religião oficial do Estado, pelo que as relações formais entre o Estado e a Igreja são particularmente fáceis.
Por outro lado, o atual núncio apostólico na Costa Rica, o arcebispo italiano Bruno Musarò, completa no próximo mês de junho 75 anos de idade, ou seja, a idade na qual é suposto os bispos e cardeais pedirem ao Papa a renúncia aos seus cargos. Musarò já terá, inclusivamente, pedido ao Papa Francisco que torne efetiva a sua reforma após completar 75 anos.
Se a ida de Gänswein para a Costa Rica se concretizar, o seu principal desafio poderá ser o de fazer a ponte entre o Vaticano e uma Igreja que tem estado particularmente submergida na crise dos abusos sexuais de menores, sobretudo no que toca ao caso concreto do ex-padre Mauricio Víquez, que já tinha sido expulso do sacerdócio devido a casos de abuso e que foi condenado no ano passado a 20 anos de prisão. Na sequência do caso, a justiça costa-riquenha também condenou a arquidiocese de San José e a Conferência Episcopal da Costa Rica a pagar 100 mil dólares de indemnização à vítima pelo encobrimento do caso.
“Uma espécie de exílio”
A confirmar-se, a nomeação de Georg Gänswein para o cargo de embaixador da Santa Sé na Costa Rica será uma forma de exílio para o antigo secretário de Bento XVI — e, na prática, um regresso a uma tradição antiga de afastar de Roma os membros mais próximos do pontífice anterior.
“Se a nomeação for formalizada, provavelmente vai ser vista como uma espécie de exílio para Gänswein, de 66 anos, que se tornou num herói para os católicos críticos do Papa Francisco depois de um livro e de uma série de entrevistas que deu depois da morte de Bento XVI a sublinhar as diferenças entre ele e o seu sucessor”, escreveu esta semana o vaticanista John L. Allen Jr., editor do jornal Crux e conceituado analista da política vaticana.
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Allen sublinha, contudo, que a tradição do Vaticano tem sido a de enviar para fora de Roma os antigos secretários papais. “A prática do passado indica que, quando um Papa morre, o seu padre secretário, que inevitavelmente vai ser visto como um símbolo da anterior administração, é enviado para qualquer lugar que não Roma”, considera.
O vaticanista dá o exemplo dos últimos secretários, incluindo o de Loris Capovilla, secretário de João XXIII, e o de Pasquale Macchi, secretário de Paulo VI, que foram enviados para diferentes comunidades religiosas em Itália depois da morte dos respetivos pontífices. Outro exemplo célebre é o de Stanislaw Dziwisz, conhecido secretário de João Paulo II, que acompanhou o Papa polaco até ao final da sua vida, e que foi elevado por Bento XVI a cardeal e colocado como arcebispo de Cracóvia — a cidade-natal de João Paulo II —, onde ainda vive e dedica a sua atividade à promoção do legado do Papa polaco.
Neste sentido, Georg Gänswein tem sido uma exceção, uma vez que há dez anos vivia no Vaticano e mantinha um cargo na Cúria Romana, como prefeito da Casa Pontifícia, “uma situação relacionada com a anomalia ainda maior de ter um pontífice reformado ainda a viver no território do Vaticano”, considera Allen.
Desde que o Religión Digital publicou a primeira notícia sobre a possibilidade de Gänswein ser enviado para a Costa Rica, o Vaticano não se pronunciou oficialmente sobre o assunto. No portal de notícias do Vaticano, há apenas referências à atual atividade de Gänswein como executor do testamento de Bento XVI: o arcebispo anda à procura dos primos de Ratzinger para tratar do destino de alguns elementos da herança do antigo Papa. Ainda assim, à delegação alemã da Agência Católica de Informação, fontes eclesiásticas terão dito que a notícia avançada pelo portal espanhol não é mais do que especulação.
O George Clooney do Vaticano
Nascido em 1956 na região da Floresta Negra, no sul da Alemanha, Georg Gänswein é neste momento a figura da hierarquia do Vaticano mais intimamente ligada ao pontificado de Bento XVI. Tornou-se uma espécie de pop star eclesiástica devido ao seu aspeto físico, que lhe valeu alcunhas como “George Clooney do Vaticano”, “Bel Giorgio” e “Gorgeous Georg”.
Gänswein é, essencialmente, conhecido por ter sido o homem que durante quase trinta anos permaneceu ao lado de Ratzinger. Os dois conheceram-se em 1995, numa altura em que o cardeal Joseph Ratzinger era já o poderoso prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e o jovem padre Gänswein chegara a Roma havia dois anos em busca de uma carreira eclesiástica na Cúria Romana.
Foi a nacionalidade que os juntou: o primeiro contacto foi uma conversa de circunstância no Colégio Alemão de Roma, onde Gänswein vivia. Ratzinger apercebeu-se do talento de Gänswein e foi buscá-lo para se juntar à sua equipa na Congregação para a Doutrina da Fé. Em pouco tempo, o jovem padre viria a destacar-se dentro da instituição, herdeira da Inquisição, que preservou até aos dias de hoje a missão de zelar pela manutenção dos princípios da fé.
Em 2003, o cardeal Ratzinger convidou o padre Gänswein para o lugar de secretário particular, cargo que viria a ocupar até à morte de Bento XVI. O padre foi um simples secretário de cardeal durante apenas dois anos, já que, em 2005, Ratzinger foi eleito para suceder a João Paulo II no trono de São Pedro. Quando o chefe se mudou para o palácio apostólico, Gänswein manteve-se como seu secretário — e, durante o pontificado, Gänswein foi o fiel secretário e assistente de Bento XVI, o homem por quem todos tinham de passar para chegar ao líder da Igreja Católica.
Foi Gänswein quem, em fevereiro de 2013, em lágrimas, fechou as luzes do gabinete de Bento XVI pela última vez antes de os dois embarcarem no helicóptero que os levou à residência de verão do Papa e de a sé apostólica ficar oficialmente vaga, na sequência da renúncia histórica de Bento XVI.
Durante a década seguinte, Gänswein manteve-se ao lado de Bento XVI, como secretário particular do Papa emérito — retirado para o sossego do Mosteiro Mater Ecclesiae, nos jardins do Vaticano —, mas manteve também o cargo que ocupava na Cúria Romana, o de prefeito da Casa Pontifícia de Francisco. Nestas funções, que podem ser comparadas ao chefe da Casa Civil de um Presidente, Gänswein era responsável pela equipa incumbida de coordenar as audiências, reuniões e outros compromissos do Papa Francisco dentro do Vaticano, bem como as deslocações do Papa dentro de Itália.
Mas a nomeação de Gänswein para aquele cargo foi lida, sobretudo, no contexto da situação inédita que se vivia na cúpula eclesiástica: a de ter dois papas vivos, a viver no território do Vaticano, ainda para mais situados em campos de pensamento teológico aparentemente muito distantes. A manutenção de uma figura de referência como Gänswein a servir de ponte entre os dois papas foi fundamental para passar para o público a imagem de dois papas que não eram oponentes, mas colaboradores.
O livro polémico de Gänswein
Mas esta presença de Gänswein na corte dos dois papas começou a deteriorar-se ao longo do pontificado de Francisco — e atingiu o seu pico em janeiro de 2020, quando o Vaticano se viu mergulhado numa crise de comunicação que, de maneira particularmente grave, expôs as diferenças de pensamento entre os dois papas.
Em outubro de 2019, o Sínodo da Amazónia tinha discutido a possibilidade de abrir o sacerdócio a homens casados para fazer face à falta de padres na região — e a recomendação tinha sido incluída no documento final do Sínodo. Para a primeira metade de 2020, era esperado um documento do Papa Francisco sobre as conclusões do Sínodo, como é habitual. Mas, pelo meio, foi publicado um livro supostamente escrito a quatro mãos pelo cardeal Robert Sarah e por Bento XVI, no qual surgia uma defesa do celibato sacerdotal como irrenunciável. A publicação do livro foi vista como uma ingerência inaceitável de Bento XVI no pontificado do sucessor — mas viria a saber-se que, na verdade, Ratzinger não tinha autorizado a publicação integral do texto nem a colocação do seu nome na capa do livro.
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Gänswein foi o responsável por vir a público esclarecer o caso, mas o estrago estava feito. Foi por essa altura que Gänswein deixou de aparecer publicamente ao lado do Papa Francisco, ainda que não tenha perdido formalmente as suas funções.
Enquanto Bento XVI foi vivo, nunca se soube exatamente o que tinha acontecido, embora a notória ausência de Gänswein do espaço público tenha alimentado várias teses conspirativas. Porém, já se sabia que Gänswein estava a preparar um livro de memórias que só seria publicado após a morte do Papa emérito. Foi o que aconteceu em janeiro deste ano, com a publicação do livro Nient’altro Che La Verità: La mia vita al fianco di Benedetto XVI (em português, “Nada Mais do Que a Verdade: A minha vida ao lado de Bento XVI”), que trouxe a público novos dados sobre as tensões entre Francisco e Bento XVI.
No livro, Gänswein assume abertamente que o Papa Francisco só o manteve no cargo de prefeito da Casa Pontifícia por respeito a Bento XVI, mas que, em 2020, depois da polémica em torno do livro do cardeal Robert Sarah, o dispensou de todos os serviços no Vaticano e o mandou para casa, para cuidar de Ratzinger. Quando soube da decisão de Francisco, o Bento XVI terá dito a Gänswein: “Parece que o Papa Francisco já não confia em mim e quer que sejas o meu guardião!”
O livro de Gänswein traz também várias revelações inéditas sobre o que terá sido o pensamento de Bento XVI em relação a algumas das ideias mais controversas do Papa Francisco — incluindo, por exemplo, a posição favorável de Francisco sobre a possibilidade dar a comunhão às pessoas que se divorciaram e voltaram a casar e a decisão de aumentar as restrições à celebração da missa na forma antiga, em latim.
Segundo Gänswein, Bento XVI terá reagido com “perplexidade” à abertura do Papa Francisco à comunhão dos divorciados que voltaram a casar, não terá gostado que o Vaticano tenha divulgado uma carta sua truncada e até considerou um “erro” a decisão do Papa Francisco de restringir fortemente a realização da missa em latim.
A publicação do livro, que azedou definitivamente as relações entre o antigo secretário particular de Bento XVI e o Papa Francisco, alimentou desde logo grande especulação sobre o que sucederia a Gänswein, agora que o Papa emérito morreu. Nos últimos dias, soube-se que o ex-secretário tem estado à procura dos cinco primos de Ratzinger para lhes comunicar que, na qualidade de herdeiros legais, lhes cabe receber o património pessoal do antigo Papa. Depois de concluir as suas tarefas como testamenteiro de Bento XVI, torna-se cada vez mais claro que deixará de haver lugar no Vaticano para Gänswein.